À entrada para o Campeonato do Mundo de Fórmula 1 de 2005, o nome da modalidade já se confundia com o de Michael Schumacher. No ano anterior, o piloto alemão tinha carimbado o hexacampeonato mundial, era a figura maior da categoria rainha do desporto automóvel e tinha já o estatuto de lenda. A seu lado e à boleia da sua condução, a Ferrari vivia um dos períodos de maior sucesso na Fórmula 1 e, além do título mundial para Schumacher, festejava o facto de o segundo lugar da classificação ser do segundo carro vermelho, de Rubens Barrichello. Eram dias de entusiasmo na scuderia italiana. Até que chegou um espanhol imberbe, com cara de miúdo mas mãos para agarrar no volante.
Fernando Alonso sagrou-se campeão mundial de Fórmula 1 em 2005 e 2006, tornou-se o mais novo bicampeão da história da modalidade e colocou um ponto final na era Schumacher. Adivinhava-se uma nova dinastia: a dinastia Alonso. O jovem espanhol tinha qualidade, personalidade, lembrava as birras de Schumacher nos primeiros dias no paddock e reunia todas as condições para se tornar um dos maiores de sempre ao volante de um monolugar. Mas as decisões que tomou fora de pista a partir do momento em que levantou o troféu de campeão do mundo pela segunda vez foram sempre setas ao lado do alvo, passos dados antes ou depois da hora certa e consecutivos tombos na luta pelos lugares cimeiros das classificações. 2007 foi o primeiro ano da descida de uma montanha russa que até aí só conhecia subidas a pique.
Em 2007, depois de ser bicampeão ao volante do mítico carro azul e amarelo da Renault, mudou-se para a McLaren com um contrato milionário. Ao seu lado, com o segundo carro, estava um jovem Lewis Hamilton. Ron Dennis, à altura presidente da McLaren, começou a seduzir Alonso logo depois de o espanhol ganhar o primeiro campeonato e os dois terão mesmo assinado um pré-acordo ainda em 2005. A transição da Renault para a McLaren era algo que ambos queriam e queriam-no o mais depressa possível. E o casamento correu às mil maravilhas até ao arrufo na Hungria que só terminou em divórcio no final da época – com direito a tribunal e tudo.
Ron Dennis seguia Fernando Alonso desde que o espanhol tinha nove anos. Com necessidade de renovar os pilotos, teve a oportunidade contratar Juan Pablo Montoya ou Kimi Räikkönen, mas optou por escolher o campeão do mundo que conhecia desde miúdo. Juntos, tinham grandes planos para as temporadas seguintes – só não conseguiram prever que Lewis Hamilton seria tão rápido. O inglês trazia na bagagem títulos na Fórmula 3 e no GP2 e queria afirmar-se rapidamente na categoria principal do desporto automóvel. Nas conferências de imprensa, Alonso começou a admitir que Hamilton estava na corrida pelo título e chegou a dizer à imprensa espanhola que “tinha um colega britânico numa equipa britânica”, logo, “todo o apoio e ajuda vão para ele”. A primeira quebra estava feita.
À entrada para o Grande Prémio da Hungria, Hamilton estava na frente da classificação – à frente de Alonso. Um extraordinário título na época de estreia na Fórmula 1 já não era uma miragem assim tão distante. Enquanto isto, a McLaren enfrentava um escândalo fora de pista. Num caso que acabou por ficar conhecido como “Spygate”, o diretor de design da equipa tinha recebido 780 páginas de informação sobre o design da Ferrari: enviadas por Nigel Stepney, antigo diretor mecânico da scuderia italiana. Ambos foram suspensos pelas respetivas equipas, a FIA abriu uma investigação mas não encontrou provas que deixassem claro que qualquer outra pessoa teve acesso à documentação.
Na qualificação de Budapeste e no meio de todo este turbilhão, Lewis Hamilton tinha o tempo mais rápido e tomou a liderança do pelotão – recusou deixar Alonso passar, alegando que Räikkönen conseguiria aproveitar – mas as voltas finais prometiam ser mais rápidas. Para segurar a pole-position, a McLaren decidiu aguentar os dois carros na pit lane durante 20 segundos e lançá-los bastante separados, de forma a terem o maior espaço de pista possível. Quando a partida de Alonso foi permitida, faltava um minuto e 48 segundos para o final da sessão, o que era mais do que tempo para os dois pilotos completarem a última volta. O stop foi levantado mas Alonso não arrancou. Continuou parado mais dez segundos, bloqueou Hamilton, completou a volta final e agarrou a pole position. O inglês, por outro lado, já não teve tempo para a derradeira volta.
Fernando Alonso foi castigado em cinco lugares na grelha, alegou que não foi defendido pela McLaren e ameaçou divulgar informação que provava que Ron Dennis tinha tido acesso à documentação partilhada por Nigel Stepney. A partir desse dia, Dennis e Alonso não voltaram a falar. O caso foi para tribunal, a McLaren foi multada em milhares de libras e perdeu todos os pontos que tinha no campeonato de construtores. O espanhol terminou o ano na terceira posição, com os mesmos pontos de Lewis Hamilton e menos um do que o campeão Kimi Räikkönen (naquele que foi o pódio mais renhido de sempre). No final da temporada, Alonso e a McLaren acordaram a saída do piloto espanhol dois anos antes daquilo que estava previsto no contrato.
Para Mark Hughes, editor de Fórmula 1 na revista Motosport, este é o primeiro ponto chave para conseguir perceber os últimos anos da carreira de Fernando Alonso. Se até 2007 tinha apenas fama de ser rebelde e ter mau feitio, aqui começou a ser acusado de criar problemas no cerne das equipas e ser conflituoso. “Todo o problema começou nestes primeiros momentos da carreira, em decisões fora de pista. Os problemas com o Ron Dennis foram tão públicos que toda a gente começou a suspeitar antes de aceitar trabalhar com ele. Mas era mais uma reputação, uma má fama. Não sei se foi mal aconselhado ou se abordava as coisas de uma forma simplista. Escolhia sempre o conflito antes de pensar se era mais inteligente lutar ou não. Naqueles dias não tinha uma grande sofisticação de pensamento. Os erros que cometeu aí tiveram um impacto posterior e nunca recuperou, parecia que estava sempre um passo atrás, que o autocarro escapava sempre um pouco”, explicou Mark Hughes em entrevista ao El Confidencial.
https://www.youtube.com/watch?v=s3SUidn2LNg
Da McLaren regressou à Renault, onde em dois anos não conseguiu melhor do que um quinto e um nono lugar nas classificações finais. Até que chegou à Ferrari, naquele que ficou conhecido como “o segredo mais mal guardado da história da Fórmula 1”. Vestiu de vermelho numa altura em que a scuderia italiana perdia cada vez mais terreno para a Red Bull – onde estavam Sebastian Vettel e Mark Webber – e perdeu o campeonato de 2010 graças a um erro de estratégia que nada teve a ver com ele. À entrada para o último Grande Prémio da temporada, em Abu Dhabi, Alonso tinha oito pontos de vantagem sobre Vettel e ia sair da terceira posição da grelha. Perdeu um lugar para Jenson Button logo no arranque e foi traído pela estratégia de paragens da Ferrari, que o chamou às boxes numa altura em que Vitaly Petrov estava demasiado perto. Quando regressou à corrida, Alonso estava preso atrás de Petrov e não voltou a conseguir lutar pelos lugares cimeiros que lhe davam o campeonato. Perdeu-o para Vettel e, como o amigo Antonio García explicou recentemente ao El Confidencial, percebeu aí que não voltaria a ser campeão do mundo.
Ficou mais quatro anos na Ferrari, aqueles previstos no contrato, e ainda conseguiu mais dois segundos lugares no campeonato – os dois atrás de Vettel, que em 2013 terminou o ano com mais 150 pontos. Em 2015, regressou à McLaren. Estava ao volante de um carro abaixo de pouco competitivo, não tinha nada por que lutar que não tentar ficar pelo menos em 10.º e somar pontos e queixava-se frequentemente do rendimento do veículo, fosse pelas comunicações rádio ou nas conferências de imprensa. Ficou em 17.º, 10.º e 15.º (este ano, a uma corrida do final, está novamente em 10.º). “Surpreendeu-me vê-lo lutar por posições que não são as suas. Mas o bom disto é que lhe permitiu conhecer novos mundos que ele queria descobrir. Quando lutas por um campeonato do mundo, tens noção de que tens de dar tudo e mais ainda, são anos em que não tens espaço para mais nada na vida. Estes últimos anos deram-lhe a oportunidade de fazer outras coisas, experimentar o Indy 500 e as 24 horas de Le Mans, coisas que sempre estiveram na sua lista mas que conseguiu realizar muito antes do que o que seria de esperar”, explicou Antonio García, amigo de infância de Alonso.
Para Mark Hughes, Fernando Alonso não pode ser descrito pelo número de títulos, pelo número de vitórias nem por qualquer outro número. Todas essas estatísticas têm um asterisco. “O Fernando tem uma capacidade incrível de conduzir um monolugar, de encontrar formas de fazer coisas extraordinárias com um carro. Com tantos anos num carro tão pouco competitivo, nunca deu a sensação de menor falta de motivação quando entrava no carro. Que como campeão do mundo tenha aguentado tantos anos sem qualquer hipótese de ganhar é algo que nunca tinha visto. Ainda que as estatísticas digam que tem dois títulos e 32 vitórias, nem sequer estão perto de explicar o tipo de piloto que é”, garante o jornalista.
Opinião essa que é corroborada por Antonio García, que o trata por “aniquilador”, um soldado “muito determinado que quando quer lutar, luta por aquilo que quer dê por onde der”. Fernando Alonso despede-se da Fórmula 1 este domingo, depois de 17 temporadas a correr ao mais alto nível. Tanto Antonio García como Mark Hughes acreditam que a história do piloto espanhol na categoria rainha do desporto automóvel não fica por aqui – e o próprio garantiu que “em abril ou maio pode estar aborrecido no sofá e decidir voltar” –, mas por agora Alonso vai dedicar-se às provas de resistência. Após ter vencido o Grande Prémio do Mónaco e as 24 horas de Le Mans resta-lhe apenas ganhar o Indy 500 para conquistar a tripla coroa do desporto motorizado (juntando-se ao inglês Graham Hill, o único a tê-lo conseguido). Mas não vai andar longe das garagens: o espanhol tem ainda um contrato de longa duração com a McLaren e vai continuar ligado à equipa, ainda que não se saiba exatamente quais serão as suas funções.
Bicampeão mundial Fernando Alonso deixa a Fórmula 1 para perseguir o sonho da Tripla Coroa
A carreira de Fernando Alonso na Fórmula 1 foi uma montanha russa: começou de forma inesperada, com um ponto final numa hegemonia que durava há vários anos, e acabou numa fase ainda menos expectável, com o espanhol a lutar pelos pontos em vez de lutar pelos pódios. As decisões – a ida para a McLaren, a ida para a Ferrari, o regresso à McLaren – parecem ter sido todas ao lado. Mas em entrevista ao The Guardian, em abril deste ano, Alonso garantiu que “se voltasse atrás sem uma bola de cristal fazia tudo igual”. “Não me arrependo porque no momento em que as tomei tomava-as novamente cem vezes. Naqueles momentos, para mim, estava tudo preto no branco”. Este domingo, aos 37 anos, o nome de Fernando Alonso deixa de integrar a grelha da Fórmula 1.