Há alguns anos que lhe chamam “Jimi Hendrix do deserto” e a alcunha é mais do que justificada: basta ouvir o serpentear da guitarra de Omara Moctar (o seu nome de batismo), o tom ondulante das suas canções, o virtuosismo e domínio de um blues impregnado de uma simpática magia tribal (ou vice-versa). Tuaregue, nascido no Níger, Bombino de nome artístico, Omara Moctar, 38 anos, “mais coisa menos coisa” (“pelo menos é o que está nos meus documentos”, dizia este ano ao jornal New York Times), é uma das grandes estrelas da música africana, um dos músicos mais dotados e consagrados nascido nesse continente nos últimos 40 anos. Este sábado, 22 de dezembro, atua no clube de concertos e DJ sets B.Leza, no Cais do Sodré, em Lisboa. O concerto já está esgotado.
O concerto no B.Leza, mais um de Bombino em Portugal — depois de várias atuações, as últimas das quais nos festivais de música Maré de Agosto (em 2017), Vilar de Mouros (2016) e Vodafone Mexefest (2015) e no próprio B.Leza, onde esteve em 2014 –, é motivado pela edição de um novo álbum. Deran, a nova coleção de canções de Bombino, marca o seu regresso aos estúdios africanos, depois de ter gravado discos como Agadez (de 2011), Nomad (de 2013) e Azel (de 2016) nos Estados Unidos da América. “Desta vez senti a convicção de que seria melhor voltar a África e sentir a inspiração do deserto, da minha casa”, apontou ao Observador, em entrevista por email.
Rodeado dos seus músicos habituais Illias Mohammed (guitarrista e vocalista), Corey Wilhelm (percussionista e baterista norte-americano) e Youba Dia (baixista mauritano que vive na Bélgica), a que se somaram o percussionista marroquino Hassan Krifa e os vocalistas Anana ag Haroun (primo de Bombino) e Toulou Kiki, o guitarrista e cantor gravou a maior parte de Deran num estúdio de luxo nos subúrbios de Casablanca. Um estúdio cujo dono é o Rei de Marrocos, Mohammed VI.
Cantado inteiramente na língua tuaregue Tamashek, o novo álbum de Bombino é um regresso simbólico a “casa”. É, também, a procura de um som autêntico e mais pessoal, depois de nos últimos anos o músico ter dividido as decisões quanto ao som dos discos com produtores internacionais — nomeadamente Dan Auerbach, dos Black Keys, e David Longstreeth, dos Dirty Projectors.
Deran é a obra de um músico maduro e consolidado, que em pequeno fugiu com a família do Níger rumo à Argélia, devido à seca, fome e instabilidade política do seu país, que trabalhou como guia turístico, foi pastor (tocava guitarra para o rebanho de ovelhas), recebeu cordas de guitarra de turistas, maravilhou-se com o som de Jimi Hendrix e dos Dire Straits mas também dos africanos Ali Farka Touré e Tinariwen, tocou com os membros dos Rolling Stones Charlie Watts e Keith Richards e acompanhou Angelina Jolie durante seis dias numa viagem pelo norte do Níger (“Fomos para o deserto. Eu tocava e ela dançava”, recordou ao New York Times).
Músico que viu muitos amigos e familiares juntarem-se aos rebeldes tuaregues na última década e meia (povo maioritariamente pobre e pouco representado), e que, não usando a famosa inscrição de Woody Guthrie (“This machine kills fascists”) na guitarra, tem-na vindo a usar como arma, ou pelo menos como proposta alternativa para a emancipação do seu povo, Bombino fez por não cumprir um destino que lhe parecia reservado. Eis o que disse ao Observador, em antecipação ao concerto em Lisboa:
O seu último álbum foi gravado em Casablanca. Tendo em conta que gravou os discos anteriores nos EUA e está constantemente a viajar, tocar e mudar-se de país para país, qual é o efeito dos ambientes exteriores e dos lugares por onde passou na sua música? Por exemplo, no caso de Casablanca?
Gravámos em Casablanca porque geograficamente e culturalmente era o mais próximo que poderíamos chegar do meu país natal, o Níger. Gravar os álbuns anteriores nos Estados Unidos da América foi uma grande experiência, abriu-me seriamente os ouvidos para novos sons e deu-me uma nova confiança. Mas para este disco senti a forte convicção que seria melhor voltar a África e sentir a inspiração do deserto, da minha casa.
Que rotinas tinha quando gravou o álbum? Como é que passou esses dias?
O staff do estúdio foi fantástico no modo como nos acomodou, como respondeu às nossas vontades e necessidades, e também pela comida ótima que cozinhou para nós. Basicamente, foi a situação perfeita para mim.
Tornou-se um símbolo importante de África e da cultura tuaregue. Sente a responsabilidade? Acha que as pessoas podem mudar ou reforçar o modo como veem os tuaregues e o Níger a partir de si?
Levo muito a sério o meu papel de embaixador cultural do povo tuaregue e do Níger. No mundo sabe-se pouco acerca do meu país. Alguém que está na minha posição tem uma grande responsabilidade, a de introduzir o Níger e a cultura tuaregue ao resto do mundo.
Que aspetos da cultura tuaregue quer preservar até morrer? E quais têm sido mais difíceis de manter com o estilo de vida que leva, de músico profissional que viaja muito pelo ocidente?
O povo tuaregue é uma comunidade muito próxima — passamos muito tempo com a nossa família e amigos e gostamos de passar muito tempo no deserto. Estas são as coisas que guardo com mais carinho no meu coração e as coisas que tenho de sacrificar quando vou viajar em digressão, isto sem mencionar a parte mais difícil, que é deixar a minha mulher e as minhas três filhas. Mas no fim de contas o sacrifício vale a pena para mim e para minha família. Espero fazer uma diferença positiva para o povo tuaregue e para o Níger.
Quais são os grandes desafios para os tuaregues que vivem hoje no Níger?
Os grandes desafios que se colocam ao povo tuaregue do Níger hoje em dia são essencialmente económicos. Precisamos de ter mais acesso a uma boa educação e a boas oportunidades de negócio. Precisamos dessas oportunidades para construir um país sem irmos falar de mão estendida com o resto o mundo. Isto tem uma importância vital para o futuro do Níger.
Fala-se bastante no blues do deserto do norte de África [“tichumaren”]. Há ideias, emoções e pensamentos específicos que o deserto provoca? Ele tem alguns efeitos comuns em quem o visita e nos músicos que por lá passam?
Sim, acho que o deserto tem um espírito poderoso em si mesmo. É algo que comove o coração de todo o povo tuaregue, em particular o dos artistas. É uma grande, possivelmente até a maior fonte de inspiração para a nossa cultura e música.
Vai tocar no B.Leza e já tocou no Porto e em Lisboa. Com que impressões ficou do país e destas cidades?
Passei dias e noites excelentes em Portugal, em Lisboa e no Porto, a apreciar a beleza das cidades e das pessoas. Portugal é um dos meus países preferidos para visitar. Nos concertos a atmosfera costuma ser sempre simpática, as pessoas são muito abertas e estão dispostas a divertir-se. Isso inspira um artista como eu.
Já tocou com membros dos Rolling Stones. Foi fácil compreender a linguagem deles, e vice-versa? O que é que achou mais surpreendente neles e com que impressão é que acha que ficaram sua?
Honestamente já foi há tanto tempo que não tenho muitas memórias dessa experiência. Tudo o que me lembro é de ver estes tipos mais velhos que para mim pareciam malucos. Nunca tinha visto pessoas daquela idade a comportar-se como eles se comportavam e vestidos como eles estavam vestidos. Esse encontro aconteceu numa fase inicial da minha carreira portanto na altura estava apenas a começar a compreender o mundo que ficava para lá de África. Aqueles tipos deixaram-me confuso, do mesmo modo que, estou certo, também os terei deixado confusos. Mas no fim de contas, lembro-me que nos divertimos uns com os outros e gostámos da experiência.
Como é que se sente vendo a movimentação de migrantes de África para a Europa, tendo sido já um refugiado? Que soluções há para esta crise e o que é que pode ser feito para levar paz e prosperidade aos países menos seguros e prósperos?
Sinto dor no meu coração com os refugiados, não apenas por aqueles que passam pelo Níger mas por todas as pessoas deslocadas do seu lar em todo o mundo. Acho que no mundo ocidental há um ressentimento com os refugiados que foi criado pelos políticos para esconder as verdadeiras fontes dos problemas económicos. Uma pessoa tem de ter em conta o quão difícil e doloroso é para alguém deixar a sua casa à procura de uma vida melhor, ou simplesmente para evitar correr risco de morte. É preciso ter em conta o quão desesperado alguém tem de estar para fazer isso. Acho que as pessoas não gostam de pensar no que fariam se estivessem nessa situação. Posso dizer-lhe, a partir da minha experiência pessoal, que em qualquer situação em que existam refugiados eles são as vítimas de um problema, não a fonte de qualquer problema.
De que guitarristas é que gostava mais e o inspiravam mais durante a sua juventude?
As minhas maiores inspirações na guitarra foram e ainda são o Jimi Hendrix, os Dire Straits, o Ali Farka Touré e os Tinariwen. Obrigado!