Quando o governo aprovou em Conselho de Ministros uma Lei de Bases da Saúde diferente daquela que havia saído da comissão presidida pela socialista Maria de Belém Roseira, Assunção Cristas garantiu que o CDS nunca votaria a favor, porque estava “claramente orientada ideologicamente e prisioneira das amarras dos partidos mais à esquerda”. Iria, portanto, apresentar uma proposta alternativa. Acontece que a alternativa que o CDS foi buscar é uma alternativa escrita em cima da proposta inicial de Maria de Belém — com 59 bases, tantas quanto as que tinha aquele projeto inicial.
“Não é um copy/paste, que fique bem claro, mas nunca escondemos que nos revíamos naquela proposta e que não nos revíamos de todo na proposta que o governo aprovou”, explicou ao Observador a deputada centrista Isabel Galriça Neto, admitindo que a proposta de Maria de Belém “serviu de base” ao trabalho do CDS. Tudo porque, explicou, “o governo deitou fora trabalho que foi produzido depois de consulta pública, depois de terem sido ouvidos ‘n’ especialistas, e que resultou numa lei que era enquadradora e que procurava consensos”. “Para ser assim não podia ser sintética, tinha de ser clara e estruturante. Mas a versão que foi aprovada em Conselho de Ministros não é nem clara nem estruturante, e peca por ser demasiado sintética”, disse ainda.
Na exposição de motivos do projeto de lei do CDS, que vai ser formalmente apresentado esta terça-feira na sede do partido, esta ideia fica ainda mais clara, com os centristas a criticar o “apagão” que o Governo fez à proposta saída da Comissão de Revisão da Lei de Bases da Saúde, que transformou as 59 bases de Maria de Belém em apenas 28 pilares. Para o CDS não há outra justificação para isso “senão a mudança de titular da pasta da saúde e a eventual cedência a pressões e preconceitos ideológicos”. Que é o mesmo do que dizer: a saída de Adalberto Campos Fernandes (que tinha nomeado Maria de Belém para aquela comissão) e a chegada da ministra Marta Temido, bem como a pressão dos partidos à esquerda que apoiam o governo do parlamento, e que querem “proibir a intervenção dos privados” nos serviços de saúde.
“A Proposta de Lei do Governo é, de facto, concisa, pois apresenta apenas 28 Bases, verificando-se que grande parte do projeto apresentado pela Comissão de Revisão da Lei de Bases da Saúde, contendo 59 Bases, foi ignorado (…) Tendo em conta que consideramos que, na Proposta de Lei nº 171/XIII, não foram tidas em atenção matérias determinantes que constavam no projeto da Comissão de Revisão da Lei de Bases da Saúde, entendemos que o trabalho realizado por essa Comissão não pode, sem mais, ser ignorado. Nesse sentido, e reconhecendo que, apesar de discordâncias pontuais, este é, na sua globalidade, um trabalho abrangente e adaptado às reais necessidades do país e do SNS, entendemos dever recuperar o projeto de Lei de Bases da Saúde elaborado pela Comissão de Revisão, introduzindo nele alterações que refletem princípios defendidos pelo CDS-PP e apresentar o resultado na presente iniciativa legislativa”, lê-se no documento que deu entrada esta segunda-feira na Assembleia da República.
A questão sempre esteve no limitar ou não limitar o papel dos privados e do setor social na prestação de cuidados de saúde, e essa sempre foi uma questão ideológica: BE e PCP, que têm projetos de lei em nome próprio, defendem essa abolição, enquanto PSD e CDS (cada um com o seu projeto de lei) defendem a cooperação do Estado com os privados e o setor social na gestão dos serviços de saúde. O PS, no meio, começou por ir mais ao encontro da direita, com a ministra Marta Temido a puxar depois o documento para a esquerda. De acordo com o semanário Expresso, o primeiro-ministro chegou mesmo a obrigar a nova ministra a recuar ligeiramente para agradar à direita, chegando a um meio caminho: a proposta final do Governo mantém a existência de taxas moderadoras, com isenções e limites máximos de pagamento, e mantém a possibilidade de unidades do SNS poderem ser geridas por privados, embora ressalve que essa gestão é supletiva e temporária.
Maria de Belém lamenta atitude da ministra perante trabalho feito na Lei de Bases da Saúde
“O SNS é um pilar fundamental, mas não é o único”
Um meio termo que não é suficiente para o CDS. Segundo explica a deputada Isabel Galriça Neto, o interesse máximo do sistema de saúde deve ser o de “garantir que os cidadãos tenham melhores cuidados de saúde face à realidade dos últimos anos”, pelo que a operacionalização da prestação desses cuidados não deve estar amarrada a uma “inflexibilidade ideológica”. Ou seja, o Estado deve poder pedir cooperação aos privados e ao setor social, não se demitindo do seu papel de fiscalizador, financiador e prestador — papéis estes que o CDS distingue na “Base 5”, relativa à “Responsabilidade do Estado”
“A operacionalização dessa proteção e dessa prestação, que compete ao Estado, deve fazer-se não com inflexibilidade ideológica, mas com transparência e rigor, pedindo cooperação aos privados e ao setor social para operacionalizarem os cuidados. O Estado não se demite do papel de fiscalizador nem de prestador e financiador. O SNS é fundamental, é um pilar do sistema de saúde, mas não é o único. Em nome dos bons resultados, da qualidade e da eficiência, porque nos centramos nos doentes, não fechamos a porta a outros prestadores”, afirmou a deputada centrista ao Observador.
À proposta da comissão de Maria de Belém os centristas acrescentam o “valor qualidade” que, dizem, deve ser tido em conta nas formas de financiamento. “Não se deve apenas financiar a produção, a quantidade (a unidade produz mais e por isso recebe mais), deve-se também ter em conta a qualidade e o valor geral que resulta para o paciente”, diz Galriça Neto, dando um exemplo. “Se temos dois tipos de cirurgia, em que uma é mais barata que a outra, mas uma tem um tempo mais prolongado de recuperação e pode resultar em sequelas para o paciente, e outra que é mais rápida e sem sequelas, esse valor acrescentado para o cidadão também deve ser tido em conta na decisão do financiamento”, diz.
O estatuto do cuidador informal e o reforço do papel do Estado em políticas de apoio à saúde e envelhecimento são outras “bases” que o CDS acrescenta no seu projeto de lei.
O debate no Parlamento sobre estes projetos de lei (e a proposta de lei do Governo) está marcado para dia 23 de janeiro, mas terá, invulgarmente, a grelha de tempos mais reduzida que o regimento permite. Esse é também um aspeto que merece crítica do CDS, apesar de não ter sido contestado em conferência de líderes. Para os centristas “é muito pouco tempo” para debater uma lei tão estrutural, pelo que o CDS não descarta a possibilidade de baixarem todos sem votação, para o debate ser aprofundado na especialidade.
Para o CDS, o papel de uma Lei de Bases da Saúde “é muito mais amplo” do que aquele que o governo lhe atribuiu. Depois de enumerar um conjunto de princípios enquadradores como “o direito constitucional de todos os cidadãos à proteção da saúde” ou a ideia de que a sustentabilidade do direito dos cidadãos à saúde ter de “instituir o princípio concorrencial dentro dos serviços do SNS e entre os setores público, privado e social, para que se gerem melhores resultados e maior eficiência”, o CDS deixa claro que todos esses princípios “constavam do projeto da Comissão de Revisão da Lei de Bases da Saúde, muitos deles foram omitidos na proposta de lei apresentada pelo Governo”. Essa, dizem, “torna-a mais concisa, mas claramente pior, atendendo à natureza e fim a que este tipo de lei se destina”.
A apresentação do projeto de lei do CDS está prevista para esta terça-feira às 12h, enquanto a proposta do PSD será apresentada uma hora antes, às 11h.