Ser organizado não é para qualquer um. Quantas senhas de acesso ao Portal das Finanças já foram perdidas? Quantos cartões do cidadão já foram repetidos por ausência misteriosa do seu PIN? Quantas frases já começaram por “se eu fosse organizado…”. Mas a probabilidade de alguma destas situações acontecer a Sara Barros Leitão é reduzida. Desde pequena que tem este gosto particular por arrumar coisas, por ordem na casa, guardar tudo para esquecer nada. “A minha casa é uma mnemónica”, avisa a criadora de “Teoria das Três Idades”. É a primeira encenação da atriz natural da Maia (passa pelo Ciclo Recém-Nascidos do Teatro Nacional D. Maria II de sexta a domingo). E tem tudo a ver com isto: arrumação, organização da história. Mais não é que um mergulho – meio ficcionado – no arquivo do Teatro Experimental do Porto (TEP), companhia com a qual tem trabalhado recentemente e que celebrou, em 2018, 65 anos de vida.
O que não falta naquele espaço são documentos históricos, nostalgia em papel. E esse foi um dos motivos que fez Sara Barros Leitão sujar as mãos, apoderar-se do pó sabichão que habita o arquivo do TEP, a memória: “Gosto muito da memória e esse tema agita-me, tenho mesmo medo de perder a memória, a memória é o sítio mais livre e íntimo que temos, tu nunca consegues pôr por palavras aquilo que realmente pensas porque é um sítio de intimidade onde a palavra não chega, é mesmo só teu”, explica.
O que não é mesmo só da artista é este primeiro espectáculo. Porque foi quando começou a investigar o arquivo do TEP que conheceu o Sr. Portugal (Joaquim Portugal, que faz o apoio à pesquisa em “Teoria das Três Idades”), um homem que há 12 anos dispensa duas tardes por semana para, voluntariamente, arrumar, a seu jeito – um jeito emocional por isso mesmo, porque há coisas de que se gostam mais do que de outras – os documentos que fazem parte deste enredo. “A paixão dele fascinou-me. E depois foi mergulhar no arquivo, que me deu tanta coisa”, conta Sara. Tanta coisa essa que será impossível de detalhar neste texto.
Há, no entanto, espaço para falar de um ficheiro em particular, uma carta de António Pedro, primeiro diretor artístico do TEP, que, ao ser convidado para assumir a pasta, respondeu assim ao convite:
“Eu aceito este desafio, mas quero que fique claro desde o início que não eu não escolhi o nome Teatro Experimental do Porto, acho esse nome um absurdo, não sei como é que se faz teatro sem ser experimental”.
Sara Barros Leitão diz identificar-se muito com esta ideia. Daí também o facto de, aos 28 anos, com mais de dez anos de profissão (começou nos “Morangos com Açúcar” aos 16), só agora chegar a um ciclo chamado Recém-Nascidos, algo que, admite, não lhe faz confusão absolutamente nenhuma, nem é um sinal de lentidão e de precariedade da profissão:
“Aceitei estar neste ciclo porque na verdade me sinto assim, recém-nascida. Somos duas coisas, aquilo que sentimos e aquilo que os outros acham que somos e apesar de quem está de fora poder achar que não sou uma recém-nascida é assim que me sinto, isto fazia sentido para mim porque estou a iniciar um ciclo onde começo a cortar com uma espécie de marioneta que fui sendo nos últimos anos, em que recebia indicações, lia textos e fazia. Começo a encontrar um sítio onde colaboro na escrita dos textos nos sítios onde trabalho, onde colaboro como assistente de encenação… isso apazigua-me. Sinto que este espectáculo abre qualquer coisa que nunca fiz antes e isso é recém-nascer”.
Caçadora de tornados
Atrasemos o relógio para trás. Antes de recém-nascer, Sara Barros Leitão teve de nascer, crescer, fazer encenações da garagem da avó com os 12 primos, ir ao teatro, interessar-se e acabar na Academia Contemporânea do Espectáculo. Foi aí que um diretor de atores se lançou em busca de talentos e foi assim que Sara, embora contrariada e cheia de anticorpos, integrou o elenco dos “Morangos com Açúcar”.
“Os meus pais foram muito importantes, disseram que estava a ser estúpida, que as experiências são aquilo que fazemos dela, ‘achas que és boa demais para uma coisa? Então vai lá e mostra’. Tinha 16 anos, não queria nada ter interrompido o curso, mas lá está, há comboios que só passam uma vez”, avisa.
Efetivamente, os pais são uma alínea importante nesta equação. Ambos atletas de profissão, – o pai, José Leitão, chegou a ir aos Jogos Olímpicos de Seul, 1988, na categoria de triplo salto – cedo tiveram a sensibilidade de perceber que a filha não tinha muito jeito para correr e que ambicionava outros saltos. Começou por querer ser caçadora de tornados, porque havia uma série onde uma rapariga caçava tornados e Sara “achava aquilo muito exótico enquanto profissão”.
Mais a sério confessa-nos que trocou o jeito trôpego para o desporto pelos livros e pelo teatro, desde cedo foi espectadora e leitora. E a isso muito deve quer ao Festival de Teatro Cómico da Maia – a sorte de ter um festival de teatro na terra onde se nasce é outra das coisas que não é para qualquer um –, quer à Biblioteca Municipal da Maia, onde se perdia entre estantes. E onde, aos 12 anos, viveu um episódio delicioso: “Esta história é muito estúpida, mas pronto, vou contar. Quando fui à Biblioteca da Maia ler um livro da área dos grandes, porque só ia para a juvenil, perguntaram-me o que é que queria ler e eu fiquei um bocado bloqueada e disse: ‘Pode ser ‘Os Maias’. Isto porque tinha ouvido falar que era um livro importante e eu tinha 12 anos e pensei que ia ler a história da minha terra, isto é sobre a Maia, pensei eu. Foi um momento transformador para mim, nunca mais quis parar, como é que nunca me deram isto?”, garante.
Ficou desiludida quando chegou ao Campo Grande e percebeu que não havia charretes nem cavalos. Porém, havia de se apaixonar por Lisboa, onde viveu por dez anos — sim, porque depois de “Morangos com Açúcar” a televisão havia de lhe reservar mais três novelas.
De volta ao Porto
Não é nova esta noção de que a televisão esgota muita gente. Sara estava num rendilhado fatídico, aquela pressão do preço da luz, o senhorio a dizer que para o ano a renda sobe, os estúdios onde trabalhava fora do centro da cidade, por aí:
“Há três anos parei mesmo de fazer televisão. Em Lisboa as rendas estão altíssimas e eu estava naquele chip do: ‘tenho que trabalhar mais em televisão, para ganhar mais, para conseguir pagar uma renda, para viver numa cidade, para fazer televisão’, que na verdade foi uma coisa que nunca quis. A minha vida não fazia sentido. Então voltei para o Porto”.
Comprado o bilhete, aproximou-se, como já dissemos, do TEP, começou a explorar mais o seu sentido crítico e criador. Resultou, agora já lá está por defeito, e já mandou a televisão às urtigas. “De alguma maneira, esta minha fuga consciente não é só uma recusa à televisão, é também ao seu formato, uma recusa a qualquer coisa que não me serve que é estar sempre a utilizar as palavras dos outros e as indicações dos outros, quando estou cheia de pensamento aqui dentro. É difícil para mim caber apenas na aceção da palavra ‘atriz’, estou-me sempre a meter no trabalho dos outros, é um defeito meu, choro quando não concordo, então se calhar é bom perceber que tenho é que começar a fazer o meu caminho por aqui”, explica Sara.
E o caminho, mais uma garantia, passa por Portugal: “Cada vez tenho mais a certeza que quero viver em Portugal e que tenho muita coisa para fazer aqui, não só no Porto e em Lisboa mas em todo o país, temos que parar com esta coisa do centralismo, senão qualquer dia o país cai para o mar, estamos todos no litoral…”, atira antes de acrescentar:
“Claro que é diferente ser artista no Porto, é diferente ser artista em qualquer outro ponto do país que não em Lisboa. Assim como é diferente ser artista em Faro ou no Porto. Aliás, é diferente ser cidadão noutro sítio, uma pessoa que tem um AVC no Fundão tem mais probabilidade de morrer do que em Lisboa e isso é uma desigualdade terrível, tem que ir um helicóptero e o hospital mais perto é em Coimbra. Isso vê-se na oferta, na imprensa, não tenho esta lengalenga que o Porto tem uma condição muito desigual em relação a Lisboa, penso muito mais no resto do país e nas ilhas. Francamente é complexo. Penso muito sobre isso”.
Não se pense, contudo, que Sara Barros Leitão passou o seu crescimento a ver espectáculos e a assobiar. Lavou casas de banho, trabalhou em restaurantes, distribuiu flyers, foi babysitter dos filhos dos jogadores do FC Porto no Estádio do Dragão, fez cocktails, fez o que teve que fazer para aqui chegar. E chegou. Recém-nascida. Pronta para ir recém-nascendo.