Aquele sentimento de não pertença, de querer ver outros lugares, de estar cansado das mesmas ruas e trajetos. Foi mais ou menos isso que sentiu Pedro Barreiro – novo programador do Rua das Gaivotas 6, espaço do Teatro Praga em Lisboa – quando acabou a Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC). Estávamos em 2010 e o panorama teatral lisboeta e nacional não o estava “propriamente a seduzir”. Decidiu, com o ator e amigo Óscar Silva, rumar a São Paulo, onde muito viu e fez. Acabaria por voltar e por lá viveu até 2015. Quando regressou a Portugal para ser diretor artístico do Teatro Sá da Bandeira, em Santarém. Aventura que haveria de acabar com “contornos um bocado folclóricos”. Agora, em Janeiro de 2019, foi escolhido pelo Teatro Praga para assumir o comando de um espaço essencial na cidade de Lisboa, que trabalha os acolhimentos e as criações de novos artistas, que dificilmente têm espaço noutro lugar.
E assim, alguém que nunca fez grande questão de se efetivar no circuito lisboeta, acaba nesta morada, isto depois de em 2010 ter sido aluno de Pedro Penim na ESTC e de em 2018 ter feito assistência de encenação para o espectáculo “Worst Of”, que o Teatro Praga apresentou em novembro no Teatro Nacional D. Maria II. Para já, Pedro Barreiro está ainda a conhecer os cantos à casa, à equipa, a conversar com pessoas, algo que faz sempre, mesmo quando não está a trabalhar. A sua programação irá arrancar em 2020, data a partir da qual, em princípio, passaremos a ver à vista desarmada o cunho de Pedro Barreiro na Rua das Gaivotas 6.
São Paulo
Esta história passa obrigatoriamente por São Paulo. A ida, em 2010, levou Pedro Barreiro e Óscar Silva ao encontro da companhia Os Satyros, localizada junto da Praça Franklin Roosevelt, no centro da cidade, que antes de uma reestruturação, finalizada em 2012, se situava “num complexo de betão, com um consumo de crack enorme, bem underground”, descreve Pedro. Imaginemos pois, com a urgência que dois jovens artistas acabados de formar conseguem ter, o que se viria a seguir: “Fizemos logo uma proposta um bocado esdrúxula a um dos diretores d’Os Satyros. Nós queríamos fazer um espectáculo aqui. E ele alinhou. Alinhou num espectáculo que nem nós sabíamos o que iria ser. Então programou-nos no contexto de um festival que são as Satyrianas, 72 horas ininterruptas de teatro, e estreámos numa quinta-feira às quatro da manhã”, conta.
Antes desse espectáculo – “A Angústia deste Argumento” que continuaria em cena depois do festival – Óscar Silva, Pedro Barreiro e ainda Ricardo B. Marques e Silvana Ivaldi fundaram a estrutura Sr. João, que ainda hoje desenvolvem e que no primeiro semestre de 2019 apresentará dez criações artísticas distintas em várias localidades portuguesa, algo a que decidiram chamar “Estudo de Materais (Ou Anacronias Gerais)”. Entretanto, o Sr. João, estabelece-se em São Paulo onde apresenta vários espectáculos. Pedro Barreiro esteve em São Paulo até 2014, tendo desenvolvido trabalho em cinema, teatro, performance e com tempo de sobra para dar aulas na SP – Escola de Teatro. Anos e dados que não serão certamente suficientes para dar uma amostra do que Pedro Barreiro viveu por lá.
“Foi muito divertido, muito estimulante e veloz. Em São Paulo, existe uma velocidade, uma abertura, uma confluência de vários artistas e linguagens que acabam por formar um mundo de possibilidade muito rico”, começa por definir.
Isto sem esconder que a grande diferença a nível de financiamento para a criação de arte que ali viveu quando comparada com a realidade portuguesa está no mecenato. E mesmo a nível público “há programas interessantes, dos quais o Sr. João chegou a beneficiar”, afirma. No entanto, foi precisamente naquele pulsar de rua, na crítica teatral não oficial (em blogues, redes sociais, etc), no artista a consumir o artista, na independência, que Pedro Barreiro mais se concretizou:
“As coisas mais pujantes que encontrámos lá foram coisas de um registo muito underground, sem qualquer tipo de financiamento. E isso sim, é, a meu ver, uma coisa que faz muita falta em Portugal, uma independência dos ditames hegemónicos, de cânones dominantes, de linhas programáticas, de coisas que se circunscrevem naquilo que interessa ser falado naquela altura de forma a atingir aquilo que são as diretrizes de quem paga. Estar num circuito que se move fora deste tipo de lógica de financiamento pode ser muito importante para a independência dos objetos que são criados, por outro lado, tendo em conta que o tempo tem que ser pago, acabam por ser coisas que muitas vezes têm menos tempo dedicado, então são mais cruas, experimentais”.
Santarém
Esta história (também) passa obrigatoriamente por Santarém. Isto porque, depois de voltar de São Paulo em Junho de 2014 – “um dia antes de começar a copa do mundo”, alerta – viria, em 2015, a ser contratado para diretor artístico do Teatro Sá da Bandeira, precisamente na sua cidade natal. Aí programou artistas como Sónia Baptista, Paula Sá Nogueira, Alexandre Pieroni Calado, Rabbit Hole, SillySeason, Rui Catalão, entre tantos outros, nacionais e internacionais, numa escala, rigor e diversidade pouco comuns por ali. Podemos mesmo dizer que Santarém não estava habituada a lidar com propostas como aquelas que Pedro Barreiro desatou a fazer.
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Durante os três anos de avença com o equipamento municipal, Pedro Barreiro foi acumulando críticas à gestão e às políticas culturais da autarquia liderada pelo presidente da câmara local, eleito pelo PSD, Ricardo Gonçalves. O diálogo parecia cair “no nada, na imobilidade, na mudança nenhuma”, diz-nos.
“Não há a dizer nada de novo, a afetação orçamental para a cultura ou para a criação de arte em Portugal é completamente obscena, não é ridículo porque dá mais vontade de chorar do que rir. Se em relação ao poder central temos uma exposição muito maior, se formos ao poder local a coisa não melhora”, conta.
“Em Santarém é o caciquismo absoluto, as coisas funcionam em lógicas permanentemente eleitoralistas, altamente populistas, de fomentar a mediocridade em toda a linha, não existe nem visão, nem estratégia, nem pensamento decente. São coisas muito graves e que devem ser combatidas por todas as pessoas que tenham acesso a essas informações e que se queiram chatear. Eu quero. Ou tenho querido”, dispara.
E tem querido para valer. Durante a campanha eleitoral autárquica de 2017, Pedro Barreiro, através da sua página de Facebook, replicou algumas destas críticas enquanto avençado da Câmara Municipal de Santarém – e por isso com posição privilegiada para denunciar aquilo que para ele não são boas políticas para a cultura – e também enquanto filho de Rui Barreiro, candidato pelo PS à liderança do município de Santarém.
Ora a coisa ganhou mediatismo. Ricardo Gonçalves viria a ser reconduzido com maioria absoluta. Portanto, Santarém não estava mesmo habituada. E Pedro Barreiro acabou por ver a sua avença não renovada por se ter manifestado publicamente. Ainda que a versão que circulou na imprensa, regional e nacional, não tenha sido bem essa, conta:
“A coisa ganhou contornos um bocado folclóricos. Sei que era um sujeito incómodo, mas era porque as coisas não funcionavam bem, nem perto disso. Exigia outro tipo de investimento e de trabalho. Não havia possibilidade de levarmos a conversa para zonas que gerassem proveito público. Aquilo que depois acaba por ser mais publicitado como uma das razões pelas quais não ter sido reconduzido, foi um espectáculo que fizemos em Santarém porque tinha uma atriz nua e palavrões, isto acaba por ser veiculado na imprensa quando este espectáculo estreou um dia depois da minha avença já ter terminado”, explica.
Sem sair de Santarém – sobretudo do subtítulo – mas não indo muito longe, estacionando numa ideia de cidade portuguesa que não Lisboa e Porto, somos obrigados a regressar ao tão falado assunto dos teatros municipais desprovidos de uma programação regular e interessante e que estão espalhados por todo o território português, algo que podia ser quase comparado ao caso dos estádios feito para o Euro 2004. “É uma estupidez, um país do tamanho de Portugal é completamente intolerável que os artistas andem a competir por espaços entre Lisboa e Porto, para poderem trabalhar, ao mesmo tempo que são votados a arquiteturas menores, a espaços mais pequenos, quando temos vários teatros municipais pelo país fora e a maioria deles brutalmente mal geridos. Servem para quê, então? Para estarem sempre ao serviço do presidente da câmara, da vereadora da cultura, de apresentações empresariais em powerpoint, para pagar favores, para este tipo de sítio que nada tem que ver com a missão de um teatro municipal.”
E essa missão, tal como a dos decisores políticos, do poder central e do municipal, para Pedro Barreiro, “deve entender que o capital que resulta deste tipo de investimento é de outra natureza, é de outra ordem. Os agentes têm que estar dispostos, a bem do serviço público que juraram prestar quando foram eleitos, a investir”, diz antes de acrescentar:
“É a falta de longevidade deste tipo de olhares que muitas vezes nos impede de construir políticas de desenvolvimento efetivo é que faz com que paremos na coisa do ‘a malta não quer, as pessoas não interessam’. Isto demora tempo. Todos sabemos o que as pessoas querem. Se tivermos a distribuir chocolates as pessoas enchem o teatro se for isto. Agora: é isto que nós queremos?”
Lisboa
Sim, é isso, adivinhou estimado leitor, esta história também passa por Lisboa. E respondendo ainda à questão levantada por Pedro Barreiro no final do último subtítulo: não. Não é isto que queremos. E muito menos, como já se percebeu, quer Pedro Barreiro, agora que agarra no Rua das Gaivotas 6.
A resposta seguinte foi à ingrata pergunta: “O que é que o Teatro Praga viu no Pedro para lhe lançar este convite?” “Sei lá. Hão de ter visto qualquer coisa que os fez correr o risco de me convidar para a condução deste espaço, o que eles viram concretamente não sei.” Certo, mas é preciso insistir. Que planos tem? “Este deve ser um espaço estimulante, deve fomentar o investimento de pensamentos dos artistas de uma forma muito comprometida, deve ser um espaço aberto, não pode ter medo de não se adequar a conveniências. Não quero instituir uma linha programática que tenha que ver com o meu gosto, a coisa deve ser plural. É um compromisso entre diversidade e singularidade, diversidade de objetos singulares, que os artistas aqui possam encontrar um lugar de liberdade, que consigamos criar produções emancipadas, que olhem para o mundo, que os artistas se vejam como fazedores desse mundo e não apenas como replicadores de fórmulas que já se conseguem reconhecer.”
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Como qualquer programador que se preze, Pedro terá agora, mais ainda do que em Santarém – o universo lisboeta é obviamente muito maior – que ver espectáculos. Perceber quem se anda a mexer e como se pretendem mexer. Perceber quem é singular. Perceber quem quer a trabalhar no número 6. Trabalho de olheiro, portanto. Mas não só:
“Acho muito importante ver os trabalhos, estar presente, mas também é muito interessante para mim conversar com os artistas, hei de programar as coisas que vão estrear aqui, hei de ter que apurar em que lugar das suas investigações e ambições é que eles estão, para conseguir ter alguns dado para desenhar essa programação como um todo. Acredito muito na importância de conversar, de nos expormos uns aos outros, de incertezas e de dúvidas. O que é que um gajo sabe? Não é por estar neste lugar que sei mais, interessa-me sim conseguir encetar diálogos com artistas e estimulá-los para eles conseguirem estar neste espaço sem pressão, e que a preocupação seja em relação ao objecto que estão a criar”.
Por fim, pelos vistos, lá acertámos na pergunta. Que era afinal a mais simples de todas: Porque não existem mais sítios com a missão da Rua das Gaivotas 6? “É uma boa pergunta, mas não sei responder. Se formos a São Paulo ou a Berlim existem muito mais espaços como a Rua das Gaivotas 6 do que em Lisboa. Nós vamos fazer com que este espaço continue a existir e, talvez, influenciar ou propiciar a criação de espaços semelhantes, e isso não quer dizer que tenham a mesma ambição ou aparência, mas que se deem ao risco de pensar o que é que faz falta aos artistas, aos públicos, à cidade, ao bairro, ao país e ao mundo. É assim que nos devemos colocar. E isso é um fator de responsabilidade, aqui ou numa peça que vou fazer, ou numa coisa qualquer”.