A bateria entra nervosa. Só depois vêm os sopros — trompete e saxofone –, o contrabaixo e a voz da poeta Camae Ayewa, conhecida no mundo da música como Moor Moother, que acompanha as acelerações e desacelerações rítmicas com palavras corrosivas e urgentes. Palavras sobre celas prisionais do seu país e a sua incapacidade de reabilitar pessoas, sobre prisões forçadas e voluntárias, sobre injustiça, sobre tempos em que “a morte era uma bênção”, sobre “ser sempre Black Sunday aqui”. Palavras sobre “corpos linchados”, sobre “a espera ser um privilégio” e sobre um tempo em que um pai pôde olhar uma filha nos olhos e dizer-lhe: “não vais ser uma escrava”. Palavras gritadas e não cantadas, spoken word para inquietar. Em paralelo, a tentar em simultâneo acompanhar as palavras e impulsioná-las, jazz do bom, nada smooth. É música tocado com arrojo, “que almeja à libertação”.
São os Irreversible Entanglements, quinteto norte-americano que atua em Portugal esta semana: esta terça-feira, 5, em Lisboa, na Galeria Zé dos Bois, e na quarta-feira, 6, no edifício GNRation, em Braga, já depois de um primeiro concerto em Coimbra.
Formados por Camae Ayewa, isto é, Moor Mother (letras e voz), Keir Neuringer (saxofone), Aquiles Navarro (trompete), Luke Stewart (contrabaixo) e Tcheser Holmdes (bateria), os Irreversible Entanglements começaram a nascer no início de 2015, quando Camae, Keir e Luke juntaram-se para um concerto em trio, inserido numa manifestação de músicos contra a violência policial (Musicians Against Police Brutality), em Nova Iorque. O evento teve como intuito angariar fundos para a família de Akai Gurley, afro-americano assassinado por um agente da polícia nova-iorquina. Peter Liang, o polícia em causa, acabou condenado por homicídio.
O proponente da formação dos Irreversible Entanglements foi Keir Neuringer. Na altura, o saxofonista estava longe de imaginar que esse primeiro concerto de homenagem a Akai Gurley daria origem a uma banda, ainda menos a um quinteto, como conta por telefone ao Observador, em conversa motivada pela passagem da banda por Portugal:
Convidei a Camae e o Luke para tocarem comigo. Já tinha tocado com a Camae, com o Luke nunca o tinha feito. Eles conheciam-se e achei que podíamos ter uma boa ligação a três. Curiosamente, o Aquiles tocou depois de nós com o Tcheser Holmes, tinham um duo há muito tempo. Ouvi o concerto deles e passou-me uma coisa pela cabeça: se pudéssemos juntar o concerto deles com o nosso, iria funcionar perfeitamente. Alguns meses depois, juntámo-nos como quinteto”, refere.
Moor Mother é a artista que Keir Neuringer conhece há mais tempo. Antes dos Irreversible Entanglements, Keir já tinha feito alguns concertos com Camae em duo, no ano anterior à atuação que acabou por juntar pela primeira vez membros da banda, em 2015. “Conheci-a num enquadramento político”, refere, acrescentando: “Fazíamos ambos parte de uma organização chamada Books Through Bars [em português significa algo como Livros Por Entre as Grades], que envia livros a pessoas encarceradas. Conheci-a num evento relacionado com isso, em que ela recitou alguma poesia”.
Aquele primeiro encontro com Camae Ayewa teve impacto no saxofonista de 43 anos, “mais velho por uma geração” do que “os mais novos da banda” Tcheser Holmes e Aquiles Navarro. Quando a convidou para tocar consigo, primeiro, e para formar com ele e mais três elementos os Irreversible Entanglements, depois, o saxofonista tinha o seguinte em mente: “A Camae estava a ser ouvida pelo seu público, mas não pelo meu [mais próximo do jazz]. Queria que o meu público ouvisse o que ela tinha para dizer com a sua poesia. O que é que poderia fazer para conseguir isso? Tocar com ela. Mais recentemente ela tem tido um crescimento lindo, digno de um cometa, porque lançou trabalhos a solo [dois discos, em 2016 e 2017], começou a fazer digressões mundiais e não tem parado”.
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— poetry (@moormother) December 1, 2017
A química de Keir Neuringer com Luke Stewart (nascido no Mississippi, mudou-se para Washington D. C. após terminar o liceu), Aquiles Navarro — panamiano que foi para os EUA estudar música — e Tcheser Holmes (baterista que cresceu em Brooklyn, em Nova Iorque) apareceu mais tarde. O saxofonista sabia que o contrabaixista, Luke Stewart, tinha um profundo conhecimento musical, além de ser um músico dotado, o que o entusiasmou logo: “Ele era DJ na rádio e dava para perceber que tinha um conhecimento muito grande sobre a história da música, sobre todas as eras da música. Sabia que ele conhecia a Camae da cena musical, embora nunca tivessem tocado juntos”. A formação de um quinteto veio a afigurar-se lógica:
Estávamos todos naquele sítio, em 2015, a apoiar a família do Akai Gurley, a lutar contra a violência e brutalidade das polícias de Nova-Iorque e dos Estados Unidos da América e a defender e declarar os direitos humanos fundamentais das pessoas negras que vivem nos EUA”, lembra.
Música de protesto? “Fazíamos isto quando não era popular”
Curiosamente, foi só depois de irem para estúdio e gravarem aquele que se tornou o primeiro e até agora único álbum dos Irreversible Entanglements — homónimo, editado em 2017 e composto por quatro temas com duração entre os 7:31m e os 15:55m — que os cinco membros do grupo se conheceram melhor a nível pessoal.
Gravado em 2015, lançado em duas editoras — a Don Giovanni, de Nova Jérsia, “ligada ao punk”, e a Chicago International Anthem, “mais próxima do jazz” — o álbum surge como resultado de “um compromisso” antigo mas pouco calculista dos elementos da banda com o mundo que os rodeia. “Com episódios como o [movimento] Occupy Wall Street e [os tumultos de] Ferguson, nos EUA, acho que se criou um certo fascínio novo com a chamada ‘música de protesto’, como lhe chamam, música que tem os políticos como interlocutores. Porém, para mim, para a Camae e penso que para os outros [membros deste quinteto] também, isto foi sempre um compromisso, fazíamos música política quando ela não era popular. Não gravámos este disco a pensar que era uma boa altura para o lançar, gravámo-lo porque sentimos que tínhamos de o fazer, porque as coisas que a Camae diz precisam de ser ouvidas. Só queríamos fazer a nossa música.”
Não tenho os entertainers como alvo, de maneira alguma, mas nós não estamos nisto pelo entretenimento. Já fazíamos esta música quando ela não dava dinheiro nenhum, quando não nos pagavam para tocar do outro lado do Atlântico. Estávamos e estamos comprometidos com ela. É bom levá-la aos ouvidos das pessoas e conhecer pessoas, é bom saber que ela afeta algumas pessoas, até porque pessoalmente vejo a criação musical como uma maneira de fortalecer comunidades e sociedades. Atravessar fronteiras, em que não acreditamos, através de viagens é também um ato com significado político em si. Agora, temos tido a sorte de poder tocar em bastantes cidades e em bons festivais mas somos só moderadamente bem sucedidos, não somos super estrelas”, afirma, terminando com um riso.
A possibilidade de “comprometer o que temos a dizer” não existe “de modo algum”, tal como o grupo não pretende “fazer as coisas mais rápido ou mais devagar do que nos é confortável”. O motivo? “Há uma grande diferença entre comércio e arte e não estamos mesmo cá pelo comércio. Pessoalmente, fico satisfeito que o meu trabalho tenha valor para a sociedade e me permita pagar algumas contas, receber uma remuneração pelo tempo e esforço que ponho nos concertos e na preparação do nosso trabalho. Mas uma lógica comercial não inspira nem influencia o que tenho de dizer nem o modo como o digo”, garante.
Para o saxofonista dos Irreversible Entanglements, a música deste coletivo depende tanto das palavras de Moor Mother como do método de composição do grupo, assente na improvisação a partir de estruturas melódicas ou textuais pensadas: “Para o álbum, a Camae trouxe alguns poemas e nós trouxemos temas, melodias e ideias para a estrutura base de algumas composições. Depois, improvisávamos muito. Não vetamos os textos dela: ela diz o que quer e precisa de dizer. Do mesmo modo, a Camae não veta as nossas ideias sonoras e instrumentais”, aponta.
[“Chicago to Texas”, um dos quatro temas do único álbum editado pelos Irreversible Entanglements até ao momento:]
A composição instrumental é um ato tão político quanto as palavras interventivas da diseur e poeta, pelo menos para Keir Neuringer: “A improvisação para mim é essencialmente uma prática de libertação. É livre e é liberdade expressa em música — e a liberdade é importante. Este tipo de improvisação em grupo que parte da experiência dos negros nos Estados Unidos da América não é apenas motivada pelo desejo de libertação como insiste na liberdade“, refere este saxofonista, cuja abordagem à música foi muito inspirada pela descoberta da música de Charlie Parker, que “persegue” há 30 anos e a quem “nunca conseguirá chegar” — eventualmente, “ainda bem”.
Não é assim tão usual ouvir-se jazz de improviso que não seja instrumental. O membro dos Irreversible Entanglements avisa que não está “a par de tudo o que está a acontecer nessa cena musical ou na indústria musical”, mas garante que conhece “algumas coisas contemporâneas que misturam poesia com free jazz” e lembra alguns coletivos antigos com quem o quinteto “dialoga”: o grupo Art Ensemble of Chicago e sobretudo o New York Art Quartet.
O princípio da liberdade: o Art Ensemble of Chicago faz 50 anos
Os EUA e Trump: “Isto está a ficar cada vez pior”
Se a música deste quinteto norte-americano almeja à libertação, para o saxofonista da banda a música está intrinsecamente ligada à denúncia de um regime de opressão aos cidadãos afro-americanos que ainda vigora. O tema não é escolhido ao acaso, dada a ascendência de quatro dos cinco membros dos Irreversible Entanglements (só Keir Neuringer, o nosso interlocutor, é caucasiano) e a descriminação que viram nas ruas dos Estados Unidos da América ao longo da vida.
Isto era um bom tema para outros membros da banda falarem, já que poderiam abordar as suas experiências pessoais. Mas posso dizer que acho que a libertação dos negros nos EUA não só é necessária, como é impossível libertarmo-nos todos sem que ela aconteça, já que este país foi fundado com base na opressão desumana dos negros e índios”, refere o saxofonista.
Atualmente, “ainda há leis que tornam mais difícil aos grupos historicamente marginalizados terem acesso a recursos, educação, trabalho, saúde e habitação — todas essas coisas de que uma pessoa precisa para ser bem sucedida e sobreviver na sociedade”, entende Keir Neuringer. “Claro que há obstáculos a essa libertação na cabeça das pessoas, claro que há muitos racistas nos EUA, mas há também obstáculos estruturais nas políticas de que parte da população beneficia e cujos beneficiados não têm vontade de alterar”. Para o saxofonista dos Irreversible Entanglements, “o sucesso de certos indivíduos [negros], sejam escritores, políticos, entertainers ou atletas não significa que estas injustiças e opressões estruturais não existem”.
Donald Trump, individualmente, está até certo ponto a salvo das palavras de Moor Mother no álbum deste quinteto, escritas antes da sua chegada à Casa Branca. O alvo é sobretudo a América que o elege. Desde que “The Donald” sucedeu a Barack Obama, o saxofonista dos Irreversible Entanglements nota “um sentimento de algumas pessoas de que é necessário aproximar-se mais dos seus entes queridos”. Algumas pessoas, diz, “estão mais despertas para as dificuldades que os outros passam e para as suas próprias dificuldades”. Ainda assim, o retrato é globalmente sombrio:
Vejo uma grande derrocada das estruturas sociais, vejo muito desespero e a morte da civilidade. Não sei o quanto isto vai piorar até começar a melhorar, mas sei que há pessoas a quem caiu a máscara, que sentem que podem agora ser abertamente agressivas, racistas e misóginas. No discurso mainstream nos EUA, tudo é binário. Se dizes que as crianças devem ser protegidas, há quem diga que tem o direito de magoar crianças e que os outros têm de lhe dar esse direito. Se alguém diz que é errado negar a dificuldade de acesso a educação e habitação por parte de grupos historicamente marginalizados, alguém diz: a culpa é deles, temos de construir prisões maiores para as pessoas que ainda não descobriram como é que se é tão bem sucedido quanto nós. Isto está a ficar cada vez pior”, lamenta-se o saxofonista.
Não renegando (pelo contrário, reclamando) uma vontade notória de intervir no meio em que se movem através da música, os Irreversible Entanglements não são no entanto “comentadores políticos”, alerta o músico. Mais do que isso, “para valorizarmos verdadeiramente a Camae como poeta e pessoa livre, temos de lhe dar liberdade para se expressar da forma poética que quiser, em vez de esperarmos apenas poesia que se zanga com a violência cometida contra negros neste país. Quero e sou compelido habitualmente a abordar estes tempos atuais na música que faço, mas isso não nos prende inevitavelmente”, refere.
“Estamos entusiasmados por tocar em Portugal”
O que esperar dos Irreversible Entanglements ao vivo? Surpresas. O grupo não dá dois concertos iguais, já que as atuações “têm de ser imprevisíveis”, caso contrário “não seria justo para o público”. “Temos de ser capazes de reagir ao que acontece em cada momento, a cada espaço, às pessoas e às cidades. É assim que damos tudo de nós em cada performance. De outra forma entraríamos num avião, dormiríamos num quarto de hotel, chegaríamos ao sítio do concerto e nunca lhe tocaríamos”, refere o saxofonista.
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Um dos concertos que mais marcaram Keir Neuringer aconteceu em Bruxelas. O quinteto atuava num local próximo da estátua do Rei Leopoldo II, que liderou uma colonialização da República do Congo entre o final do século XIX e o século XX em que aconteceram verdadeiras matanças de locais. Numa das mais infames, um oficial belga matou a tiro mais de 100 congoleses, em 1903. O saxofonista recorda o concerto: “O Rei Leopoldo II não é alguém que devamos colocar num pedestal, obviamente. Deve ser lembrado apenas como um dos seres humanos mais horríveis que já existiu. Passámos pela estátua quando íamos para o concerto e passámos a hora e meia de atuação a tocar — sem pausas — uma única composição altamente enérgica, em que a Camae proferia palavras sobre quem foi na realidade o Rei Leopoldo II. Foi uma das melhores atuações em que já participei, porque estávamos totalmente sincronizados, a reagir a uma estátua próxima erguida em nome de alguém que não merecia essa honra”.
Em Portugal, a banda atua esta terça-feira na Galeria Zé dos Bois, no Bairro Alto, em Lisboa, e no dia seguinte no edifício GNRation, em Braga, já depois de um primeiro concerto no Salão Brazil, em Coimbra. Energia não faltará “Estamos entusiasmados por tocar em Portugal. Por favor, garante que os teus leitores sabem disso”, remata o saxofonista dos Irreversible Entanglements. Assim foi, assim será.