Os grandes – aqueles que foram mesmo muito bons num determinado desporto, aqueles que marcaram gerações e colocaram crianças a assumir as suas identidades nas brincadeiras de ruas, aqueles que tantas vezes bateram recordes, que criaram legados e cujo nome dificilmente será esquecido – raramente terminam carreiras no auge da forma. No futebol, as estrelas optam cada vez mais por reformas antecipadas e milionárias, na China, no Japão, nos Estados Unidos e no Médio Oriente, acabando por pendurar as botas já sem a atenção internacional de outrora; no atletismo, são inúmeros os nomes de velocistas e especialistas de outras modalidades que tentaram a última glória e acabaram com um último falhanço, com Usain Bolt à cabeça; até na Fórmula 1, Michael Schumacher não resistiu a um regresso anos depois de ser heptacampeão e o melhor resultado que conseguiu foi um oitavo lugar geral com a Mercedes. Não é fácil largar aquilo que ocupou todas as horas de todos os dias de uma vida. E Lindsey Vonn, que terminou a carreira com um bronze no downhill dos Mundiais de Äre, não é exceção.
A esquiadora norte-americana passou os últimos anos a entrar e a sair de blocos operatórios, a suportar dores nos joelhos e a adiar um fim de carreira que parecia cada vez mais inevitável. No caso de Vonn, a persistência e perseverança era mais do que teimosia; no caso de Vonn, a persistência e a perseverança estavam relacionadas com um recorde. O do sueco Ingemar Stenmark, que entre 1974 e 1989 ganhou 86 etapas da Taça do Mundo – mais quatro do que a norte-americana, que tinha colocado o recorde do antigo atleta como o grande objetivo a alcançar depois de já ter conquistado tudo aquilo que tinha para conquistar. Mas o corpo, as lesões e as consequências de ter ocupado todas as horas de todos os dias de uma vida com o esqui não lhe permitiram continuar (numa novela que se repete e a que já assistimos este ano, com Andy Murray). Ao longo do ano de 2018, Lindsey Vonn foi adiando o último adeus para o final da presente temporada, em março. Mas, no final da semana passada, a atleta de 34 anos anunciou que esta será a última vez que compete profissionalmente, nos Campeonatos do Mundo que decorrem atualmente em Äre, na Suécia.
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“Estendi sempre os limites do esqui e isso permitiu-me ter um sucesso fantástico mas também algumas quedas dramáticas. Nunca quis que a história da minha carreira fosse sobre lesões e por isso mesmo decidi não contar a ninguém que fui operada na primavera passada. (…) A minha queda no Lago Louise no ano passado foi muito mais dolorosa do que aquilo que eu deixei transparecer mas continuei a correr porque queria ganhar uma medalha olímpica para o meu avô. Voltei a recuperar para regressar no verão e senti-me como não me sentia há muito tempo. Depois caí em Copper, em novembro, e magoei-me no joelho esquerdo, desfiz o ligamento lateral externo e tive três fraturas. (…) O meu corpo está quebrado e sem recuperação possível e não me deixa ter a temporada final com que sonhei. O meu corpo está a gritar-me para parar e é tempo de eu ouvir”, escreveu Lindsey Vonn no Instagram, referindo-se aos Jogos Olímpicos de inverno do ano passado, onde conquistou uma medalha de bronze (a terceira olímpica da carreira) na vertente downhill e a dedicou ao avô, que tinha morrido meses antes.
Ainda na longa mensagem que dirigiu aos fãs e onde anunciou o fim da carreira, Vonn garantiu que não está a desistir – e fez questão de o sublinhar. “Honestamente, não é retirar-me que me chateia. Retirar-me sem alcançar o meu objetivo é que vai ficar comigo para sempre. Contudo, posso olhar para trás e ver 82 vitórias na Taça do Mundo, 20 títulos mundiais, três medalhas olímpicas, sete medalhas em Campeonatos do Mundo e dizer que alcancei algo que nenhuma outra mulher na história alguma vez alcançou, e isso é algo que me vai orgulhar para sempre. (…) Preciso de vos dizer que não estou a desistir!”, acrescentou aquela que é a esquiadora, homem ou mulher, mais bem sucedida de sempre, a mulher com mais vitórias em etapas da Taça do Mundo e ainda uma de apenas seis que venceram corridas nas cinco disciplinas do esqui alpino: downhill, slalom super gigante, slalom gigante, slalom e super combinado.
Mas Lindsey nem sempre foi Vonn. Até setembro de 2007, Lindsey era Kildow. Nessa altura, com 22 anos e ainda sem qualquer título mundial, sem qualquer medalha olímpica e com apenas quatro terceiros lugares e um segundo nas classificações gerais da Taça do Mundo, Lindsey casou com Thomas Vonn e ganhou o apelido que a acompanha até hoje. O casamento com o também esquiador norte-americano, esse, terminou em 2011 e depois disso a atleta teve um namoro high profile com Tiger Woods (naquela que foi a primeira relação do golfista depois do escândalo de adultério). A imprensa especializada conta que atualmente vive com o jogador canadiano de hóquei no gelo P. K. Subban e tudo isto interessa para explicar que nos últimos anos a norte-americana atingiu um estatuto de celebridade que lhe garante presença assídua em passadeiras vermelhas de eventos como os Óscares e os Globos de Ouro, nas festas mais restritas dos Estados Unidos e numa elite onde normalmente só se encontram atores, realizadores e produtores ligados a Hollywood. Elite essa à qual, mais do que estar próxima, Lindsey pretende pertencer num futuro próximo – amiga de atores como Dwayne Johnson, já admitiu várias vezes que um dos passos que pretende dar agora que a etapa no esqui está a terminar é investir na representação e na participação em filmes.
Campeã olímpica na vertente downhill em 2010, no Canadá, conquistou no mesmo ano a medalha de bronze em slalom gigante e acabou por falhar os Jogos Olímpicos de inverno seguintes, em 2014, devido a lesão. Na Coreia do Sul, em fevereiro de 2018, regressou às medalhas e não deixou fugir a de bronze no downhill, a sua especialidade. Foi exatamente no downhill que Lindsey Vonn se despediu do esqui alpino este domingo com a medalha de bronze, após ter caído de forma aparatosa na prova de slalom gigante esta terça-feira (onde Mikaela Shiffrin acabou por se tornar campeã do mundo). Depois de socorrida pela equipa de emergência médica presente na pista, fez o que sempre fez quando caía em pista: terminou o circuito, ainda que não à velocidade de competição, e atravessou a linha da meta pelo próprio pé (ou pelos próprios esquis). Afinal, tal como mais tarde explicou no Twitter, “se as adversidades nos tornam mais fortes”, Lindsey Vonn é atualmente o Hulk, o gigante verde da banda desenhada. “Parece que fui atropelada por um camião de 18 rodas. O meu primeiro pensamento foi: ‘Que raio! Porque é que estou na vala outra vez? Porque é que estou aqui? Estou demasiado velha para esta m****'”, revelou a norte-americana em declarações pouco depois da queda.
. @lindseyvonn was unable to finish the final Super-G race of her career this morning at World Championships. #are2019 pic.twitter.com/HyVFmNy0zZ
— NBC Olympics & Paralympics (@NBCOlympics) February 5, 2019
Lindsey Vonn é um marco no esqui alpino e na última década do desporto norte-americano. Mas é muito mais do que isso: além de ser a cara de inúmeras marcas e campanhas de publicidade, a atleta tem aproveitado nos últimos anos o estatuto que entretanto adquiriu para influenciar os mais jovens e fazer diversos statements, da política à saúde e da educação à nutrição. Na antecâmara dos Jogos Olímpicos de inverno – realizados na Coreia do Sul, numa altura em que as relações entre os Estados Unidos e os vizinhos norte-coreanos ainda não estavam pacificadas –, Lindsey disse à CNN que esperava “representar as pessoas dos Estados Unidos, não o Presidente”. “Levo os Jogos muito a sério e aquilo que eles significam e representam, aquilo que representa caminhar debaixo da nossa bandeira durante a cerimónia de abertura. Quero representar bem o nosso país. E não acho que, atualmente, existam muitas pessoas no nosso Governo que façam isso”, acrescentou a atleta, deixando ainda claro que não visitaria a Casa Branca caso fosse convidada após a conquista de uma então ainda eventual medalha.
Este domingo, aos 34 anos, Lindsey Vonn esquiou pela última vez numa prova de alta competição e despediu-se daquilo que faz todas as horas de todos os dias desde que tem sete anos. O “próximo capítulo”, como escreveu no texto de despedida, estará relacionado com Hollywood e com a Lindsey Vonn Foundation, a fundação que criou para apoiar raparigas com bolsas que permitem estudar e praticar modalidades desportivas ao mesmo tempo. A rainha da neve vai pousar os esquis e procurar outras corridas: para trás, fica a história de como a miúda do Minnesota com ascendência norueguesa se tornou a melhor de sempre no esqui alpino.