Terminou este sábado o colóquio “António Botto & Fernando Pessoa: Poéticas em Diálogo”, que reuniu durante dois dias vários especialistas na obra dos dois poetas e no modernismo português em Lisboa. A palestra de encerramento, que aconteceu durante a manhã no Palácio Pimenta, no Campo Grande, esteve a cargo de Anna Klobucka, autora do mais recente estudo sobre o autor de Canções, O Mundo Gay de António Botto.

Admitindo que poderia vir a repetir muitas das ideias partilhadas pelos investigadores durante o primeiro dia de colóquio, na sexta-feira, a especialista focou-se nos “questionamentos levantados pela expressão ‘Pessoa leitor de Botto’”. A professora da University of Massachusetts Darmouth, que já tinha abordado a relação entre os dois poetas e amigos no seu livro, mas da perspetiva do autor de Ciúme, decidiu inverter os papéis para a comunicação deste sábado e falar antes da atenção dada por Pessoa à obra de Botto.

Passados 80 anos da morte de Fernando Pessoa e 60 da de António Botto, data que se assinala este sábado, esta relação “complexa” continua “a apresentar-se como um desafio para a crítica e para a história literária portuguesa”. Isto deve-se, em parte, como explicou Klobucka, ao facto de o lugar que Botto ocupa na história do modernismo português ser ainda alvo de uma acesa discussão, ainda que o poeta das Canções tenha sido o “autor português contemporâneo a quem Pessoa dedicou a crítica mais ampla e documentada”.

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Esta extensa análise crítica da obra bottiana começou em 1922, quando Pessoa publicou na Contemporânea o artigo António Botto e o Ideal Estético em Portugal, por altura da publicação de Canções pela sua editora, a Olisipo, e terminou em 1935, ano da sua morte, quando apareceu no Diário de Lisboa uma crítica à coletânea Ciúme. O primeiro, que deu início a uma acesa polémica nas páginas da revista literária, trata-se de “uma interpretação extremamente intelectualizada da estética poética proposta por Botto”, resumiu a especialista. A par dos textos que publicou, houve muitos outros que ficaram inéditos. Alguns deles só foram dados a conhecer já no século XXI.

“Para começar com um sentido mais lato de uma noção de ‘leitura, Pessoa não foi apenas um leitor assíduo mas também, e talvez sobretudo, um acompanhante atento do espetáculo da presença pública do amigo”, começou por explicar Anna Klobucka. “Lê tanto Canções, como assiste às interações” de Botto, um “homem gay desarmarizado pelo seu discurso homoerótico na primeira pessoa”. Essa “leitura do quotidiano”, como lhe chamou a investigadora, pode “ser encontrada no testemunho de Luís Pedro Moitinho de Almeida, filho do dono da empresa em que Pessoa trabalhava como correspondente comercial”. Segundo Moitinho de Almeida, Pessoa costumava contar “anedotas” sobre Botto, imitando os maneirismos vocais do amigo.

Outro testemunho da proximidade dos dois poetas são duas cartas enviadas por Pessoa a Botto durante a viagem que fez no início de 1927 com o infante D. Luis Fernando de Orleans y Borbón. Estas missivas, que se destacam “pela sua leveza elétrica”, foram dadas a conhecer por Jerónimo Pizarro e Nuno Ribeiro na edição de Canções que saiu em 2010 pela editora Guimarães, que continha a tradução dos poemas feita por Fernando Pessoa. Na opinião de Anna Klobucka, esta nunca “foi analisada em pormenor”. “Trata-se do maior volume de poesia homoerótica produzido por Pessoa, se entendermos que a tradução representa também o ato de produção e não apenas de reprodução literária”, afirmou a investigadora.

No que diz respeito às cartas, além de conterem observações feitas por Pessoa sobre “um poema homoerótico” que deveria ter sido incluído em Olympiadas (1927) mas que acabou por só sair mais tarde, em O Livro do Povo (1944), estas estão cheias de “nacos saborosos de comentários sobre amigos em comum”, nomeadamente Raul Leal, que projetam “uma voz pessoana distinta e única, não apenas por ser brincalhona, mas por aplicar este discurso às referências homoeróticas que populam as duas cartas de António Botto”.

Dando como exemplo os poemas “Faz-me pena dizendo” de Botto e “Olha, Daisy quando eu morrer tu hás-de” de Álvaro de Campos, que Klobucka acredita dialogar “com o modelo bottiano” de uma “forma mais complexa”, a investigadora afirmou que, ao contrário do que muitas vezes tem sido sustentado, existiu uma “interação complexa” entre os dois poetas e que “ambos amigos” beneficiaram “de forma igual e recíproca” dessa amizade.