Passados mais de 300 anos do seu nascimento, Voltaire permanece, indiscutivelmente, um dos nomes mais importantes da literatura e filosofia ocidentais. Poeta, dramaturgo, historiador, ensaísta e filósofo, foi uma das figuras de mais relevantes do Iluminismo francês. Autor de uma extensa e variada obra, estima-se que, ao longo dos seus 83 anos de vida (longa, para meados do século XVIII) tenha escrito cerca de 15 milhões de palavras. A última edição dos seus trabalhos, que apareceu em 1775, três anos antes da sua morte, em Genebra, era composta por 40 volumes. A edição definitiva, que tem vindo a ser publicada pela Oxford, deverá chegar aos 200.

Das várias dezenas de obras que Voltaire produziu durante a sua carreira de 60 anos, apenas uma se encontra com facilidade em Portugal — o trabalho de ficção Cândido, ou o Optimismo. Os restantes títulos que chegaram a ter uma edição portuguesa estão esgotados há várias décadas e só se conseguem comprar em alfarrabistas. Foi para colmatar essa ausência que a editora E-Primatur decidiu lançar um volume com a ficção completa de Voltaire, que estará disponível nas livrarias a partir deste mês de junho.

A ficção completa de Voltaire é uma das apostas da E-Primatur para junho

Além de uma cronologia biobibliográfica, onde se apresentam os factos mais importantes da vida do autor, e de um capítulo de miscelânea, este incluiu as obras:

  1. O mundo tal como está. Visão de Babuco, escrita pelo próprio;
  2. Mémnon ou a sabedoria humana;
  3. Os dois consolados;
  4. História das viagens de Scarmentado. Escrita pelo próprio;
  5. Micrómegas. História filosófica;
  6. História de um bom brâmane;
  7. O branco e o negro;
  8. Jeannot e Colin;
  9. Cândido, ou o Optimismo;
  10. O Ingénuo;
  11. O homem dos quarenta escudos;
  12. A Princesa da Babilónia;
  13. Zadig ou o Destino (História Oriental);
  14. As cartas de Amabed;
  15. Aventuras da memória;
  16. Sonho de Platão;
  17. Carta de um turco (sobre os faquires e sobre o meu amigo Bababec);
  18. Breve digressão;
  19. Aventura indiana;
  20. Elogio histórico da Razão. Pronunciado numa academia da província por M;
  21. História de Jenni, ou o Ateu e o Sábio;
  22. O ouvido do Conde de Chesterfield e o Capelão Goudman;
  23. O toiro branco;
  24. O carregador zarolho;
  25. Cosi-sancta, um pequeno mal por um grande bem, novela africana.

Com mais de 600 páginas, esta não é uma edição pequena. No entanto, para a E-Primatur, não havia razão para publicar as diferentes peças ficcionais de Voltaire de outra forma. “Não fazia sentido porque, quando os clássicos são divididos, há sempre a tendência de se comprar apenas o primeiro volume. E este é um volume importante. Trata-se também de uma ideia que temos estado a seguir”, explicou o editor Hugo Xavier ao Observador. A única exceção foi talvez H.G. Wells, cuja ficção curta, que tem vindo a ser publicada pela editora (o terceiro volume chega também este mês às livrarias), ocupa o equivalente a 900 páginas. “Isso já nos parece excessivo”, admitiu.

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Esta não, no entanto, é a primeira vez que se publicam todas as obras de Voltaire neste formato. A Editora Arcádia, que funcionou durante os anos 70 e 80, teve uma “edição semelhante” em dois volumes. Terá também havido uma de um só, embora não exista nenhum registo na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), como explicou Hugo Xavier. As traduções também não são novas. Foram feitas nos anos 50 e 60, por autores como Alexandre Pinheiro Torres, João Gaspar Simões ou José Marinho. Helder Guégués, recorrendo aos manuscritos que se encontram na Biblioteca Nacional de França, reviu-as e complementou-as, uma vez que existiam algumas imprecisões, talvez por difícil acesso às fontes originais.

Voltaire escreveu histórias “que transmitem mensagens filosóficas que conseguem chegar a todos”

Voltaire, que explorou diferentes géneros literários ao longo da sua vida, deixou uma obra de ficção de temas e abordagens variadas, que agora a nova edição da E-Primatur dá a conhecer ao público português na sua totalidade. O famoso Cândido, por exemplo, trata-se de um romance histórico inspirado pelo terramoto de Lisboa de 1755, mas em Micrómegas o filósofo francês explorou um domínio que é quase da ficção científica. Noutros textos, como A princesa da Babilónia ou Zadig, tomou como inspiração os cenários exóticos e criou universos fantásticos onde discutiu a filosofia da religião ou da política. Também se dedicou à sátira e à fábula moral, entre outros.

Para Hugo Xavier, a ficção de Voltaire revela “a riqueza da literatura do final do século XVII, início do século XVIII, que hoje é muito pouco conhecida por questões de linguagem”. Esta era geralmente “muito rendilhada”, “mas no caso de Voltaire, não é assim”. O escritor que, contava histórias para “explicar filosofia às pessoas”, seguindo uma tradição que já vinha de Platão, usava uma linguagem clara e fácil. “Ao tocar nestes géneros todos, estava a tentar explicar a filosofia a um público mais vasto. São pequenas histórias que transmitem mensagens filosóficas que conseguem chegar a todos os públicos. É por isso que foi extremamente popular na sua época entre todas as classes sociais”, explicou o editor.

Xavier acredita que a ficção de Voltaire pode servir como “incentivo para se entrar noutras áreas” da sua obra, que permanece de “extrema atualidade”. “Há a tendência de se achar que a filosofia é uma coisa muito abstrata. Não, a filosofia é pensar o dia a dia também. É sobre como governar uma casa, um país. É sobre polícia, boa política. Muitos filósofos desta época fizeram isso, como Rousseau, por exemplo.”

Uma vítima das modas

Se assim é, porque é que há tão pouco de Voltaire publicado em Portugal? Hugo Xavier acredita que tem a ver sobretudo com as modas. “A nossa cultura é muito limitada e isso reflete-se nas edições e nos temas [que são editados]. Se a certa altura se publica um determinado autor e este tem sucesso, todos leitores o querem ler.” Isso faz com que muitas obras clássicas não estejam disponíveis em Portugal, ao contrário do que acontece em outros países, como Espanha.

As políticas fiscais também poderão ter contribuído para a situação. “Nós [as editoras que se dedicam à edição de clássicos] temos de pagar os mesmos impostos que as editoras que publicam livros comerciais. Um clássico não é um livro de rotação rápida, e tem de se pagar impostos pelos livros que se tem no armazém. Uma editora que aposta nas obras clássicas acaba, por isso, por pagar mais impostos”, afirmou o editor da E-Primatur.

Mas nem sempre foi assim. Nos anos 50 e 60, houve editoras como a Portugália ou a Arcádia que se dedicaram intensivamente à publicação de grandes clássicos da literatura. “Contra mim falo, porque é parte do meu trabalho publicar clássicos, mas deveria haver um grande esforço de uma editora institucional de qualquer coisa semelhante para ter aqueles documentos fundamentais disponíveis”, defendeu Hugo Xavier. “Devia acontecer, mas não é o que acontece habitualmente.”