Que terá acontecido a 16 de julho do ano passado, quando o então ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, recebeu no seu gabinete o empresário José Berardo para falarem sobre o futuro da coleção de arte que este emprestou ao Estado? Há pelo menos duas versões dos acontecimentos e uma delas, agora revelada pelo Observador, coloca em causa a narrativa que favorece a atuação do Governo.

Naquele dia, e a seu pedido, Berardo apresentou-se ao lado do advogado, André Luiz Gomes, no Palácio da Ajuda, onde funcionam os serviços centrais do Ministério da Cultura, em Lisboa. Foi direto ao assunto e deu três novidades ao ministro. Primeira: preparava-se para vender 16 das 862 obras de arte contemporânea de que é proprietário e que em 2006 deram origem ao Museu Coleção Berardo, instalado no Centro Cultural de Belém através de um protocolo com o Estado. A venda teria lugar daí a pouco tempo na leiloeira Christie’s de Londres. Segunda novidade: com o produto do leilão, Berardo pretendia comprar novas obras para a coleção. Terceira novidade: em 2022, data em que termina o acordo de cedência das obras ao Museu Coleção Berardo, o empresário tomaria a iniciativa de criar um museu próprio, o que implicaria o desmantelamento da instituição tal como existe.

Desconhecidos até hoje, estes dados encontram-se em duas cartas enviadas por Berardo ao ministro da Cultura, em inícios de agosto de 2018. O Observador analisou-as esta semana e verificou a autenticidade junto do próprio Castro Mendes. O ex-titular da pasta não confirma todos os factos aí relatados por Berardo, nomeadamente esta passagem comprometedora: “Nem sua excelência o senhor ministro nem os três membros do seu gabinete que o acompanharam manifestaram qualquer oposição ou sequer estranheza com a venda de 16 obras de arte”.

A ser verdade esta versão – e apesar de a Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), tutelada pela Cultura, ter mesmo impedido a venda das 16 obras, através de um parecer jurídico emitido a 18 de agosto de 2018, um mês depois da reunião na Ajuda e cerca de duas semanas depois das cartas –, terá havido um momento em que o Governo achou perfeitamente normal que as valiosas pinturas fossem retiradas do Museu Berardo.

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O Observador perguntou esta semana a Castro Mendes se é verdade que não se opôs, na reunião de 16 de julho, à operação de venda que Berardo então lhe anunciou. Por escrito, o antigo ministro disse que “não estava ali a negociar, estava a ouvir, para depois decidir, com base no parecer que iria solicitar”. E acrescentou: “Limitei-me a tomar nota da intenção que então foi expressa pelo senhor José Berardo. Como é evidente, não cabia tomar ali, de imediato, uma qualquer posição por parte do Estado português, sem que os serviços competentes procedessem a uma completa avaliação da dimensão jurídica do problema.”

Fica por esclarecer se essa “dimensão jurídica” dizia apenas respeito à saída das obras ou se implicava um panorama mais vasto: a penhora judicial da coleção Berardo. As obras de arte da coleção Berardo são um objetivo antigo dos bancos a quem o comendador deve dinheiro. Um deles é a Caixa Geral de Depósitos, o banco público detido pelo Estado português a quem Berardo (ou a empresa e a Fundação que estão na sua esfera, a Metalgest e a Fundação José Berardo) deve mais de 350 milhões de euros.

A Caixa Geral de Depósitos, o BCP e o BES (atual Novo Banco) exigiram a Berardo um penhor (reforçado em 2010) sobre os títulos de participação da Associação Coleção Berardo (ACB), convencidos de que, dessa forma, poderiam vir a controlar as obras de arte, usando-as depois para mitigar as suas perdas. Mas tal nunca aconteceu, devido a manobras várias do comendador e do seu advogado no seio da ACB no decorrer do ano de 2016. E foi assim que os bancos formalizaram, em abril deste ano, um pedido de execução sumária sobre José Berardo e as suas empresas.

Documento mostra o que os bancos exigem a Berardo (e o que Berardo não pagou)

Mas desde há muito, sobretudo de 2016 em diante, que circulavam publicamente suspeitas de que a banca, nomeadamente a Caixa Geral de Depósitos, pretendia penhorar as 862 obras depositadas no Museu Coleção Berardo, para assim reduzir as perdas com os créditos contraídos por Berardo. Esse conflito jurídico, ainda não totalmente esclarecido, incluiu uma batalha, entre abril e outubro de 2016, pelo controlo da Associação Coleção Berardo, a dona oficial das obras. A banca perdeu, estando atualmente manietada nessa frente. Certo é que enquanto Berardo (e o seu advogado) lutavam para manter as obras fora do controlo da banca a quem o comendador devia, em conjunto, mais de 950 milhões de euros, estavam em negociações com o acionista da CGD, o Estado português (representado pelo Governo de António Costa).

Em novembro de 2016, Berardo assinou com o ministro Castro Mendes uma renovação do protocolo de 2006 que cedeu parte do acervo do empresário ao Estado. E, no verão de 2017, o ministro iria declarar ao “Público”: “O Governo não teve conhecimento à data dessa renovação, tal como não tem à data de hoje, da existência de qualquer penhora”.

Furioso, Berardo fez ameaças

As missivas são breves, têm uma linguagem assertiva, por vezes contundente, e surgem assinadas pelo punho de Berardo, na qualidade de presidente da Associação Coleção Berardo (ACB), a entidade legalmente proprietária das obras de arte e à qual ele próprio preside. Têm números de registo na secretaria do ministério, 3689 e 3725, e foram enviadas ao antigo titular da pasta a 6 e 8 de agosto de 2018, depois de ao empresário ter chegado uma primeira informação da DGPC a desautorizar a saída das 16 obras do país (ainda antes do parecer final da DGPC de 18 de agosto).

A 30 de julho, já depois da reunião na Ajuda, a diretora-geral do património, Paula Araújo da Silva, remetera um primeiro ofício a Berardo a dizer que os 16 quadros não poderiam ser comercializados pela Christie’s e que Castro Mendes estaria de acordo com ela. Furioso com o que interpretou como sendo uma mudança de posição do ministro, Berardo escreve-lhe a 6 de agosto e pede a revogação da decisão de Paula Araújo da Silva, argumentando tratar-se de um “ato com patente desvio de poder” e dizendo, até, que tal ordem “coloca em crise o relacionamento institucional” entre a ACB e o ministério.

Na carta de 8 de agosto, o empresário reafirma: o ministro “apenas” mostrou “algum cuidado com a adequada publicitação” da venda, por forma a que o executivo não ficasse mal visto perante a opinião pública. Utiliza várias expressões para classificar a decisão inicial da DGPC: “comportamento abusivo do Estado”, “compressão do direito de propriedade privada”, “ato abusivo eivado de má-fé”. E ameaça recorrer aos tribunais, ao escrever que o travão à venda das 16 obras “será tratado nas sedes próprias”.

No mesmo tom de contenda, o empresário transmite ao ministro, também a 8 de agosto, que vai “exigir a imediata atualização do capital da apólice de seguro” de responsabilidade civil sobre a Coleção Berardo e queixa-se em termos genéricos das instalações e das exposições do museu (sendo certo que, à luz dos estatutos, quem tem poder para nomear a direção artística do museu, responsável pela exposições, é o próprio Berardo).

“Abstract Painting”, de Gerhard Richter, é um dos 16 quadros que Berardo queria vender

Cerca de duas semanas depois das missivas, a DGPC tomou uma decisão final, dessa vez baseada em parecer jurídico homologado por Paula Araújo da Silva a 18 de agosto – e cuja existência foi noticiada já este ano, a 8 de abril, pelo jornal “Expresso”. O mesmo documento, que o Observador também consultou esta semana, considera os 16 quadros “parte integrante” da coleção que o empresário cedeu ao Museu Berardo em 2006, logo, “deve ser vedada” a saída das obras do território nacional. Entre essas obras, escreveu o jornal “Público” em abril último, contavam-se “algumas das mais significativas da coleção”, como, por exemplo, “Abstract Painting”, de Gerhard Richter, “Tableau (amarelo, preto, azul, vermelho e cinzento)”, de Piet Mondrian; ou “Oedipus and the Sphinx After Ingres”, de Francis Bacon.

Mas será que antes das duas decisões da DGPC o então ministro não se importava que as obras fossem vendidas? Se Castro Mendes não anuiu, como Berardo garante ter entendido, porque motivo escreveu o empresário na carta de 6 de agosto que o então governante se tinha manifestado na reunião preocupado com que “a venda fosse bem comunicada para não causar problemas de imagem política” ao Governo? Deveria o ministro ter imediatamente mostrado estranheza, discordância ou dúvida sobre a ideia de alienação e venda das 16 obras, para assim marcar posição? Castro Mendes, que esteve no cargo entre abril de 2016 e outubro de 2018, deu agora uma longa resposta ao Observador.

“Recordo-me de, na ocasião, ter alertado o senhor José Berardo para os efeitos públicos negativos que a sua intenção de fazer sair as obras do país teria para a sua própria imagem pública. Não tem qualquer sentido falar, neste contexto, da imagem do Estado, que não era parte da intenção manifestada e cujo comportamento, como é óbvio, se rege apenas pela lei que vigora e pelos contratos que assume. Como, aliás, acabou por acontecer, com toda a transparência. Também é, no mínimo, estranho que o senhor José Berardo possa transformar em ‘anuência’ – tanto mais incompreensível quanto uma qualquer decisão necessitaria de uma prévia avaliação jurídica, como veio a ser feito – o que constituiu um mero alerta para os inconvenientes, para ele próprio, da atitude que anunciava desejar tomar.”

Para demonstrar que nunca mudou de opinião neste tema, o antigo ministro sublinhou ainda: “A decisão posteriormente comunicada pela DGPC, no sentido de negar a autorização pedida, foi tomada, naturalmente, sob a minha inteira responsabilidade política”.

Sublinhe-se, porém, que em abril, quando o “Expresso” noticiou a existência do parecer da DGPC que travou a saída das obras, Castro Mendes declarou ao “Público”: “O senhor Berardo veio falar comigo, ouvi sem comentários o pedido que fazia”. O ex-governante disse esta semana ao Observador que confirma “todas as anteriores declarações sobre este assunto”, mas em rigor deu agora a entender que, afinal, não ouviu sem comentários, pois fez pelo menos um comentário relevante na reunião com Berardo: o referido “alerta para os inconvenientes”.

A carta de 8 de agosto está carregada de queixas e ameaças, o que pode demonstrar que à época Berardo tinha suficiente segurança para se dirigir ao ministro em termos contundentes, aparentemente sem consequências. A decisão de avançar com a criação de um museu próprio, disse então, “funda-se não só na vontade de, dessa forma, melhor cumprir os seus fins estatutários [da ACB], como também em mais de 10 anos de incumprimentos do protocolo, que foram sendo denunciados aos sucessivos ministros.”

Segundo ele, esses incumprimentos tinham que ver com o montante anual para funcionamento e atividades do museu, o qual sai do orçamento do ministério, conforme estabelecido no protocolo de 2006. “Tais incumprimentos agravaram-se de forma exponencial a partir de 2010”, registou na carta, e “foram justificados pelo Estado português com os programas de apoio financeiro a que a República se viu forçada a submeter” (intervenção da troika), o que “foi merecendo a tolerância da ACB”. Disse mais: “Para se ter uma ideia da dimensão dos incumprimentos, e do seu sucessivo agravamento, anote-se que o contributo do Estado foi em 2007 de mais de quatro milhões de euros, fixando-se em 2018 em apenas 2,1 milhões.”

No depoimento enviado ao Observador, Castro Mendes preferiu não responder a uma pergunta sobre a anunciada intenção do empresário de desmantelar o Museu Coleção Berardo a partir de 2022 — hipótese que ganhou consistência esta semana perante a notícia de que Berardo comprou em 2018 um edifício de 30 mil metros em Azeitão que poderá dar origem a um espaço cultural denominado Bacalhôa Berardo Collection, segundo o “Jornal Económico”. “Não tenho mais comentários a fazer”, concluiu o antigo governante.