Nesta quarta-feira às 10 da manhã, André Albuquerque e outros membros do CENA-STE (Sindicato dos Trabalhadores do Espectáculo, do Audiovisual e dos Músicos) sentam-se pela primeira vez à mesa com a ministra da Cultura para debaterem uma crise que se arrasta há meses e que poderá agora aproximar-se de um desfecho.
O sindicato, com filiação na CGTP, defende que os técnicos do Teatro Nacional de São Carlos (TNSC) devem ter um aumento salarial de 170 euros por mês, já a partir de setembro, para assim se equipararem aos técnicos da Companhia Nacional de Bailado (CNB). Chamam-lhe “harmonização salarial”. Mas sem um regulamento interno aprovado, cujo projeto de redação estará do lado do ministério, a harmonização não avança.
O TNSC e a CNB têm sede em Lisboa e desde 2007 passaram para a alçada do Organismo de Produção Artística (Opart), por sua vez tutelado pelo Ministério da Cultura e pelo Ministério das Finanças. A ministra Graça Fonseca garante ter o “firme e sério compromisso” de “resolver de forma estruturada” os problemas do Opart, mas no domingo, em artigo de opinião no jornal “Público”, acusou o sindicato de desvalorizar três avanços: um anunciado investimento de três milhões de euros na recuperação do edifício do TNSC, a anunciada criação de um espaço de ensaio para os músicos da casa e a aprovação do Estatuto do Bailarino.
O Opart introduziu as 35 horas de trabalho semanal em setembro de 2017, o que levou a que o salário dos técnicos de São Carlos, historicamente mais reduzido, passasse a estar de forma muito clara abaixo do salário dos colegas da CNB. Há cerca de 20 pessoas nesta situação, segundo a organização sindical.
Se a equiparação dos ordenados é a causa principal da crise, outras reivindicações surgiram da parte dos artistas, desde logo membros do coro e da Orquestra Sinfónica Portuguesa (integrantes do TNSC). Passaram a exigir, por exemplo, uma sala de ensaios para os músicos, melhores condições de trabalho e pagamento de horas extraordinárias.
O encontro no Palácio da Ajuda surge depois de uma greve nos dias 7, 9, 11, 14 e 16 de junho, em função da qual foram canceladas todas as récitas ópera “La Bohème”, o que terá arruinado a atual temporada lírica.
Mas mesmo de reunião marcada, o CENA-STE anunciou na segunda-feira à noite a marcação de novas greves, agora para os bailados “Nós Como Futuro”, dias 27, 28 e 29 de junho, e “15 Bailarinos e Tempo Incerto”, a 17 e 18 de julho, que engrossam uma lista já conhecida de pré-avisos de greve: bailado “Dom Quixote”, de 11 a 13 de julho no Teatro Rivoli, no Porto, e Festival ao Largo, de 5 a 27 de julho.
Em entrevista ao Observador, André Albuquerque, membro da direção do CENA-STE, explica o que está em causa e como se chegou até aqui. Acusa o Governo de ter “rasgado” um acordo que o sindicato assinou com a administração do Opart há menos de três meses e garante que esta sequência de greves nada tem que ver com as eleições legislativas de 6 de outubro.
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O Ministério da Cultura está aberto ao diálogo, mas o CENA-STE apresentou novos pré-avisos de greve: é uma forma de pressão para o encontro de quarta-feira com a ministra Graça Fonseca?
Não propriamente, é um ato de coerência. Sabíamos que estes espetáculos da CNB iriam acontecer, só não sabíamos ao certo em que dias e horas, por isso, não apresentámos os pré-avisos mais cedo. O nosso departamento jurídico disse-nos que seria arriscado entregar pré-avisos sem referir datas concretas.
Mas o governo está disponível para negociar, certo?
Não temos informação de que esteja. A reunião foi marcada pelo Ministério e a convocatória diz que o senhor primeiro-ministro delegou na ministra da Cultura o pedido de reunião que lhe dirigimos a ele na semana passada. Não nos foi dito que seria para retomar as negociações. Esperamos que nos apresentem uma solução, para que, depois, sim, possamos retomar as negociações.
A ministra estará presente?
É essa a indicação que temos.
O que é que lhe dirá?
Vamos remeter para a posição de antes da suspensão das negociações [29 de março]: queremos um regulamento interno aprovado até 15 de setembro para que ainda em setembro haja pagamento dos salários atualizados e com retroativos. Mas há outras questões, e por isso é que esta greve se alarga a todos os trabalhadores da casa. Todos sentiram que houve uma falta de respeito muito grande por parte da administração e da tutela. Quando se falha um compromisso, a confiança das pessoas em quem assinou e em quem permitiu que se assinasse, baixa bastante. Não esquecemos esse desrespeito pelos trabalhadores, pelo único teatro de ópera do país e pela única companhia pública de dança do país. O sindicato está também preocupado com a gestão, com programação, com o fraco financiamento. A ministra mete os pés pelas mãos ao dizer que no Governo anterior houve um corte de 2,5 milhões de euros e que o atual governo conseguiu recuperar 1,9 milhões. Ora, a conclusão é de que este Governo nem ao nível de financiamento anterior conseguiu chegar e não estamos a falar de valores abismais. Exigir-se-ia mais, visto que o caminho de desinvestimento não foi exclusivo do governo PSD-CDS e da troika, já vinha de trás.
Ainda não se percebeu bem o que é que um regulamento interno tem que ver com questões salariais.
As últimas leis do Orçamento do Estado referem que o desbloqueamento de carreiras, logo, o desbloqueamento salarial, só pode ser feito nas empresas públicas que tenham instrumentos de regulação coletiva do trabalho (IRCT) ativos. O regulamento interno não é um IRCT, e essa questão apareceu no Opart e noutras empresas do Estado. Ora, onde não havia Acordo de Empresa, esse, sim, um IRCT, o Ministério das Finanças fez uma ressalva: um regulamento interno passaria a ser aceite como IRCT. É estranho, mas respeitamos essa regra.
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Porque é que até agora o sindicato e a tutela não chegaram a acordo sobre os termos desse regulamento interno?
Em junho do ano passado, foi-nos apresentada uma pré-proposta da administração do Opart, em relação à qual iríamos apresentar alguma linhas vermelhas do ponto de vista dos trabalhadores. Ficámos à espera e nada. Durante o verão, a proposta continuou sem aparecer. Em setembro, os trabalhadores técnicos disseram à administração que ponderavam ir para tribunal e a administração pediu para esperarem. Chegados a março de 2019, e ainda sem nenhuma proposta de regulamento para analisar, os trabalhadores decidiram avançar para uma greve ao espetáculo “L’Étoile”. Houve greve ao ensaio-geral, a 29 de março, e nesse mesmo dia dois vogais da administração do Opart [Samuel Rego e Sandra Simões] assinam com o sindicato um acordo que prevê a discussão do regulamento interno em abril e o início da harmonização salarial em junho, além do levantamento dos problemas nos edifícios do TNSC e do Teatro Camões [sede da CNB].
Mas a ministra diz que os dois vogais extravasaram as suas competências.
O acordo foi assinado pelos dois vogais com autorização do presidente da administração [Carlos Vargas] e, ao que tudo indica, com a concordância do Ministério da Cultura. Sabemos que houve comunicação interna: no dia 29 foi-nos dito claramente que havia autorização da tutela e só agora é que a tutela veio dizer que os dois vogais assinaram o acordo à revelia. Membros do gabinete da senhora ministra, de 26 a 29 de março, disseram-nos sempre que a situação estava delegada na administração do Opart. Na verdade, o dr. Carlos Vargas pediu para não divulgarmos o conteúdo publicamente do acordo que assinámos. É isto que sabemos.
Os dois vogais ainda estão em funções?
É uma situação caricata. Não serão reconduzidos no cargo, mas continuam em funções sem terem funções. O próprio presidente do Opart decidiu ir de férias esta semana, em vez de tentar resolver este problema de forma rápida. Os trabalhadores tirarão as suas ilações.
Como é que comenta o artigo da opinião em que a ministra criticou o CENA por não reconhecer vários avanços da responsabilidade do Governo?
É uma inverdade. Em todos os nossos comunicados e em todas as conversas com a tutela e com a administração do Opart valorizámos sempre o que havia a valorizar. O CENA valoriza, e muito, haver três milhões de euros para obras no edifício do TNSC. A pergunta que colocamos é esta: o que é que aconteceu ao plano de 40 milhões de euros que estava a ser estudado nos gabinetes da Ajuda pelo anterior secretário de Estado da Cultura, Miguel Honrado? O que é que aconteceu aos mais de quatro milhões de euros que em 2017 estiveram destinados a obras que nunca se realizaram? O que é que aconteceu às obras de fachada, financiadas pela Fundação Mirpuri, que iriam acontecer no primeiro semestre de 2019? Relativamente à questão dos bailarinos, sempre valorizámos os avanços no sentido de se criar um estatuto profissional do bailarino. Também valorizámos a promoção de cinco bailarinos da CNB que estavam há anos à espera. Mas, então, porque é que a harmonização salarial dos técnicos não acontece? Tanto para uma coisa como para a outra, tanto a tutela como a administração, tinham-nos dito que seria preciso aprovar um regulamento interno. A administração e a tutela é que têm protelado as soluções.
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Mas se só falta resolver a questão salarial a ministra consegue ou não demonstrar que está a fazer o melhor possível?
Se há três milhões para as obras, porque é que não há 60 mil euros para este diferendo laboral? Desde setembro de 2017, temos cerca de 20 trabalhadores técnicos a receber um salário que não é legal e que não obedece ao princípio constitucional de trabalho igual, salário igual. Chegámos a um ponto em que, do outro lado, não havia interesse em discutir um regulamento interno com base nas nossas exigências.
É a primeira vez que o CENA se reúne com o ministério por causa deste assunto?
No dia 26 de março, o ministério quis criar um grupo de trabalho que incluísse o sindicato, o Opart, as Finanças e a Cultura, para se estudar o regulamento interno. Dia 29, tivemos a confirmação de que o grupo de trabalho avançaria, mas a 10 de abril a administração enviou uma proposta de regulamento para análise prévia da Cultura, e a Cultura, obrigando a administração a falhar o compromisso assinado com o sindicato, nunca fez essa análise. O nosso compromisso com o Opart foi rasgado por causa disso no que dizia respeito à harmonização salarial. Foi então que decidimos avançar com greve ao “La Bohème” e a outros espetáculos e aumentar as reivindicações. Só em maio é que o grupo de trabalho se reuniu pela primeira vez..
O CENA tem sobretudo apontado o dedo à Cultura, mas as Finanças também tutelam o Opart.
O Governo é que tem tentado desviar as atenções das Finanças apenas para a Cultura. Aliás, na reunião do grupo de trabalho estavam representantes da Cultura e nenhum das Finanças. Temos dito sempre que queremos garantias dos dois ministérios, mas não fazemos finca-pé em sermos recebidos por este ou por aquele, queremos é resolver o problema.
Reconhece os números de adesão à greve divulgados pelo Opart? Mostram uma forte quebra ao longo dos dias.
Não conseguimos falar sobre números, porque não temos noção de como é que o Opart fez o cálculo. Sabemos que os espetáculos não aconteceram e que à porta do São Carlos estavam 100 a 150 trabalhadores nos dias da greve, incluindo vários da CNB. E temos a certeza absoluta de que, se a greve continuar, os espectáculos continuarão a não se realizar. Desde há vários dias, e agora ainda mais, com ao artigo de domingo da senhora ministra, estamos estupefactos com o que tem sido a posição do Governo e do presidente da administração do Opart.
O Opart transmitiu à imprensa de forma clara as contas que fez: contou apenas trabalhadores do TNSC afetos à produção de “La Bohème”, num total de 180. E a adesão foi diminuindo: 117 pessoas no primeiro dia, depois 71, depois 63.
Sim, mas como só estávamos a fazer greve às récitas noturnas, a partir das 19h00, aqueles trabalhadores que entravam mais cedo e picavam o ponto eram ou não contabilizados como estando ao serviço? Não temos essa informação.
Teme que se faça uma leitura partidária destas greves, por elas surgirem em ano de eleições?
Isto está longe de ter relação com as eleições. Em setembro de 2017, os trabalhadores e o sindicato chamaram logo a atenção para o assunto. A administração justificou naquela altura não seria possível fazer a harmonização salarial e nós compreendemos. No início de 2018, voltámos à questão e os administradores disseram-nos que infelizmente, tendo em conta o orçamento do Opart, também não seria possível fazer a harmonização. Começámos a pensar em ir para tribunal, mas também vimos que a demora seria longa, que o Estado seria onerado com pagamento de juros, que iríamos entupir ainda mais os Tribunais do Trabalho. Continuámos a falar com a administração e vem-nos a informação de que o Ministério das Finanças só aceitaria a harmonização salarial, e outras questões, como a progressão das carreiras, se existisse um regulamento interno no Opart.
Põe a hipótese de suspensão das greves anunciadas?
Se a senhora ministra nos garantir que até 15 de setembro vamos negociar o regulamento interno do Opart com toda a tranquilidade e que no mês de setembro o salário dos técnicos será processado com os devidos ajustes, então o sindicato irá imediatamente consultar os trabalhadores e imagino que eles possam decidir pelo levantamento da greve, para que os espetáculos passem a decorrer com toda a normalidade.