O escritor Gonçalo M. Tavares dedicou-lhe um livro da série “O Bairro” e João César Monteiro fez com um poema dele, do “Senhor Walser”, o seu filme mais polémico: “Branca de Neve” (2000). Por essa altura Victor Silva Tavares editou na &etc três dos dramoletes inspirados nos contos de fadas, que o escritor suíço escreveu nos primeiros anos do século XX. Atualmente a sua obra está quase toda publicada na Relógio d’ Água e em maio a nova editora independente BCF, de João de Brito, trouxe-nos Caminhadas com Robert Walser, escrito pelo poeta judeu suíço Carl Seelig, nas quais este rememora os passeios e as conversas que, durante mais de duas décadas, teve com Walser, quando este já estava internado no manicómio onde passou a última parte da sua vida, Herissau.

Considerado um dos nomes maiores do modernismo e criador de personagens e ambientes paradigmáticos do homem novo que o século XX engendrou: obediente, servil face ao poder, massa informe a engrossar as fileiras dos vários regimes totalitaristas. Criador de uma galeria de homens que se recusam a participar no mundo e nas suas regras que impõem o sucesso financeiro e social, a fama e a prepotência como sentido para vida. Ele próprio doente mental, esquizofrénico, com profundas dificuldades sociais aliadas a uma inteligência e uma lucidez vibrantes, que preferia caminhar nas florestas, nos bosques, nos caminhos esconsos, que era fascinado por tudo o que parecia ser invisível aos olhos dos outros, com um interesse maníaco pelo pequeno, pela miniatura, pelo irrisório.

Caminhadas com Robert Walser, edições BCF,

Walser , nascido em 1878, escreveu sensivelmente entre 1907 e 1929, não chegou a conhecer o checo Franz Kafka, embora tenham sido contemporâneos, mas Kafka conhecia bem Walser, os seus dramoletes, os seus romances, os seus poemas. O amigo Max Brod há-de contar que o checo era um grande entusiasta dos livros de Walser e gostava de ler em voz alta excertos das suas obras. E sobre eles o escritor Elias Canetti dirá que “sem Walser, Kafka jamais teria visto a luz do dia”.

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Os seus universos pareciam convergir de tal modo que quando Kafka publica os primeiros textos na revista Hyperion, muitos pensaram tratar-se de um pseudónimo de Walser a ponto de o editor ter que vir a público confirmar que Kafka existia mesmo. Já Walser nunca conheceu ou leu Kafka, não gostava que lhe dissessem que era admirado por este, nem que aludissem ao facto de que a sua escrita tinha admiradores e que era famoso. Tais ideias horrorizavam-no e, numa das conversas agora publicadas, Seelig escreve: “Nunca esquecerei uma manhã de Outono em que fomos a pé de Teufen a Speicher, atravessando um nevoeiro espesso como algodão. Disse-lhe que a sua obra literária duraria talvez tanto tempo como a de Gottfried Keller  [escritor suíço muito admirado por RW]. Estacou de súbito e, como que preso ao chão, olhou-me com extrema gravidade. Respondeu que, se eu queria preservar a sua amizade, nunca mais lhe repetisse semelhantes elogios. Ele, Robert Walser, era um zero e queria ser esquecido.”

O autor de obras primas como Jacob Von Gunten, O Passeio, O Ajudante, gozou de um relativo sucesso logo nos anos de juventude mas a partir da década de 20 foi caindo no esquecimento e a sua obra só viria a ser redescoberta nos anos 60. A sua vida atribulada, a incapacidade de se manter num emprego ou em estabelecer relações sociais próximas, temporadas a viver com a ajuda dos irmãos, os quartos alugados, a falta de dinheiro e, por fim o internamento psiquiátrico não terão favorecido nem o seu trabalho literário nem o esforço pela divulgação dos seus trabalhos.

Em 1929, Robert deixa pura e simplesmente de escrever e de se interessar por qualquer assunto ligado à sua obra. Esta existência quase anónima, a percorrer trabalhos humildes, o crescente isolamento social não deixam de nos fazer lembrar aquele judeu checo e tuberculoso, inflexível e maníaco também ele fascinado pelo pequeno, acossado pelo desejo de desaparecimento, de apagamento que acabaria por, metaforicamente, transformá-lo lo num inseto, mas também nos evoca qualquer coisa do solitário e alcoólico Fernando Pessoa, do sombrio suicida Walter Benjamim. Tal como Jacob von Gunten, Gregor Samsa ou Bernardo Soares ecoam em si o obstinado Bartleby, personagem incontornável de Herman Mellville, o escrivão que a todas as ordens respondia “I would prefer not to” (preferia não o fazer).

Robert Walser nasceu em 1879, em Biel no cantão de Berna (Suíça) e abandonou a escola aos 14 anos

Quando em Portugal se discutem os méritos da meritocracia, em que a apologia da fama, riqueza e sucesso como sentido para a vida, quando todos somam  destinos turísticos, fotos na piscina e creem que fazer-se fotografar em cidades e monumentos  é viajar e que somos obrigados a tudo ver e tudo conhecer sob a ameaça de passarmos pela vida em vão, é maravilhoso que venha uma pequena editora lembrar-nos de Walser e das suas caminhadas nos bosques suíços, de preferência no inverno e com neve.

Caminhadas que nada tinham de viagem, peregrinação, rebeldia ou afirmação identitária; eram a mais pura vagabundagem onde o que menos importava era a partida ou o regresso, mas tão só o caminho, o movimento, os pequenos detalhes da paisagem, das nuvens, do céu, das cores dos bosques. Neste sentido, Robert é a antítese de Jack Kerouac da estrada como aventura e redenção ou do melancólico flaneur de Baudelaire, na sua relação de atração e repulsa pela cidade moderna e as suas promessas. Aliás, Walser queria distância das cidades, das estradas principais, de tudo o que lhe exigisse comparecer às praxes sociais.

Este livro, Caminhadas com Robert Walser é aquilo podemos ter de mais próximo de um diário que ele não escreveu. Os passeios de Carl Seelig e do escritor começaram em 1936, em plena segunda Guerra Mundial e prolongaram-se até à morte de Walser, em 1956. Uma ou duas vezes por ano Seelig ia visitá-lo o hospício de Herissau e passavam o dia a caminhar pelos campos e bosques próximos. As memórias dessas excursões, das conversas com Walser, da sua forma de ser, de pensar, das suas obsessões e delicadeza, foram anotadas durante estas duas décadas e é delas que se compõem este volume agora editado em português.

Para quem nunca leu o criador de Jacob von Gunten este pode ser apenas um livro curioso onde vemos desfilar dois homens que falam quase só de literatura e paisagens, quase totalmente indiferentes à guerra que aniquila a Europa em seu redor e em que um deles parece ter sobre a condição humana, a literatura, a arte o conhecimento de um sábio antigo, que nunca aceita explicar o mundo pelas vias mais fáceis, além de uma especial capacidade para se colocar no lugar dos outros, mesmo que esses outros sejam assassinos, mentirosos, diletantes.

Para os que conhecem o livros de RW e já se deliciaram com o seu universo de homens medíocres, sem graça nem mistério, absurdos de tão irrelevantes, tão felizes por não serem ninguém, é uma oportunidade de ver como, na vida real, Robert era tão igual às suas personagens (que alias ele nunca escondeu serem inspiradas nas suas próprias vivências), apenas como menos ironia. Neste livro de Seelig encontramos quase uma continuidade do conto walseriano O Passeio, que descreve o itinerário de um homem que deambula numa cidade e cujas mesuras, saudações e vénias perante tudo e todos revelam, de forma hilariante, o absurdo e a farsa dos nossos comportamentos e convenções sociais.

“Sabe porque não me tornei um escritor de sucesso?Quero dizer-lhe: é que não possuía um instinto social suficientemente desenvolvido. Não representei o suficiente para agradar à sociedade. Olhe que foi mesmo assim! Hoje vejo-o claramente. Entreguei-me demasiado aos meus prazeres pessoais. Sim, é verdade, sempre tive a tendência para me tornar uma espécie de vagabundo e quase não lutei contra ela. Esse lado subjetivo irritou os leitores d’ Os Irmãos Tanner. Para eles o escritor não deve perder-se na subjetividade. Acham pretensioso levar tão a sério a sua pessoa. Como está enganado o escritor que supõe que o mundo se interessa pelos seus assuntos privados. A minha estreia literária gerou logo a impressão de que os bons burgueses me aborreciam, de que não os achava bons o suficiente. E eles nunca o esqueceram. Consideraram-me sempre um zero à esquerda, um inútil. Deveria ter misturado nos meus livros um pouco de amor e de tristeza, de solenidade e de aprovação.” [ Robert Walser a Carl Seelig]

Homens sem qualidades

O filosofo Walter Benjamin defendia que na galeria de personagens de Walser todos estavam “curados” ou seja, todos são eternos convalescentes, porque neles não há mais nada senão a pueril felicidade de quem redescobre nas coisas banais o prazer de estar vivo. “Eu nunca serei alguém e sabê-lo com toda a certeza faz-me estremecer de estranha satisfação”, diz a dada altura Jacob Von Gunten. E esta satisfação, à qual todos nós chamaríamos tola, sem ambição, preguiçosa é transversal a todas as criaturas que inventou. Criaturas que “servindo e submetendo-se, oscilam entre a abjeção e a santidade: negam-se a si mesmos, anulam a sua vontade, decretam a própria extinção. O herói de Walser é magnânimo pela grandiosa determinação com que aceita a própria abjeção, a aviltante ausência de personalidade”, escreve Claudio Magris. Nada mais hostil a este tempo de desenfreadas lutas identitárias, onde todos exigem ser reconhecidos como especiais.

Durante vários anos viveu entre a Suíça e a Alemanha e foi em Berlim que começou a publicar na esfera do famoso editor Insel Verlag

Antes de Kafka ou de Pessoa, já Walser tinha criado um universo de homens que não só não queriam ser nada como não tinham em si todos os sonhos do mundo, não tinham sequer grandes pensamentos sobre coisa alguma, mas não admitiam que o mundo tivesse para com eles qualquer condescendência, pena ou bons sentimentos. “Ninguém tem o direito de se comportar comigo como se me conhecesse” afirmará Walser. E, de facto, poucos se conseguirão esquivar com tanta habilidade a serem conhecidos, biografados, dissecados.

Com a inabalável e fulgurante ironia que caracteriza os seus livros, RW e as suas obras escapam a qualquer tentativa de explicação, de interpretação. Neles os mistério desemboca em lado nenhum e debaixo dos véus não existem senão outros véus e o fascínio pela ideia de enigma revela-se coisa de mentalidade adolescente. Tudo nele é transparência, portanto, tudo nele é inapreensível e podemos quase ouvi-lo gargalhar de tanta necessidade que o mundo de hoje tem de querer explicá-lo. Sem que os delírios interpretativos à sua volta tenham assumido as proporções que atingiram com Kafka e com Fernando Pessoa, a verdade é que nos anos 60 e 70 Walser esteve de tal forma na moda entre os “estudiosos”, biógrafos e outras espécies que Elias Canetti teve que vir a publico perguntar se as pessoas “que agora faziam uma segura e tranquila carreira académica às custas de um homem que teve uma vida cheia de desespero não tinham qualquer vergonha?”.

O mesmo poderíamos dizer de Kafka com o seu museu em Praga a abarrotar de turistas ou de Pessoa e de todos os que à boleia da sua existência tímida, discreta, difícil se fazem passear por congressos e feiras por esse mundo fora. É certo que nenhum destes escritores imaginaria que as atribulações, dificuldades e excentricidades dos artistas seriam transformadas em marketing e que até as doenças mentais seriam exibidas para vender livros.

Jacob Von Gunten, uma das suas personagens mais emblemáticas (na Relógio d’Água)

Quase cem anos depois, podemos olhar para Walser, Kafka, para o Livro do Desassossego de Pessoa como os escritores que melhor compreenderam o terror e a desagregação que os rodeava. Antes do julgamento de Adolf Eichmann e da teoria da Hannah Arendt da “banalidade do mal”, estes escritores criaram uma galeria de homens que encarnavam essa banalidade. Não o mal satânico ou demoníaco mas o mal que advém da obediência cega, mecânica, burocrática dos que só  querem cumprir as ordens, só querem aplicar as regras, como defende Pedro Sobrado no ensaio No Covil de Robert Walser (publicado na revista Comunicação e Linguagens).

Microgramas e outros delírios

“Posso-vos assegurar que (…) assisti a uma verdadeira falência da minha mão, uma espécie de cãibra, de pinça, de que me libertei por via do lápis, custosa e lentamente (…)Passei por uma fase de deterioração que se manifestou na escrita, na sua dissolução, e foi copiando o que escrevi a lápis que pude reaprender a escrever, como uma criança.” [Robert Walser]

O escritor a caminhar num campo nevado num dos seus passeios solitários

Em 1929 foi-lhe diagnosticada esquizofrenia e foi internado no hospício de Waldau, onde tinha estado e morrido um dos seus irmãos. Um outro irmão tinha cometido suicídio e a doença mental materna parecia ter contagiado a família Walser. Numa das suas fases psicóticas, por volta de 1925, o escritor desenvolveu um estranho conflito com as canetas que o levará a deixar de escrever e só voltará a deixar correr a pena quando começa a usar o lápis de carvão.

Antes de abandonar completamente a escrita, e durante muitos anos em que já não conseguia escrever obras de fôlego, RW utilizará todo o tipo de suportes de papel (envelopes, folhas de jornal, etc) para escrever em minúsculos caracteres góticos. Milhares de fragmentos dispersos que demoraram cerca de 15 anos a decifrar e dos quais se conseguiu retirar a novela O Salteador. Esta atividade tal como as suas caminhadas serviram para adensar o fascínio em torno de Walser e da sua obsessão pelo muito pequeno, embora isto não seja inédito em doentes esquizofrénicos, e que tem o nome de Micropsía, um tipo de delírio que leva a que se veja e sinta o mundo como muito pequeno.

RW viveu vinte e três anos no hospício de Herissau e, mesmo quando parecia estar suficientemente compensado para uma vida autónoma, recusou sempre sair, voltar a escrever ou receber homenagens. Quando todos os irmãos morreram o poeta Carl Seelig tornou-se seu tutor e a ele se deve a criação do Arquivo Robert Walser, em Zurique. Nessas duas décadas além de ajudar com pequenos trabalhos na cozinha do asilo, o escritor dava grandes caminhadas, irrepreensivelmente vestido de fato e gravata, geralmente levando um guarda-chuva mas nunca um sobretudo ou outro tipo de agasalho, apesar do frio, (como podemos ver na fotografia principal deste artigo).

Só nos últimos anos de aceitou usar um sobretudo comprido devido à doença cardíaca que lhe foi diagnosticada. É embrulhado nesse casaco escuro que cairá morto na neve no dia de Natal de 1956. Cerca de dez anos antes tinha dito a Carl Seelig: “É preciso, pois, que haja vidas que não seguem o curso normal, mas caminhos alternativos ou destinos estranhos”.