Portugal é dos países europeus em que os doentes demoram mais tempo a ter acesso a medicamentos inovadores, com a média de espera a ser cinco vezes superior à Alemanha, país com melhores resultados.

A análise é feita no Relatório da Primavera 2019, do Observatório dos Sistemas de Saúde (OSS), que alerta também para o consumo excessivo de psicofármacos e refere alguma inércia governativa no Sistema Nacional de Saúde.

Assim, o OSS recomenda mais transparência na fixação dos preços dos medicamentos e sugere que a Autoridade do Medicamento – Infarmed — passe a ser uma entidade reguladora independente, deixando para os governos a decisão final sobre preços e comparticipações.

Os dados que constam do Relatório da Primavera mostram que o tempo para acesso à inovação terapêutica em Portugal era cinco vezes mais longo do que o melhor resultado europeu no período de 2015 a 2017.

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Enquanto a Alemanha teve uma demora média de 119 dias para introduzir no mercado medicamentos inovadores, Portugal demorou 634 dias, ou seja, quase dois anos.

Comparando com Espanha, considerado um mercado comparável e próximo, Portugal apresentava um resultado 1,6 vezes pior, com a demora média espanhola situada abaixo dos 400 dias.

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O relatório do Observatório Português dos Sistemas de Saúde, que reflete dados da associação europeia da indústria farmacêutica, sublinha que os números não explicitam quais os fatores que contribuem para esses atrasos e considera imperiosa uma “avaliação mais fina” das várias fases do processo de acesso à inovação terapêutica.

Apesar de os números não explicitarem causas, o Relatório da Primavera, a que a agência Lusa teve acesso, considera que há “excessiva interferência do quadro de decisão orçamental imediato” no acesso a medicamentos inovadores.

“Um exemplo paradigmático foi o do tempo para decisões (…) [no caso] das terapêuticas inovadoras da hepatite C”, refere o documento, considerando que isto acontece “com uma frequência excessiva” e que é “incompreensível” numa área em que a previsibilidade é muito elevada.

Aliás, os dados do acesso aos medicamentos inovadores em Portugal nos últimos 10 anos mostram “flutuações significativas”, que vão sendo motivadas por ciclos de contenção de custos no SNS (sobretudo no período da ‘troika’) ou causadas pela pressão para introduzir alguns fármacos inovadores.

Os números revelam que no período entre 2009 e 2018, o ano de 2017 foi o que registou mais aprovação de medicamentos com novas substâncias ou com novas indicações terapêuticas, com 60 novos fármacos.

De 2009 a 2012, a aprovação de medicamentos inovadores foi sempre decrescendo, tendo depois aumentado de modo mais significativo a partir de 2015.

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Contudo, em 2018, voltou a haver uma descida na aprovação de inovação terapêutica, sendo aprovados novos 40 medicamentos, quando em 2017 tinham sido aprovados 60.

O Observatório recomenda o planeamento com “antecipação razoável” dos ciclos de introdução de inovação, para que não se repitam ciclicamente casos de decisão por “necessidade imperiosa e urgente” (como no caso da hepatite C).

Sugere-se que seja aumentada a transparência dos procedimentos de fixação dos preços e propõe-se ainda que a Autoridade do Medicamento – Infarmed — passe a ser uma entidade reguladora independente, deixando para os governos a decisão final sobre preços e comparticipações.

Portugal entre os países que mais antidepressivos consomem

Portugal é o país da OCDE onde o consumo de ansiolíticos é maior, com um volume de vendas que corresponde a 2% do total de fármacos vendidos em território nacional.

Segundo o relatório, a situação é, por isso, grave. “Ao associar estes dados à ampla prescrição de antidepressores e ansiolíticos, às elevadas taxas de polimedicação e à prescrição de medicamentos potencialmente inapropriados, principalmente na população idosa, verifica-se um problema grave em termos de adequação da terapêutica prescrita aos doentes com doença mental”, lê-se no documento.

Já o consumo de antidepressivos em Portugal continua a aumentar e o país é já o terceiro da OCDE neste ranking. Nos hipnóticos e sedativos o país surge na sétima posição, apesar de estar acima da média.

“Quando comparado o somatório do volume de vendas (6,5%) e da despesa destas três classes de fármacos com outras, verifica-se que estes valores ultrapassam diversos grupos” de medicamentos muito comuns na população nacional.

O mesmo relatório revela que a situação é mais preocupante nos idosos, com o país a registar elevados níveis de prescrição de sedativos, hipnóticos e ansiolíticos a pessoas neste grupo etário que também consomem medicamentos “para distúrbios de ansiedade e de sono, embora sejam bem documentados os riscos de reações adversas, nomeadamente confusão, fadiga e vertigens”. Há, por isso, um “risco adicional de quedas, acidentes e overdose, bem como de casos de tolerabilidade e dependência, pseudo-demência e diminuição cognitiva”.

“Portugal é não só o segundo país com mais idosos a tomar benzodiazepinas, sendo esta classe farmacoterapêutica prescrita a 139 idosos em cada 1000, mas também mais de 60% destes idosos tomam benzodiazepinas de ação prolongada”.

Saúde marcada por “inércia” governativa

O setor da saúde foi marcado nos últimos anos por uma inércia de governação, muito baseada em gestão corrente, perdendo-se meses em “retórica e taticismo” e deixando reformas por concretizar.

O documento do Observatório Português dos Sistemas de Saúde sublinha que “o SNS está bem melhor do que muitos pretendem fazer crer”, mas refere que, em termos governativos, “pouco foi acrescentado à herança do Governo anterior”.

“À falta de dinheiro”, a tática do atual executivo passou por fazer uma “gestão corrente do setor”.

Na análise da governação na saúde, o Relatório da Primavera recorreu à opinião de três pessoas do setor, com posicionamentos ideológicos distintos: Cipriano Justo, Leal da Costa e Ana Jorge, explicou à agência Lusa o porta-voz da coordenação do documento, Rogério Gaspar.

O documento sugere que o setor da saúde se encontraria hoje em “piores condições do que quando foi herdado do anterior Governo” caso não fossem as movimentações da sociedade civil e do setor, fora do Ministério da Saúde.

No Relatório da Primavera, a que a agência Lusa teve acesso, considera-se que “o que fica para memória futura é manifestamente pouco”, quer quanto à reforma do SNS, quer quanto à Lei de Bases da Saúde.

A sustentação financeira do SNS no imediato acabou por dominar as preocupações e orientações políticas do atual Governo, “em detrimento da sustentabilidade técnica, estrutural, humana e financeira a longo prazo”.

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“Quando o primeiro-ministro deu conta do que se estava a passar, tinham-se passado três anos e a equipa da saúde do seu Governo não mostrava capacidade de liderança para gerir a política de saúde”, refere o médico e investigador Cipriano Justo no primeiro capítulo do relatório, aludindo à substituição do antigo ministro Adalberto Campos Fernandes por Marta Temido, que entrou para o Ministério em outubro do ano passado.

Do tempo de Campos Fernandes ficou a decisão de nomear uma comissão para propor uma nova Lei de Bases da Saúde, mas “já no limite do admissível”.

“A um ano de eleições para o parlamento e com uma herança particularmente turbulenta, à nova equipa [do Ministério] faltava-lhe tempo para equacionar e acomodar as medidas que em devido tempo não tinham sido tomadas nem consideradas. Restava-lhe resolver os conflitos laborais e gerir politicamente a revisão da Leu de Bases da Saúde”, afirma.

A propósito de reformas por concretizar e nomeadamente sobre a Lei de Bases da Saúde, o documento indica que se perderam meses “a mais em tergiversações, retórica e taticismo”.

“Se a lição tiver sido suficientemente aprendida, o próximo ciclo governamental pode ser aproveitado para, de uma vez por todas, se procederem às mudanças que há anos batem à porta”, indica Cipriano Justo.

No mesmo capítulo sobre a governação do SNS, Leal da Costa, médico e antigo governante do anterior executivo PSD-CDS, refere que “o SNS está pior”, porque a procura é “muito superior à sua capacidade de resposta”, muito pelo impacto de uma população mais envelhecida.

Contudo, Leal da Costa assume que o estado do SNS será “ainda bem melhor” do que muitos acreditam: “O estado do SNS, provavelmente ainda bem melhor do que nos querem fazer acreditar em cada momento, sejam as oposições – em particular quando é de esquerda –, os meios de comunicação social ou as opiniões avulsas de casos isolados, mas seguramente pior do que os governos e governantes imaginam, precisa de cuidados contínuos e de aperfeiçoamentos constantes”.

Também Ana Jorge, médica e antiga ministra de um governo socialista, assume que “o SNS está em forte crise”, apontando os recursos humanos como o principal desafio.

“Os profissionais de saúde têm de voltar a ter orgulho de trabalhar no SNS”, refere a antiga ministra no Relatório da Primavera, manifestando preocupação com a desilusão que os profissionais sentem com o serviço público.

Aliás, nas conclusões do Relatório destacam-se os profissionais como o desafio primordial do SNS, apontando para a necessidade de “remunerar a qualidade” e recompensar as boas práticas.