Todos sabiam, à entrada para o Congresso dos Deputados, que os acordos necessários para garantir um Governo liderado por Pedro Sánchez estavam ainda longe de estarem assinados. Até ao último minuto, PSOE e Unidas Podemos procuraram entender-se, mas, mesmo sem Iglesias no Governo e com algumas cedências de parte a parte, ambos chegaram ao primeiro debate da investidura sem um aperto de mão.
O que ninguém arriscava dizer era se o debate serviria para aproximar ou afastar ainda mais os potenciais parceiros de coligação.
Sete horas de debate depois, porém, essa resposta era clara: Sánchez e Iglesias até podem conseguir chegar a um acordo até quinta-feira — data da votação definitiva para a investidura do novo Governo — mas, para isso, vão de curar rapidamente as feridas, feias, do confronto da tarde desta segunda-feira. A troca de argumentos entre os líderes do PSOE e do Podemos foi, aliás, um dos momentos mais tensos da tarde. Iglesias quis empurrar Sánchez às cordas e forçá-lo a admitir que fez muito pouco para chegar a um consenso. Pelo caminho, insistia na principal linha vermelha: o Unidas Podemos quer ter um papel relevante no Governo “e não um mero elemento decorativo” — algo que garante que nunca aceitarão.
Na resposta, Sánchez procurava desviar-se das balas, garantindo total disponibilidade para negociar — mas repetia a mesma estratégia que usou com os outros adversários: dramatizou o discurso e trouxe para dentro do parlamento o fantasma das eleições antecipadas: “Não renuncio a entender-me com o Unidas Podemos, mas se não chegamos a um acordo, qual é a solução? Instalar um bloqueio político?”, questionou.
Iglesias não aceitou o virar do prego e foi mais específico, definindo todo o impasse das negociações de bastidores. “Quando dissemos que queríamos alguma pasta das Finanças, do Trabalho, da Igualdade, da Ciência, disseram-nos que nem pensar. O que nos ofereceram? Explique-o a esta sala!”, desafiou o líder do Unidas Podemos, já depois de acusar Sánchez de só inventar desculpas para não chegar a um acordo.
A primeira foi que não somamos se fizermos um Governo de coligação. Disseram-nos que o nosso programa é muito radical e moderámo-lo. A terceira desculpa foi a Catalunha e dissemos que não havia linhas vermelhas da nossa parte. A quarta desculpa foi um veto à minha pessoa, algo inédito. Creio que não minto se disser que a nossa resposta vos surpreendeu e vos deixou sem desculpas.”
Sánchez, porém, tinha mais uma: se é verdade que, ainda no discurso de abertura, o presidente do Governo tinha falado na “promessa da esquerda” que une os dois partidos, à tarde, confrontado por Iglésias, lembrou que é também muito aquilo que os separa. “É difícil”, disse. “Vimos de culturas políticas distintas. Temos discrepâncias em temas como as pensões, a Catalunha. Vimos de tradições políticas diferentes, mas pertencemos ao âmbito da esquerda. Se entramos nas questões de Estado, é evidente que não vamos concordar na forma de as resolver”, admitiu.
É certo que, por esta altura, havia pouco que Sánchez pudesse dizer para mudar o tom de Pablo Iglesias. O líder do Unidas Podemos já tinha admitido o incómodo que sentiu ao ver o presidente de Governo, com quem tem estado a negociar, estender a mão ao PP e ao Ciudadanos, durante o debate, apelando à sua abstenção e admitindo mesmo que, se o fizesse, não seria um voto “gratuíto”. Iglesias, claro, não gostou: “Chamou-me a atenção o facto de, quando ainda estamos a negociar um acordo, esteja pedir a abstenção do PP e do Ciudadanos. Por favor, não a peça ao Vox”, disse irónico.
A troca de palavras terminaria com um aviso dirigido a Sánchez:
Eu creio que há muita gente que tem a sensação que o senhor atua como se tivesse maioria absoluta. Quem tem 123 deputados deve negociar, como acontece noutros lugares. Somos uma força política modesta e jovem, mas não nos vamos deixar pisar por ninguém”, assegurou Pablo Iglesias.
Um acordo para a abstenção? PP e Ciudadanos estão fora
Ainda a tentar chegar a um acordo à esquerda, Pedro Sánchez não desperdiçou, porém, a oportunidade de conseguir uma vida mais fácil à direita. Ou de, pelo menos, comprometer PP e Ciudadanos com a ideia de que preferiram atirar o país para a instabilidade de novas eleições em novembro, em vez de aceitarem a formação do Governo eleito em abril.
Por várias vezes, pediu a abstenção a Pablo Casado e a Albert Rivera. Aliás, exigiu, “pelo bem de Espanha”: “Se não quer uma repetição das eleições e quer ser o líder da oposição, então tenho uma má notícia para si: deve abster-se. Vocês têm a chave para que o Governo de Espanha não dependa das forças independentistas. O senhor e o senhor Rivera têm essa chave”, disse Sánchez.
Nem Casado nem Rivera pareceram, porém, morder o isco. O líder do Ciudadanos disse que o plano de Sánchez só é bom para ele e para os seus parceiros — “populistas, nacionalistas, extremistas e radicais” que querem “liquidar Espanha” —, mas “um mau plano para os que defendem a liberdade” e anunciou que ia opor-se “ao modelo de Espanha sectária” proposto pelo PSOE. “Tenho uma má noticia. Vamos desmontar o seu plano”, prometeu — dizendo também, de forma irónica, que podia esperar tudo menos um passeio no parque, com o Ciudadanos na oposição, sobretudo tendo em conta que chegava ali com “um Governo Frankenstein”.
Sánchez ainda insistiu no apelo ao consenso — “Não lhe peço que vote a favor da minha investidura, mas que, pelo menos, se abstenha para não bloquear a legislatura, pelo bem de Espanha” —, mas não resistiu a mais uma alfinetada:
Para vocês, as feministas são fascistas. Os que não concordam convosco são fascistas. Para vocês, todos são fascistas, menos a extrema-direita. A sua etiqueta, senhor Rivera, é reversível como os casacos”, conclui Pedro Sánchez.
A troca de argumentos só foi mais tranquila com Pablo Casado, o primeiro líder a responder a Sánchez. Também a ele o presidente do Governo pediu que se comprometesse com a abstenção, mas também com ele sem sucesso. “O que veio fazer aqui? Passou 85 dias a jogar ao gato e ao rato e temos a sensação de não saber se pretende de facto, nesta sessão da investidura, receber votos para ser investido presidente do Governo”, disparou Casado.
Sánchez encaixou e manteve o apelo: “Se são um partido de Estado, facilitem um Governo liderado pelo PSOE”, já depois de ouvir Casado dizer que isso é impossível. O PP entende que o PSOE abandonou o centro político e colou-se “à esquerda radical”. Assim, não pode concordar que seja Governo.
Os extremismos havia de valer uma resposta na mesma moeda, já quase no final do debate. Depois de ouvir Santiago Abascal defender os ideiais do Vox e da extrema direita, Sánchez virou o alvo de novo para o PP e para o Ciudadanos, a quem pediu que refletissem sobre o que estavam a ouvir e que classificou de “muito preocupante”. “É evidente que a foto que explica a deriva do PP e do Ciudadanos é a foto de há uns meses, na plaza de Cólon.”
E a Catalunha? Sánchez tentou, mas não conseguiu fugir
Foi uma das maiores perplexidades para quem ouvir as duas horas do discurso de Pedro Sánchez no parlamento espanhol. Durante aquelas duas horas, o líder do PSOE conseguiu não dizer a palavra “Catalunha” uma única vez, apesar de ser, provavelmente, o tema político mais quente em cima da sua mesa. É certo que, assim, não criava inimizades com os partidos independentistas, de que também precisa para governar, mas conseguiu ser tão ambíguo que até eles ficaram descontentes.
A coligação basca EH Bildu diz que a intervenção teve “ausências clamorosas”: “Nem sequer citou o nome da Catalunha e o problema da crise territorial que tem este Estado”, disse a porta-voz. O Ciudadanos viu na estratégia uma forma de manter boas relações com os parceiros catalães: “Foi a lugares longínquos como os Balcãs, mas não quis falar de uma das principais questões que Espanha enfrenta, o desafio separatista. E não o fez para não incomodar os seus sócios”, disse Inés Arrimadas, durante o intervalo para o almoço.
Sánchez, porém, recusou comprometer-se. Forçado a falar sobre o tema, nas perguntas colocadas pela oposição, foi repetindo que defende “uma Espanha das autonomias” e que está comprometido em resolver o problema.
Mais que isso, só durante o discurso que abriu o debate. O presidente do Governo apresentou seis eixos principais para a sua governação: emprego e pensões; reforma tecnológica; combate à emergência climática; combate à violência contra as mulheres; desigualdade social e afirmação dos valores europeus. Neste último, falou da Europa como “um espaço gigante” onde se “superam os nacionalismos que arrastaram os países europeus para duas guerras mundiais”, dizendo que deve ser no âmbito da Europa “que se superam as rivalidades dentro do países”.
Que sentido tem fomentar a desunião, a desagregação, a divisão dentro de Espanha quando precisamos de mais União Europeia?”, perguntou, numa referência fugaz à questão da independência catalã, insistindo que não faz sentido levantar fronteiras quando o que é necessário é derrubá-las.
A primeira medida proposta, porém, não estava em qualquer um daqueles eixos. Logo nos primeiros minutos do discurso, Sánchez disse que tinha um primeiro pacto de Estado para propor: uma reforma constitucional que permita alterar as regras de investidura de um Governo — que implica o apoio de uma maioria no parlamento — para acabar com o risco de impasse — como o que o assombra. O líder do PSOE diz que o voto dos espanhóis é suficiente para indicar quem deve comandar o futuro do país e que não faz sentido ter esse outro degrau de aprovação.
Ao deputados, Sánchez garantiu que, com aquela proposta, não pretendia limitar a importância da oposição, mas permitir que o país não ficasse parado: “Estou a propor que Espanha tenha Governo, que tenha oposição e que não fique bloqueada”. Quase parece que adivinhava o que se seguiria no debate.
Os trabalhos são retomados na manhã de terça-feira. No mesmo dia será feita uma primeira votação, que terá um carácter pouco mais que simbólico. Só na quinta-feira os deputados vão dizer, de forma definitiva, se aprovam o Governo socialista ou se o país volta a eleições já em novembro.