Nico Toscani é um agente secreto treinado para sobreviver no Vietname, um mestre e cinturão negro em Aikido, tem família na máfia e é um polícia com atitude. Nico Toscani é um durão do cinema de ação do final dos anos 80, é Steven Seagal, é o protagonista do filme o “Nico a Margem da Lei” e é parte essencial da nova aventura do produtor/rapper/cantor romântico David Bruno.
O cérebro responsável pelas melodias do Conjunto Corona lançou-se a título próprio há um ano quando decidiu aproveitar o seu nome real para criar uma espécie de alter-ego. Este “segundo” David Bruno assumiu a aura e o imaginário de um cantor romântico entre “o Marante e o Toy” para criar o seu primeiro disco, O Último Tango em Mafamude, e agora regressa com outra roupagem, completamente embebido no espírito do synth-pop dos anos 80 e dos heróis de ação que muita coisa iam alvejando e explodindo nos ecrãs de cinema dessa época.
O resultado de toda esta mixórdia de universos (à qual se junta o mistério de um triângulo amoroso envolto em mentira e crimes financeiros) é Miramar Confidencial, o segundo disco de David Bruno que nem era suposto existir mas que chegará ao público no dia 20 de setembro. Poucas horas depois de ter sido divulgado o primeiro single deste trabalho, a canção “Interveniente Acidental” que conta coma participação do rapper Mike el Nite, torna-se necessário contextualizar e explicar aquilo que este músico e “arqueólogo social” nos irá oferecer. A entrevista que se segue pretende tratar dessa contextualização e nela ficamos a perceber a história de um empreiteiro trafulha que, como todos nós, só quer encontrar o amor.
Miramar Confidencial é o segundo álbum que faz enquanto David Bruno. Já o contava fazer quando lançou o Último Tango em Mafamude, o disco de estreia?
Não tinha plano absolutamente nenhum. Isto foi tudo motivado, na verdade, por uma série de murais que começaram a aparecer aqui em Gaia que diziam “Adriano Malheiro Caloteiro”. Trabalho em Miramar, perto da zona de Granja, e todos os dias, quando passava por aqui para ir para o trabalho, via-os. Às vezes eles eram apagados e passado uns dias estavam outra vez escritos por cima. Apareciam ao logo desta zona de Gaia litoral. Eles foram-me fascinando de tal forma que eu via-os, tirava-lhes fotografias, partilhava-as nas redes sociais e depois comecei a perceber que existiam mais murais espalhados por aí. Fiquei muito curioso com a história que estaria por trás deste fenómeno.
Ainda tentou entrar em contacto com este Adriano Malheiro, certo?
Tentei falar com ele através da página de Facebook da Adriano Malheiro Construções, ela existe mesmo. Mandei-lhe mensagem, a perguntar pelo assunto, e a única coisa que me disseram foi algo do género “O assunto está entregue às autoridades, no entanto, se precisar de trabalhos de construção, não se esqueça de mim”. [risos] Agradeci e disse-lhe que se algum dia precisasse de um empreiteiro falava com ele [risos]. E ficou por aí.
Mas então como é que isto acabou por servir de narrativa ou inspiração para este Miramar Confidencial?
Porque foi a partir desta história que comecei a inventar todo um enredo e a música foi surgindo a partir daí. É o processo habitual: os meus álbuns são sempre assim, partem de uma ideia ou conceito.
Parece que os filmes de ação dos anos 80 com Steven Seagal e Jean-Claude Van Damme também tiveram alguma influência neste processo, não foi?
Imensa. Primeiro, os samples que uso são quase todos de bandas sonoras de filmes desse género (sobretudo dos do Van Damme). A própria capa do disco [uma fotografia do músico] é inspirada no filme que catapultou a carreira de Steven Seagal, o “Nico a Margem da Lei”, “Above the Law” no inglês original. É um exercício semelhante ao que fiz no Último Tango em Mafamude, quando repliquei uma capa do Marante, só que com a capa de um filme de 1988. A coisa que mais me fascina neste universo cinematográfico é a ausência do conceito de noção. O herói pode fazer tudo e nada parece mal ou demais.
Qual é a narrativa do álbum, então?
Se ouvires o disco vais perceber que ele tem uma lógica: ele é a história do Adriano Malheiro nos anos 80 quando começou no negócio da construção civil, na altura das vacas gordas. Foi nessa altura que ele ganhou os vícios de caloteiro e da máfia da construção. Ora o álbum começa com músicas de grande estilo, canções de engate, quase, como a “Bebe & Dorme”, a “Com Contribuinte” ou a “Aparthotel Céu Azul”. Isto é o jovem Adriano Malheiro a tentar conquistar a sua amada mas depois acontece que ela descobre que ele é um aldrabão. É por causa disso que do meio do álbum para a frente o mood é sempre a cair. Música que são pedidos de desculpa como a “Interveniente Acidental”…
Essa canção também tem uma história muito particular, correto?
Havia um dono de uma cadeia de lojas de artigos em segunda mão aqui no Porto, o Sr. Martins, que me contou que era o maior interveniente acidental de Portugal. Isto é mesmo uma figura jurídica real. Ele tinha a sua loja de produtos em segunda mão e iam lá pessoas vender coisas roubadas. Ele pagava-lhes e depois vendia. Depois aparecia o dono a dizer que o artigo tinha sido roubado e ele era apanhado de surpresa porque não sabia de nada. Como participou no negócio ao vender o bem roubado sem saber, não é arguido ou nada do género, é interveniente acidental. A música que tem este nome é a que assinala a reviravolta no disco e na história, é quando o Adriano Malheiro começa com as desculpas de que não sabia de nada das trafulhices em que esteve envolvido. Daí segue-se para a “Não Gosto que Me Mentem” ou a “Moita Flores”. Estas duas representam o lado da Justiça que anda atrás dele. A última canção, a “Serenata em Enxo1000”, é quando ele já está a dar tudo para conquistar de volta a sua amada, promete-lhe arroz de tamboril, marisco, mas nada funciona. Por isso é que o álbum termina com ele a dizer “esquece”.
No que diz respeito a sonoridades, como é que este Miramar Confidencial se diferencia do Último Tango?
A estética deste álbum é algo que eu já queria explorar há muitos anos mas nunca tinha tido oportunidade, falamos daquele synth-pop dos anos 80. Eu já tinha noção destes murais do Adriano Malheiro e já imaginava a história à Van Damme quando fiz download de um drum kit, um pacote de sons que só tinha timbalões dos anos 80. Instalei esses sons na minha maquineta e comecei a fazer solos uns atrás dos outros, passei um dia só a fazer isto — Tocava e depois ria-me, tocava outra vez e voltava a partir-me a rir… [risos]. Diverti-me tanto que pensei logo que tinha de ir à procura de samples onde pudesse encaixar estes sons. Foi a partir daqui que mergulhei nesse universo que é muito diferente do do Último Tango em Mafamude. Ele era romantico-poético e este é o romantico-foleiro e extravagante.
O David voltou a apostar no formato video-álbum. Sente que este formato é importante para ajudar a passar a história que está a querer contar?
Para mim é essencial porque ele acaba por mostrar exatamente aquilo que imaginava na minha cabeça enquanto estava a fazer o disco. Vamos fazendo tudo com pouquíssimos recursos — olha, por acaso a câmara que usei para filmar isto veio da loja de segunda mão do tal sr. Martins — mas é mesmo essa a ideia, também. Pretende-se construir uma imagem, mais que um video-clip espetacular, que funcione de suporte para passar às pessoas aquilo que eu tinha na minha cabeça enquanto fazia a música. Que conte a história que eu imagino.
Neste Miramar Confidencial também tem muitas participações como a do Mike el Nite, Samuel Úria, Fernando Alvim, Alferes Malheiro. Como é que ela s surgiram?
O primeiro álbum era o primeiro, não é. Ele nem sequer era suposto ser uma coisa para se tocada ao vivo, por exemplo. Foi um rebento completamente inesperado. Neste segundo as pessoas já conheciam alguma coisa. Eu tenho andado por aí a tocar e por todo o lado falam-me de David Bruno e do Último Tango em Mafamude, trabalho que até foi muito bem recebido. As pessoas que me iam falando bem dele iam-me ficando na memória e dizia-lhes que talvez no próximo álbum ainda lhes arranjava algo para fazerem. Foi o que aconteceu. As participações musicais foram todas feitas com pessoas que eu conheço e admiro. O Úria, o Alvim e o Este Senhor aparecem quase que na forma de piadas entre músicas e representam os lesados de Adriano Malheiro.
Das várias reações que existiram após o lançamento do Último Tango em Mafamude houve alguma que o tivesse surpreendido especialmente?
Muitas! Lembro-me de ter ficado surpreendido quando o Jorge Romão e o Rui Reininho [dos GNR]me disseram que gostaram muito do disco. A reação do Anthony Fantano [conceituado youtuber norte-americano que faz crítica musical] também foi surpreendente, quando ele escreveu no Twitter “pretty dope artist from Portugal” [“artista muito fixe de Portugal”].
[O primeiro álbum de David Bruno, O Último Tango em Mafamude:]
Este tipo de projeto maioritariamente instrumental poderia ser facilmente internacionalizado, não?
Tem uma coisa que acho o mais importante e calculo que possa ter sido aquilo que chamou à atenção do Fantano: tem muito carácter, personalidade tuga. Tudo o que aparece ali é o autêntico lifestyle português. Pelo menos aqui da zona.
Por falar na sua zona, Gaia: Na sua opinião, o que a torna tão rica em episódios e características inusitadas?
Não faço a mínima ideia. Só sei que a minha médica de família já me disse que há vários anos há quem queira investir dinheiro a sério para se fazer um estudo em Gaia porque suspeitam que haja algo debaixo da terra. Isto por causa de problemas de saúde, parece que há uma grande incidência de problemas de tiroide. Não sei, talvez seja isso que afeta as pessoas, uma espécie de Chernobyl da chungaria.
Este projeto, como o próprio dizia, é feito com poucos recursos, entre amigos…
E é de propósito, nunca vou querer que seja algo high budget…
Mas isto é algo que por um lado dá-lhe muita liberdade mas por outro também lhe dará algumas dores de cabeça ou desafios. Quais são eles?
Por exemplo, há pouco tempo tive um videoclipe feito pelo Francisco Lobo sobre uma música minha, a “Mesa Para Dois No Carpa”, do Último Tango, a ganhar vários prémios. Eu sozinho nunca conseguiria ganhar prémios porque faço isto com uma qualidade horrível. É de propósito, claro, não ando atrás da qualidade na forma mas sim do conteúdo, apenas. Acho que aí perco mas também se me preocupasse muito com isso não conseguia lançar tantos discos como tenho feito ultimamente (tenho tido um novo a cada ano). O facto de ser totalmente autónomo nos conceitos e na sua materialização é muito importante para manter este ritmo. Mais do que estar à procura da perfeição, quero e lançar as minhas ideias e conceitos de forma rápida, dependendo apenas de mim mesmo. Isso valorizo muito.
[O videoclipe da canção “Mesa para dois no Carpa”, que ganhou o prémio nas Curtas de Vila do Conde, na categoria de Vídeos Musicais:]
A maior parte das pessoas podem não ter bem noção mas é o próprio David que, por exemplo, envia os discos para asa pessoas que o encomendam…
Sinto que enquanto artista ainda tenho aquela mentalidade portuguesa do emigrante que prefere fazer a sua própria casa do que contratar um empreiteiro. [risos] Depender apenas dele próprio. Enquanto for humanamente possível vou fazer de tudo para depender apenas de mim.
Há alguma estética ou imaginário que ainda gostasse de explorar mais para a frente?
A da cumbia e todo esse universo da música latina psicadélica.
O David Bruno iria dar uma curva para sul e explorar trópicos mais quentes?
Não, os trópicos mais quentes é que vinham ter com o David Bruno a Gaia. [risos] Eu nunca saio daqui, os outros estilos é que vêm cá parar.
Quem é David Bruno, o artista que junta Marante, samples e Vila Nova de Gaia?
No press release falava da existência de merchandising David Bruno. No álbum passado foram as bases para copos, este ano será o quê?
O disco vai sair em formato DVD pirata para que qualquer pessoa o possa piratear e vender como se fosse original. A única coisa que não vão poder fazer é o autocolante, uma edição limitada com uma estética igual à da discoteca Penélope, um clássico do parque automóvel português com mais de 20 anos, só que em vez da cara dela terá a minha.
Vai colar isso no seu carro, certamente…
No meu Fiat Tipo, com certeza.