Avisa todos os que a procuram que a saúde mental tem especialistas qualificados e que ela não é um deles. A missão a que se propõe é outra: ajudar quem trabalha na indústria da música a compreender sinais, a prevenir e, numa fase posterior, a ultrapassar dificuldades. Os artistas, sobretudo, porque a situação em que estão é feita tanto de sucessos como de vulnerabilidades — e essa bipolaridade pode ser um bomba-relógio. Mas também todos os que trabalham com e à volta dos músicos.

Clare Scivier abriu a Your Green Room em 2002, depois de 20 anos a trabalhar com editoras e músicos, sobretudo nas áreas do hip hop e house. Vai estar em Portimão para falar dos processos que a instituição desenvolve para combater o que diz ser a “cultura do medo”, que silencia quem precisa de ajuda. Na cidade algarvia acontece, entre os dias 3 e 6 de outubro, o primeiro encontro internacional de mulheres da indústria da música, organizado pela SheSaidSo, a associação que construiu a primeira comunidade que liga mulheres de todos os setores da indústria musical, que celebra cinco anos de existência. Scivier é uma das oradoras e falou com o Observador sobre o trabalho que faz.

O que há de pouco saudável na vida de quem trabalha na indústria musical?
São profissões sem regulamentos. Os artistas, os produtores, os DJs, não há ninguém protegido por contratos, por leis do trabalho, não há regras de segurança nem de saúde, não existe um departamento de recursos humanos a quem as pessoas podem apresentar as suas queixas, ao contrário do que acontece na maioria dos casos, mas não em todos, em relação aos que trabalham à sua volta: as pessoas das editoras, os publishers, os agentes… O trabalho que fazem quando se apresentam ao vivo, em espectáculos, acontece enquanto os outros se divertem, isso quer dizer que a linha que separa o trabalho da diversão por vezes é complicada de perceber para quem vê de fora. Raramente existe preparação para um trabalho que envolve coisas tão exigentes como escrever canções, produzir gravações, fazer vídeos, participações na televisão, ter uma existência nas redes sociais, os concertos… ninguém espera que os atletas olímpicos corram mais depressa e ganhem medalhas sem os quatro anos de preparação e acredito que os artistas precisam de ter estas exigências correspondidas — obviamente demorando menos do que quatro anos.

Porque decidiu tentar tornar a vida destas pessoas mais saudável?
Durante 20 anos trabalhei como A&R e em management de artistas. Depois de ter deixado esses cargos, continuaram a encaminhar-me músicos com problemas recorrentes. Achei que era necessário tornar algumas destas questões públicas. Acredito que as grandes empresas internacionais têm de ser responsabilizadas por tudo isto. É necessário despertar consciências, mesmo que ninguém pareça particularmente interessado nestes assuntos.

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Quando trabalhou diretamente na indústria musical, enquanto A&R e manager, tinha uma vida saudável?
Nunca consumi drogas, mas muitos dos meus colegas fizeram-no, alguns morreram, outros foram para clínicas de recuperação. Mas, à parte isto, claro que não seguia um regime alimentar saudável. Nem isso nem exercício. Tudo para poder acompanhar o ritmo de trabalho que impus a mim própria. Também sinto que negligenciei a minha vida privada e foi muito difícil trabalhar e ter dois filhos. Nessa altura tinha 24 anos e era responsável pelo departamento de A&R na área da música de dança numa grande editora. E como via concertos todas as noites, lembro-me também de ter dores de costas horríveis.

“Agora ninguém investe em talento a não ser que existam provas, a não ser que esse talento seja demonstrado e que se perceba que determinado talento vai ser um sucesso”, diz a inglesa ClareScivier

O que é a Técnica de Divisão Organizacional Polimórfica?
Todos temos que ser muitas coisas porque todos nos relacionamos com pessoas diferentes, em diferentes situações. A forma como falamos, como agimos… Por vezes somos divertidos, noutras ocasiões precisamos de ser incrivelmente fortes e sérios. Portanto, imaginemos o que é ser artista e a quantidade de faces que essa circunstância motiva. Ter que encontrar a criatividade em momentos de pressão, atuar quando por vezes quase não há condições físicas para tal, digressões de dezenas de noites, ter a capacidade de lidar com as críticas. O que faço é ajudar os artistas a separar e a definir linhas de fronteira entre cada momento, permitindo, ao mesmo tempo, que se tornem mais fluídos entre todas as relações que têm de manter. Isso permitirá maior e melhor comunicação com as suas equipas, famílias e amigos.

Em várias ocasiões já especificou que o trabalho que faz não está relacionado com saúde mental. Mas teve pessoas que a procuraram para esse tipo de apoio?
Tenho vários clientes com diagnósticos de bipolaridade, ou que têm casos que balançam entre o síndrome de Asperger e o autismo. Consigo guiá-los através da minha rede de especialistas para que possam viver vidas mais saudáveis e mais felizes com estas condições, desde que sejam acompanhados e apoiados devidamente, com as pessoas cujas capacidades façam mais sentido em cada caso. E quem precisa deste apoio tem de contactar um médico, não somos nós que fazemos esse trabalho. Muitos universitários que estudam música já vieram ter comigo e parece-me que essas universidades têm de oferecer mais apoio e mais informação. É claro que há casos em que as editoras assinam contratos com músicos com esquizofrenia, distúrbios alimentares ou de auto-mutilação e ajudam-nos a procurar apoio, mas é necessária ainda maior consciência para esta realidade. Quem trabalha a parte negocial tem de entender que as mentes criativas são muitas vezes diferentes da generalidade das pessoas. É uma bênção, mas também pode ser uma maldição se não for entendida de forma apropriada pelos outros.

Qual é o problema ou a dificuldade mais frequente entre quem trabalha na indústria da música?
Quem trabalha na música tem medo e ninguém se preocupa com isso. A cultura do medo causa a maioria dos problemas, simplesmente porque há muita incerteza à volta do sucesso. O medo motiva uma série de problemas mentais, em casos extremos existe o bullying (tenho vários clientes que são vítimas), falta de compreensão em relação a tudo o que envolve a saúde mental, as drogas e o álcool que atribuem uma falsa sensação de confiança, casos de ansiedade, depressão, distúrbios do sono e de temperamento… Tudo isto merece atenção e são estas as situações mais frequentes. Se as juntarmos aos horários e às exigências empresariais, temos um cocktail potencialmente fatal.

Em algum momento é necessário desistir da carreira para ultrapassar problemas que atingem uma escala demasiado grande? Em algum momento é essa a única solução?
O mais importante é admitir que existe um problema. Talvez seja necessário tirar algum tempo e ao mesmo tempo perceber qual é a ajuda certa a encontrar para cada caso em particular. Se fossemos todos mais honestos e falássemos mais, tudo seria mais simples. Dito isto, é verdade que algumas situações são muito difíceis de enquadrar neste tipo de vida, incrivelmente complexas de ajustar às exigências deste negócio.

O caso de Avicii [DJ e produtor sueco que se suicidou em 2018, aos 28 anos] tem sido referido em vários artigos publicados sobre os problemas pelos quais passa quem trabalha na indústria da música. Porquê? Deveríamos tomar Avicii como exemplo?
Através da informação divulgada pela comunicação social, é provável que assim seja. Mas nunca tive a oportunidade de trabalhar com ele, por isso é difícil comentar essa hipótese. Trabalho com managers de artistas, tour managers e agentes e faço aquilo a que chamo “check ups ecológicos”, que desenvolvi para perceber que nível de apoio os nossos clientes precisam, nas suas digressões em particular e nas carreiras em geral. Diria que o segredo está, em boa parte, na prevenção.

Os casos mais complicados estão relacionados com a música de dança [EDM: “electronic dance music”]?
A EDM parece atrair mais gente com casos de síndrome de Asperger e autismo, são por vezes descritos como hiper-sensitivos, sobretudo à luz e ao som. Por vezes é terrivelmente difícil para eles ir em digressão e as alterações de última hora nas rotinas podem dificultar muito as suas vidas. Há também muitas provas que as características biológicas destas pessoas são diferentes quando comparadas com a população em geral. Por isso, na minha equipa trabalhamos em testes para perceber que tipo de alimentação é a mais saudável, por exemplo. Muitos dos DJs mais novos, neste momento, não consomem álcool nem drogas, o que é uma mudança assinalável, sobretudo no meio e nos hábitos da EDM.

Há mais músicos à procura de ajuda? Têm vergonha? Isso é um problema?
As pessoas no geral têm vergonha de procurar ajuda. Pedir ajuda parece ser uma questão muito sensível para a maior parte das pessoas, num mundo em que a perfeição é tão procurada. Todos enfrentamos o dia seguinte com algo que não sabemos como enfrentar, com coisas com as quais não sabemos lidar. E é por isso que tento ser honesta com os meus clientes. Todos fazemos merda de vez em quando, é normal. Quando repetimos o mesmo erro é que é um problema. Felizmente, há cada vez mais músicos a falar. Do lado do negócio, a cultura do medo também existe e também afeta o lado criativo.

Escreveu um artigo no qual diz que que “hoje em dia pessoas como Chris Blackwell [fundador da Island Records] ou Richard Branson [o homem da Virgin] não teriam qualificações nem emprego numa grande editora”. Porquê? E o que será da indústria musical se não podemos ter pessoas dessas a trabalhar?
Ambos tiveram visão. Foram empreendedores, não tiveram medo de falar e assinar os artistas em quem acreditavam. Tomaram muitas decisões por instinto. Mas agora ninguém investe em talento a não ser que existam provas, a não ser que esse talento seja demonstrado e que se perceba que determinado talento vai ser um sucesso. E muitas vezes essas provas vêm de números fornecidos pelas redes sociais e algoritmos, matéria que é manipulável. Sem pessoas que saibam e queiram correr riscos, criamos uma cultura de mediocridade. Apenas permitimos que as pessoas se preocupem em manter os seus postos de trabalho e nada mais. E atenção que sem o tal risco as editoras não fazem dinheiro. Mas depois há outras questões, muitas das editoras pertencem a grandes empresas, grandes grupos, que não se preocupam em fazer dinheiro com a música, usam as suas divisões musicais mais como exercícios de relações públicas ou formas de resolver questões relacionadas com os impostos afetos aos outros negócios das mesmas empresas. Mas acho que é assim que o mundo funciona.

Alguma vez foi criticada por ir atrás do dinheiro dos artistas com quem trabalha ou algo assim? Isso alguma vez aconteceu?
Não fico com nenhuma percentagem da carreira de um artista nem nada que se pareça, não os prendo a nenhum contrato nem cláusulas estranhas. Não peço para ser colocada nas suas guestlists, não fico com T- shirts à borla, nem sequer peço autógrafos. Ofereço um serviço e eles alinham ou não de sua livre vontade. Raramente tenho de fazer mais de três sessões com eles. E sou procurada muitas vezes por artistas cujos agentes e managers me recomendaram. Os preços que cobro não são fixos, estão relacionados com os artistas e as carreiras em questão. Portanto, respondendo à questão: nunca aconteceu.