“Eu não via o meu próprio filme”.
É assim, cru e com um rasgo de humor meio ingénuo, que Sam The Kid, relaxado na régie dos estúdios Namouche em Lisboa, minutos antes de mais um ensaio, nos enquadra na cena que tem sido a sua vida. Olhando para a janela pequena, vemos, no estúdio, uma orquestra a afinar instrumentos e os restantes membros dos Orelha Negra. Sente-se ali qualquer coisa de especial que não se sabe bem o que é. Mas nós, cá dentro, por minutos, entramos no universo samuelesco e só isso interessa agora. Quem o conhece sabe que Samuel Mira é um cinéfilo assumido. Podíamos dizer poeta, rapper, produtor, colecionador de palavras, mas isso já todos sabemos. Há pelo menos vinte anos. Ficamos com o cinéfilo, para já.
Sim, estamos a poucos dias de um regresso aos palcos, em nome próprio, no Coliseu de Lisboa (e dia 8 de novembro no Porto). Mas com Sam, calmo, sem nervos, há tempo para falar de tudo. É que vai celebrar — verbo a que não liga muito — o seu primeiro álbum, Entre(tanto) (1999), e isso já lhe valeria pelo menos um bom documentário. E nervos, muitos nervos.
Mas não, nem uma coisa nem outra. Esta reunião familiar, que vai juntar tantos amigos, serve para revisitar um passado carregado de orgulho e sem pontas soltas. Sem dramas, sem planos longos pintados com sofrimento ou episódios de depressão que vemos num daqueles filmes antigos sobre lendas do “hip hop da VH1”. Porque no quarto mágico que Sam quer montar nos Coliseus só há espaço para intimidade. Para emoção. Da que faz rir, da que faz sentir em casa, como a que se sente ali à beira da Estrada da Luz, num encontro entre música clássica e o rap, que parecem ser amigos, nem que seja por um par de horas. O resto fica para os créditos que um dia alguém há de querer escrever, que não ele.
É que Sam está sempre a olhar para o futuro. Está a trabalhar no novo disco dos GrogNation, tem a sua TV Chelas e tantos outros projetos, como uma média metragem prometida há tanto tempo, que está guardada há 19 anos (chama-se “Biters” e mais não dizemos). Mas quando o provocamos sobre o regresso de músicos portugueses aos grandes palcos — como os Da Weasel, que voltam no NOS Alive do próximo ano, ou os Ornatos Violeta, cujo retorno já aconteceu há mais tempo –, este Kid é pragmático, sem criticar a vontade que outros podem ter em dar um novo boost ao passado. “Eles estão a fazer o que gostam. Mas nunca vão ver uma declaração do meu fim”. Parece drástico, mas não. É Samuel a ser The Kid.
Um teste ao Sam dos últimos 20 anos
A expectativa com estes dois concertos é muita. Mas Sam desfaz já algumas dúvidas.
“Não sei sinceramente o que é que as pessoas esperam. Vou tocar coisas que nunca toquei ao vivo, mas não há inéditos. Quero que seja um concerto alternativo ao concerto típico de rap, menos juvenil”, revela.
É para isso que conta com os Orelha Negra, e com uma orquestra liderada pelo maestro Pedro Moreira. Podíamos tentar adivinhar o porquê de incluir uma orquestra nesta ocasião, só que nunca lá chegaríamos. A razão, mais uma vez, vem do lado experimental que lhe desperta a curiosidade no que vem a seguir, da vontade constante de colaborar que Samuel sempre vincou em todos os seus projetos. “Estava no carro a ouvir a ‘Sendo Assim’ [tema que fecha a compilação Mechelas] e pensei: ‘isto ficava bem era com uma orquestra’”. Bastou ouvirmos a primeira música do ensaio para, entre peles de galinha nostálgicas, lhe darmos razão.
[“Sendo Assim”:]
Voltamos à régie enquanto o estúdio se vai compondo cada vez mais. O silêncio da sala onde estamos deixa-nos em bicos dos pés para o que se está a cozinhar metros à frente. Mas sendo o nome dele que volta a figurar, em letras gordas, nos cartazes e notícias destes dois concertos, tem de se perceber o que quer Sam disto tudo afinal. “Fico satisfeito se tiver, para aí, quatro momentos bons”, diz. Porque o que lhe importa realmente é fazer um exame à sua performance, sair da zona de conforto, como faz com a TV Chelas, e ver como é que o público reage.
“Sinto que estou melhor na prestação ao vivo, nos samples, nas respirações, nas dinâmicas, ganhei experiência. Quero testar-me, a ver se me sinto confortável em nome próprio.”
Dois maestros, dois estilos
Meter o pé no estúdio é entrar num laboratório de criação. De um lado músicos novos, sentados, com ar solene. Do outro vemos Francisco Rebelo, João Gomes, Fred Pinto Ferreira e DJ Cruzfader, membros dos Orelha Negra, e personagens constantes do filme que Sam tem vindo a criar. É um cruzar de gerações que precisa de um comando. Esse está com Pedro Moreira, que também toca. “Boa noite, vamos relembrar o ‘Entre(tanto)’”, chuta para a orquestra, marcando o compasso do ensaio. Lá vem a pele de galinha. Estamos outra vez em 1999. Só que não. Trocam-se as voltas e saltamos para Pratica(mente) (2006), onde não “se papam grupos” e em que muitos depositam a fé enquanto melhor álbum de hip hop português da primeira década do séc. XXI.
Naquela sala, é a orquestra que faz o prefácio musical, os Orelha Negra escrevem o cenário instrumental e Sam, no meio do palco improvisado, isolado na sua bolha, remata com o epílogo, mais maduro, sem falhas, com a respiração certa, porque já não é o primeiro dia do resto da sua vida. Sabemos o que vem aí, mas mais não podemos dizer. Apenas que foi uma grande ideia ter estado sozinho no seu carro a ouvir o “Sendo Assim”.
É preciso não esquecer: isto é um ensaio. As agulhas ainda têm de ser afinadas, logo é preciso repetir, repetir, repetir. “Houve aqui um edit que o maestro ainda não está a par” comenta o rapper. O tal bichinho da experiência, do baralhar as cartas e voltar a dar para que a performance esteja ali a roçar a perfeição. Seria coisa para fazer ferver a ordem que paira na cabeça de um maestro, mas não. É só preciso mais treino porque ainda há tempo. Uma confiança que se ganha com muita experiência à mistura.
Orelha Negra, uma consequência feliz
Não se pode dizer que seja fácil juntar quatro músicos com carreira feita num só sítio. Até porque não é, de facto. Há agendas, há pressão, há deadlines. Até na hora de jantar isso se revela, como aconteceu esta terça-feira, onde cada membro foi chegando ao seu ritmo. Só que, a bem da verdade, isso não interessa muito. Porque os Orelha Negra são uma “consequência” feliz da última vez que Sam tocou sozinho. E desde então, entre álbuns, mixtapes, festivais e concertos grátis, não há cá arrependimentos. “Não sinto que tenhamos feito nada à pressa”, afirma. Conhecem-se muito bem, há ali muitas horas mal dormidas à procura de estar perto de uma ideia de perfeição e da perfeita repetição. Vê-se pelas expressões que trocam uns com os outros neste ensaio, ou por um simples cantar, de lábios tremidos, um abanar de cabeça em jeito de curtição que nasce ao revisitar a biblioteca musical de Sam para este concerto. É por isso que neste projeto nem se sente falta de uma voz física.
“Há samples em que as palavras cantam. Eu já vi pessoas nos nossos concertos a cantar. A voz está lá”.
[Sam The Kid em entrevista à Rádio Observador:]
Está pois, o nervosismo é que não mora mesmo em Benfica, na morada destes estúdios. É como se aquelas pessoas tocassem todos os fins de semana juntos. Ou pelo menos que se reunissem todos os domingos para uma grande almoçarada. Samuel não veria um filme sobre si, mas as pessoas querem muito ver que filme é que vai sair deste ensaio. A sorte é que ainda fomos a tempo de espreitar mais um teaser, lançado pelo próprio. O Samuel de há vinte anos, no fundo, também quer ver o que é que sai daqui.
“Vou tocar uma música do primeiro álbum… o Samuel de hoje diria ao de há vinte anos: ‘fogo, já viste, começou tudo como uma brincadeira e agora estamos aqui’”.
Estamos. O miúdo Sam está bem, crescido mas não velho, está em família. Não tem fim à vista. E ainda tem tempo de ir “duas vezes ao cinema” por semana. Pode ser que um dia lá queira ver o filme da sua vida.