A coleção de beats inventados por Kanye West que ajudaram a pôr pão nas mesas de muitos rappers é, em si, todo um percurso histórico que permite conhecer a evolução do género nos últimos 15+ anos. É, também, suficientemente exaustivo para que posamos começar dizendo que, tal como poucos dos maiores (poucos), Kanye podia não voltar a criar uma composição musical digna dos nossos ouvidos, e mesmo assim teria lugar mais do que garantido no panteão do rap. Posto isto, importa ainda assim perguntar: que raio de disco é este, Kanye?

Há muito que a religião é um tema na obra de Kanye West. O bravado, a crença, o pecado e a redenção sempre foram capítulos de uma narrativa consistindo do percurso biográfico de Kanye ou das suas agruras mais mundanas, mas que hoje se faz de uma espiritualidade mais confusa. Nós sempre comemos disto tudo às colheradas, mas hoje a religião de Kanye é dura de ouvir. Primeiro, porque não se retira dali grande ensinamento espiritual. Dei por mim algumas vezes a relembrar a missa a seguir à catequese, em especial as ocasiões que saía para ir à casa de banho e não voltava. Não vos vou maçar com a minha experiência enquanto crente, mas direi apenas que a catequese tinha as virtudes de um diálogo e a missa a natureza de uma imposição. A música de Kanye é mais missa do que catequese. Não estou a ser metafórico. Kanye organiza uma espécie de missa aos domingos desde Janeiro de 2019. Funciona por convite e quem o aceitar terá primeiro que assinar um non-disclosure agreement, vocês sabem, como costuma acontecer quando vão à missa, ou, por exemplo, daquela vez que se juntaram a um culto suicida.

Se lerem o contra-rótulo, ser-vos-á dito que Jesus is King é o disco gospel do artista, ao qual se seguirá Jesus is Born, eventualmente no dia de Natal. Vão ser conversas giras em torno do tronco de natal e da garrafa de whisky velho a discutir os defeitos de um familiar ausente enquanto Kanye prega as virtudes de ser um homem de meia-idade com fuck you money e problemas de primeiro mundo. Dir-vos-ão que é um disco gospel, mas na verdade é mais uma coisa em forma de Kanye, muito auto-referencial, meio cheia de si meio a pedir a redenção, meio humana meio douchebag, meio a vida inteira meio coisa nenhuma, meio audível meio dispensável. É música que, perdoem-me os frequentadores do Sunday Service de Kanye, não copula nem sai de cima.

[ouça “Jesus is King” na íntegra através do YouTube:]

Os ingredientes para tornar a religião um objeto de reflexão agradável num disco de Kanye West são simples: ele pode abusar de uma leitura mais aberta dos textos, pode adulterar textos religiosos, pode, enfim, dizer o que bem entender, mas deve fazê-lo sobre um beat esteticamente unfuckwithable. Foi este o contrato social que estebelecemos com Kanye West. Por isso é que tantos disparates foram sempre tolerados, e aquela grandiloquência meio rídicula, no limiar da insanidade, era aceite como excentricidade. Mas o que é de mais — a ilusão de grandeza — chateia, e a melhor metáfora para Jesus is King é a propriedade de milhares de hectares que Kanye quis comprar, não com centenas de hectares, mas com milhares, para se isolar numa paisagem árida e voltar de lá com 27 minutos meio desérticos.

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A música de Kanye tem vindo a recompensar os ouvintes, que desde há uns anos se viram transformados em crentes, tal é a escassez de momentos em que o rapper parece capaz de produzir uma reflexão coerente, se possível em forma de música. É por isso que a religião no novo disco de Kanye West não serve de muito: musicalmente chega a poucos sítios interessantes. Não que chegue a ser cansativo. O disco tem apenas 27 minutos, mas isso é uma eternidade para um produtor que, em Life of Pablo ou até mesmo Ye, provou que não precisa de tanto tempo para nos convencer. E, se nada mais se aproveitasse, teríamos pelo menos um motivo para agradecer a Kanye por este novo disco: ter juntado os irmãos que formam o duo Clipse. Pusha T e No Malice aparecem no disco e, apesar de o resultado sucumbir perante as mãos e o sopro de Kenny G (sim, o saxofonista). Aliás, quem se quiser comover com estas coisas pode encontrá-los no Sunday Service do último domingo, entretanto disponibilizado no YouTube:

https://www.youtube.com/watch?v=MfzxUvEOaq4

Não deixa de ser um momento mais conseguido deste disco, como são quase todos os que têm um beat — “Follow God”, “On God” e “Everything We Need”, com Ty Dolla Sign e Ant Clemons, dos melhores momentos do disco, quando a junção das harmonias vocais (e não o gospel) que inspiraram este disco e um beat encorpado se juntam para, ao longo de 1 minuto e 57 segundos, nos fazerem crer que há esperança, isto se não prestarmos atenção aos versos do padre Kanye:

“What if Eve made apple juice?
You gon’ do what Adam do?
Or say, “Baby, let’s put this back on the tree”

Por muito menos baboseiras já se expulsaram padres em paróquias portuguesas.

Ainda assim, com alguma gente interessante ao barulho, não deixa de ser triste que, na mesma semana em que dei por mim, como sempre, a contar os dias até ao novo disco de Kanye, Lunice e Hudson Mohawke – dupla conhecida como TNGHT — tenham lançado um single que faz mais por mim do que meia dúzia de horas passadas a ouvir o disco de Kanye. Talvez haja aqui um paralelismo futebolístico: se esquecermos a insanidade e nos fixarmos na sua ideia de jogo, Kanye West é o José Mourinho do rap norte-americano.

Lá está, há todo um património construído que leva os fãs de sempre a esperar, pacientemente, que dali saia uma descoberta. Mas se há algo que chateia nesta coleção de interlúdios, são precisamente os momentos em que reconhecemos o Kanye de sempre e o comparamos com o atual. A faixa que abre o disco — “Every Hour” — convoca a eucaristia dominical, mas é mais do que isso. Já ouvimos isto antes, na discografia de Kanye e em produções. Tal como na religião, cada um terá a sua própria experiência Kanyeana, mas a mim fez lembrar “Let The Beat Build”, uma faixa produzida por Kanye há mais de uma década em que o rapper-produtor parte de um sample maravilhoso de Eddie Hendricks, uma harmonia vocal que se cola ao ouvido e hipnotiza, e lhe vai acrescentando um piano, um snare e o que mais tivesse gravado no MPC, tudo isto enquanto o beat se instala e Lil Wayne agradece a Kanye pela dádiva e repete:

“That’s how you let the beat build, b****
Now that’s how you let the beat build, b****
Let the beat build, b****
And the beat go,
Boom, b-boom-ba-boom
Boom, b-boom-ba-boom
It go, boom b-boom-ba-boom
Now say, (yeah yeah yeah)”

Talvez a estranha viagem de Kanye o faça regressar a este postulado simples. Talvez ele desembuche e nós voltemos a agradecer. O homem ainda sabe o que faz. Se não acreditam, ouçam Daytona do Pusha T, composto e gravado em 2018. Ou, por amor aos vossos ouvidos, voltem aos discos antigos, a um tempo em que as peças encaixavam e Jesus caminhava, com ele e connosco. Já nessa altura Kanye explicava que a nossa guerra era interior e o inimigo éramos nós mesmos. Chegados à última faixa de Jesus is King, Kanye a cantar “Jesus is Lord” como quem diz “Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe”, apetece dizer: para si também, Senhor Padre. Bem, onde é que se almoça?

Vasco Mendonça é publicitário e co-CEO da associação recreativa Um Azar do Kralj