Quando comecei a interessar-me por música e a procurar exemplos femininos nela, foi fácil encontrar mulheres no pop rock, não apenas a cantar mas também a tocar instrumentos (todos! Mo’ Tucker era baterista do Velvet Underground, o que era um exemplo bastante iconoclasta), mas a música eletrónica era território inóspito. Rodar botões e premir teclas, tirar e colocar cabos não parecia coisa de mulheres, a menos que se tratasse de centrais telefónicas ou máquinas industriais estilizadas, ou alguma série de ficção científica que passava na televisão.
Descobri primeiro Laurie Anderson, e durante muito tempo parecia a única mulher a fazer musica eletrónica. Cosey Funni Tutti dos Throbbing Gristle revelou-se depois, num papel polivalente e, finalmente nos 90, começaram a aparecer produtoras ligadas à cena clubbing, como Bjork, Neotropic ou Andrea Parker, na altura vistas como verdadeiras heroínas a fazer-se notar num meio claramente dominado por homens. Parecia que, então sim, a emancipação da mulher do papel de cantora estava a começar, mas mal sabíamos nós o muito que ainda havia para escavar e todo passado obscuro de música no feminino que estava por revelar. Por causa dessas novas mulheres na música eletrónica de dança, comecei a tropeçar no nome de Wendy Carlos, que antes de ser Wendy tinha tido obra considerável como Walter e, por isso mesmo, era dada como exemplo mais ou menos exótico de mulher pioneira da eletrónica… São dela, ainda como Walter, algumas das primeiras experiências com Moog, nomeadamente o êxito Switched on Bach (1968), em que interpreta peças de Bach em Moog, tal como são dela, as bandas sonoras dos filmes “Laranja Mecânica”, “The Shining” e “Tron”. Mesmo assim, e apesar de muito interessante, essa era ainda apenas uma parte da história.
Até este século desconhecia a existência de Delia Derbyshire e arrisco dizer que não estava sozinha nessa descoberta fora de tempo. Ela própria teve dificuldade em ver o seu trabalho reconhecido e em assinar obras que fez para o BBC Radiophonic Workshop nos anos 60, como a música do genérico da serie de TV “Dr. Who” (é de 1963 foi usada até aos anos 80, mas o nome de Delia Derbyshire só começou a ser creditado em 2013, 50 anos depois…). Confesso ainda, que só nos últimos 10-12 anos descobri Daphne Oram, que também fez parte do BBC Radiphonic Workshop e compôs música eletrónica nos anos 40 e 50, ou Laurie Spiegel, que fez música para a Voyager em 1977. Todas elas têm obra genial, muito à frente do seu tempo e fora da caixa, o que talvez explique porque razão eram quase desconhecidas até aos anos recentes.
[Suzanne Ciani numa performance em Los Angeles em abril deste ano:]
A falta de referências, ou de segurança nas poucas que existem, é tal, que, numa edição recente de um disco de Delia Derbyshire com Martin Hannett (que produziu, entre outros, Joy Division e Durutti Column), em vez de uma foto de Delia, aparece uma de Suzanne Ciani, americana conhecida como a Diva do Diodo — uma confusão que só os muito familiarizados com a identidade das duas mulheres perceberam.
Admito que nunca tinha ouvido falar de Suzanne Ciani até a editora Finders Keepers de Andy Votel, ter lançado, em 2011, a coletânea Lixiviation, isto apesar de ter crescido com o logo sonoro da Coca Cola, que ela criou no final dos anos 70 e de ter visto o filme “Querida, Eu Encolhi os Miúdos”, a primeira banda sonora de Hollywood composta integralmente por uma mulher — Suzanne Ciani, precisamente. De um modo geral, penso que a febre de reedições que se verifica neste século, o fascínio crescente pela música mais obscura do passado, é responsável pela revelação de um território que até aqui parecia inexistente, por estar invisível: o das mulheres pioneiras da eletrónica. Porque foram várias as mulheres que se envolveram com música eletrónica desde que começaram a surgir os primeiros instrumentos. O theremin, por exemplo, criado nos anos 20, ainda hoje o mais intrigante dos instrumentos eletrónicos porque é tocado sem qualquer tipo de contacto físico, teve em mulheres como Clara Rockmore as mais exímias instrumentistas. A história de todas essas mulheres é no mínimo extraordinária, mas são poucas as oportunidades de conhecer a sua versão na primeira pessoa, até porque algumas como Delia e Daphne, já morreram.
Suzanne Ciani, hoje com uns vigorosos 73 anos, passou no passado fim de semana pelo Festival Semibreve com o seu Buchla e mostrou até que ponto o seu trabalho com o instrumento modular (ela não gosta de lhe chamar “sintetizador”, como vamos perceber na conversa) é espantoso e ainda hoje sem comparação. Tal como Morton Subotnick, outro pioneiro do Buchla presente no Semibreve, Suzanne Ciani, assinou um dos mais intensos e maravilhosos momentos do Festival de Braga. Falei com ela um dia antes do concerto. É uma mulher doce e divertida, muito disponível para partilhar conhecimento e muito precisa naquilo que diz e faz. Além de mãos de fada a rodar botões (e a tocar piano, embora essa parte agora interesse menos), tem uma voz suave e encantatória, quase terapêutica, que ela usou muitas vezes processada nas suas criações. É impossível não nos rendermos a Suzanne Ciani
Numa entrevista sua na RedBull Music Academy afirmou que, até ser contactada por Andy Votel da Finders Keepers, no sentido de editar material antigo seu, não fazia ideia de que havia gente interessada no seu trabalho com o Buchla. É verdade?
Sim! Eu não tinha percebido que tinha acontecido uma revolução e que havia de facto um grande interesse pelos sintetizadores modulares analógicos… quer dizer, não usávamos, nem usamos, a palavra sintetizador, mas instrumento modular analógico de musica eletrónica [analogue modular electronic music instrument]. Esperava que este tipo de interesse tivesse acontecido 40 ou 45 anos antes, mas não aconteceu. A minha carreira evoluiu, dei por mim num local afastado, estava a viver na praia, tinha voltado ao piano… sempre usei eletrónica e computadores na minha produção musical mas estava dedicada ao piano novamente…
Porque a sua formação é clássica, em piano…
Sim, desde miúda que estudo piano, mas tive muitas fases na minha vida. Durante muito tempo dediquei-me à música orquestral eletrónica, depois fiz música eletrónica com instrumentos acústicos, depois dediquei-me totalmente à música acústica, fiz um disco sinfónico em Moscovo só com piano e orquestra, chamado Dream Suite. Por isso, ali estava eu a viver no meu mundinho quando o Andy Votel me procurou e editou alguma da minha música antiga e foi então que um novo mundo se revelou… foi como um sonho tornado realidade.
E como se sente, vinda de um contexto tão formal, a ser agora tida como referência por pessoas que fazem música eletrónica para clubes, por exemplo?
Tenho uma perspetiva muito aberta, tudo pode existir, não vou dizer que há apenas uma maneira de fazer as coisas, mas deixo bem claro que a minha intenção é mostrar que este tipo de instrumento, imaginado e criado por Don Buchla, é um instrumento feito para tocar ao vivo. Fazer música eletrónica ao vivo, sem nada pré-gravado é um pouco estranho hoje em dia porque toda a gente está a usar computadores. E acho que até para o público é difícil perceber o que se passa quando estou a toca, mas isso interessa? Talvez não, mas o meu objetivo é chamar a atenção para o potencial que este instrumento com 50 anos tem e como está pronto para ser adotado pela família dos instrumentos conhecidos
Como é que começou a sua ligação com a música? Havia músicos na família?
Quando era muito pequena a minha mãe levou um piano para casa. Sou de uma família de 6 irmãos, 5 raparigas e um rapaz. O meu pai era cirurgião e adorava música, mas não o deixaram estudar música e houve sempre um certo sentimento de falta de realização. A minha mãe era de uma pequena cidade do Iowa e tocava violino, ou rabequa, porque vinha de um meio rural. Ou seja, havia algumas aspirações musicais na minha família mas para mim tudo começou quando me apaixonei pelo piano Steinway…
[uma masterclass de Buchla por Suzanne Ciani:]
E a primeira vez que viu um Buchla percebeu logo para que servia e o como poderia trabalhar com ele?
Já conhecia o conceito de música eletrónica por causa da escola. Tinha estudado Wellesley College, uma escola feminina, e o MIT era uma espécie de instituto irmão. A relação entre as duas escolas era muito recente e um dia juntámo-nos todos e foi-me apresentada a ideia de que um computador podia produzir som — os computadores eram muito lentos e muitos grandes e se eles produzissem som isso mostrava o seu poder. Esse foi o primeiro contacto com a ideia de musica eletrónica, depois tive sorte, de facto foi isso. Tinha a opção de ir para Paris estudar com Nadia Boulanger, como fizeram vários compositores contemporâneos americanos [como Aaron Copland ou Philip Glass, por exemplo], mas ganhei uma bolsa para ir para Berkeley na Costa Oeste e escolhi essa opção porque queria ser independente e foi aí… estava no sítio certo, na altura certa porque em 1969 apareceu o Don Buchla…!
Tenho que perguntar se há alguma verdade no mito que diz que Don Buchla metia LSD nos seus módulos…
[risos] Há que perceber que esta fase, o final dos 60, havia muita agitação. Havia o movimento de liberdade de expressão, tinha havido o verão do amor, havia protestos por todo o lado, foi uma época com muita agitação social e claro que havia muitas drogas. Sei que há muitas histórias sobre o Don meter LSD nos Buchlas, mas eu não diria que ele o fez. Penso que o momento que vivíamos era propício a sermos muito criativos e aconteceram coisas que nunca tinham acontecido antes…
Talvez essa ideia venha do som mais ou menos lisérgico que é produzido pelos sintetizadores… mas não lhes chamavam sintetizadores, pois não?
Não! Era uma palavra proibida porque tinha conotações que não eram apropriadas… O Buchla estava a tentar fazer um instrumento único, novo sem um teclado, ou melhor havia teclado, mas nunca funcionava como um teclado tradicional, eram mais centros de comando programáveis. O que aconteceu foi que o Moog começou a ser comercializado com um teclado para as pessoas perceberem que se tratava de um instrumento musical e isso travou o desenvolvimento do instrumento porque então toda a gente passou a reconhecê-lo como um instrumento de teclas normal — e não é!
Na altura, tinha conhecimento de outra mulheres a fazer o mesmo que fazia a Suzanne, música eletrónica?
Havia outras mulheres, mas eu não sabia da sua existência. Quando o Andy Votel editou os meus Buchla Concerts escreveu nas liner notes que eu era Delia Derbyshire americana… e eu não sabia quem ela era!
Quase ninguém sabia até este século, aliás, também não sabíamos quem era a Suzanne Ciani até recentemente, ou que tinha havido mulheres pioneiras da eletrónica. Havia uma espécie de invisibilidade das mulheres na música eletrónica, como se elas nunca tivessem feito parte…
É isso mesmo. Às vezes as pessoas perguntam-se como, ou porque não havia mulheres na música, mas a verdade é que sempre houve mas as pessoas não sabem da sua existência…é preciso ir à procura delas!
A Suzanne teve alguma atenção mediática na altura, há vários clips seus no YouTube em programas de televisão a explicar o era o Buchla e a música eletrónica, mas sentiu de algum modo que, por ser mulher, tinha mais dificuldade em ser reconhecida pela sua música?
É uma pergunta complexa. Tive sorte porque não tinha competição. Não havia mais ninguém, nem homens, a fazer o que eu fazia, em Nova Iorque. Isso faz diferença. Eu tinha liberdade para fazer o que queria e gostava muito de ter conseguido ter um contrato com uma editora, mas naquela altura, na “música comercial”, era suposto as mulheres serem cantoras e não tocar instrumentos, menos ainda instrumentos que nunca ninguém tinha visto. Por isso é que me dediquei à publicidade…
[Suzanne Ciani no programa da David Letterman em 1980:]
No mundo da publicidade as coisas correram bem…
Sim!
Mas suponho que também não tenha sido fácil uma mulher impor-se a fazer sound design..
Havia uma paixão… acho que posso colocar a questão em termos maternais. Os meus discos eram os meus filhos, tinha uma instinto protetor em relação à minha música como se tem em relação aos filhos, havia ali uma coisa hormonal que me tornava imparável. Queria fazer a minha música como se quer ter um filho e a minha música estava pronta para nascer …
Fez muitas coisas importantes em publicidade, talvez a mais conhecida seja o logo sonoro da Coca Cola. A história diz que a Suzanne estava há mais de um ano a pedir uma reunião com o diretor musical da McCann Erickson que falhava sempre, até que um dia irrompeu pelo estúdio de gravação onde ele estava a produzir um anúncio da Coca Cola e foi desafiada a fazer alguma coisa num pequeno espaço em branco… Sabia exatamente o que queria fazer e como fazê-lo?
Não aquele som para a Coca Cola foi determinado no momento. Foi uma daquelas coisas que aconteceu tão depressa que… queres uma oportunidade para trabalhar, estás à procura e de repente alguém pergunta, consegues meter um som neste espaço em branco? E é também por isso que adoro a música eletrónica, porque é tudo decidido no momento. Tens muito controle criativo mas é como desenhar num sítio sem luz. Havia um pequeno espaço em branco e eu queria um som que pudesse funcionar em muitas situações, não apenas uma, como aconteceria por exemplo se uma voz dissesse Coca Cola ou algo que remetesse imediatamente para a marca, e lembrei-me das bolinhas e funcionou [risos].
Continua a funcionar!
Pois continua!
É fácil pensar que esse som é a gravação de uma garrafa abrir e o líquido a cair no copo, o som processado por algum tipo de software, mas foi gerado pelo Buchla a partir do nada.
A diferença entre samplar, que é gravar som e depois usá-lo, e tocar com um Buchla é que… para mim, uma vez samplado, o som está morto, limita-se a ser tocado. O que acontece com o Buchla é que estamos a produzir o som no momento, estamos a interagir com ele e a mantê-lo vivo.
De algum modo é como se fosse algo de xamânico, ou mágico, tocar o Buchla não?
Sim, acho que podemos dizer isso.
Diria que prefere tocar ao vivo a gravar…
Sim, agora, sim. Já fiz tanta coisa, gravei mais de 15 discos em estúdio mas agora a minha missão é tocar ao vivo e não estou a gravar. Uma boa razão para isso é que o meu som é quadrifónico, precisa de 4 canais para ter uma dimensão espacial. É verdade que lancei um disco quadrifónico mas foi muito caro porque tivemos que incluir um descodificador mas espero que essa opção se torne mais comum para eu poder gravar mais vezes como quero. Agora estou concentrada em tocar ao vivo. Mas em relação à expressão xamânico, acredito que parte da nossa espiritualidade tem a ver com estarmos no momento. Se pudéssemos desligar as nossas mentes e simplesmente estar ali… e é isso que eu estou a tentar mostrar nos espectáculos com Buchla
Usou a sua voz várias vezes mas nunca pensou usá-la de forma mais proeminente? Porque tem uma voz suave e hipnótica, diria mesmo terapêutica…
Estás a inspirar-me! Usei a minha voz no passado, fui a primeira voz numa máquina de flippers, uma pinball machine, a Xenon, e as pessoas na altura diziam que gostavam da minha voz, até queriam que eu fosse a voz da companhia telefónica! Mas sempre usei a minha voz, tinha uma voice box e usei sempre vocoder mas… não sei cantar…