O debate prometia, ou não fosse o único a realizar-se nesta campanha eleitoral até ao dia das eleições de 10 de novembro. E a relevância da votação é também ela muita, já que esta será a quarta vez em quatro anos que os espanhóis são chamados a votar, sem os políticos conseguirem chegar a um entendimento, num fenómeno que em Espanha já adquiriu termo próprio: el bloqueo, ou seja, o bloqueio.
Três horas de debate depois, não parece ter surgido qualquer sinal de que possa não ser esse o cenário desta vez. Ninguém ousou comprometer-se na política de alianças — e Pedro Sánchez foi instado a fazê-lo várias vezes pelos dois Pablos (Iglesias e Casado) — nem surgiram entendimentos naturais. Houve discussões esquerda-direita, mas também entre-esquerdas e entre-direitas, num debate que teve frente-a-frentes para todos os gostos.
Ao centro: o exercício no arame de Sánchez
Pedro Sánchez, animado pelas sondagens que lhe dão a vitória (embora aquém da maioria absoluta) surgiu irredutível na sua vontade de liderar o próximo governo, afirmando que não abdicará desse privilégio.
Foi um dos pontos em que surgiu solitário, como em quase todo o debate, muito devido à estratégia que traçou: tentar fazer um exercício de equilibrismo para pescar votos à direita e à esquerda, sem sair do centro. A aproximação da esquerda para o centro, que já vem sendo feita há algumas semanas, foi reforçada, sobretudo no eixo Catalunha. O tema deu gás ao debate e Sánchez aproveitou-o ao máximo. Sublinhando que quer “diálogo” e que esta é uma crise “de convivência” e não de “independência”, o líder do PSOE aproveitou para propor medidas novas e algo duras para o independentismo, como a alteração da Lei Audiovisual para combater o que classificou de “uso sectário feito pelo independentismo catalão da TV3” e, mais importante, a criminalização de “referendos ilegais como o da Catalunha”.
Como se não bastasse, ainda atirou uma farpa ao Partido Popular (PP) de Pablo Casado, tentando retratar-se como tão ou mais consequente do que os populares neste tema, com a seguinte provocação: “Vocês, senhor Casado, deixaram fugir o senhor Puigdemont. Eu comprometo-me, hoje e aqui, a trazê-lo de volta a Espanha e a prestar contas à justiça espanhola”, disse Pedro Sánchez.
Olhando para a balança, se a retórica pendeu mais para o centro no que diz respeito à Catalunha, Sánchez fez por não perder votos à esquerda noutras matérias. Atacou a extrema-direita do Vox, que acusou de ter um “discurso de ódio”, e defendeu a exumação de Franco e a Lei da Memória Histórica.
A Espanha democrática é fruto do perdão mas não pode ser produto do esquecimento”, afirmou Sánchez.
Esta viragem ao centro está bem patente nas declarações finais do atual presidente do governo, que são todo um programa: “Não partilhamos da visão do senhor Iglesias de que para aumentar o salário mínimo tenhamos de por em causa a unidade de Espanha”, disse. “Também não partilhamos a visão da direita de que, para manter a unidade nacional, tenhamos de renunciar às políticas sociais”. A receita para o sucesso, vaticinou, é unir a “coesão territorial” à “coesão social”.
À esquerda: o peditório de Iglesias a Sánchez
Se tivéssemos de resumir toda a participação de Pablo Iglesias no debate a uma ideia, ela seria apenas uma: assegurar uma coligação com os socialistas. Foi isso que o líder do Unidas Podemos repetiu uma e outra vez, como se quisesse passar para o seu eleitorado a mensagem de que só não houve entendimento para governar após as eleições de abril, porque o PSOE não quis.
Foi esse o tema da intervenção inicial de Iglesias (“Milhões de eleitores de esquerda (…) querem que deixemos as diferenças para trás”) e repetiu o repto várias vezes: como quando, sobre o tema Catalunha, pediu a Sánchez que ajude a combater a “direita ignorante e agressiva” que não entende que Espanha é um país “plurinacional”; quando perguntou diretamente a Sánchez com quem se pretendia coligar (se com o Podemos, se com o PP); ou até quando vaticinou que “a direita discute muito entre ela, mas depois não tem problemas para governar”, algo que a esquerda “tem a aprender”.
O pedido insistente de Iglesias, contudo, não encontrou resposta no líder socialista. Sánchez não respondeu à pergunta direta sobre coligações e ainda aproveitou vários momentos para atacar o dirigente do Unidas Podemos. “Quero dizer aos espanhóis: se o senhor Iglésias não está no governo, nunca aceitará um governo sem o senhor Iglésias”, atirou, como que a tentar explicar porque razão não houve entendimento.
Para além das conversas de surdos com Sánchez, Iglesias ainda se destacou em dois momentos, um de conciliação e outro de confronto, ambos momentos altos do debate. O primeiro foi quando, a propósito da lei de género, conseguiu ter Pablo Casado do PP totalmente do seu lado, dizendo que “em relação à violência de género e contra esses energúmenos das ‘Manadas’, não há nenhuma dúvida”.
O outro foi quando se pegou com Santiago Abascal, do Vox, em comparações entre a Espanha pós-franquista e a Alemanha pós-nazismo: “O que se diria na Alemanha se uma pessoa pudesse reivindicar o corpo de um familiar morto das SS e outro não pudesse fazer o mesmo com um familiar que morreu num campo de concentração?”, questionou Iglesias, o que deixou Abascal irado (“Não sei quais são as origens da sua família, nem me interessa. Mas o meu avô não era das SS”) e levou a uma troca de galhardetes sobre quem tinha sido mais prejudicado pela ETA e quem pode “dar lições” a quem sobre extremismo.
À direita: a dança intensa entre Casado e Rivera
O líder do PP, Pablo Casado, adotou um tom bastante mais moderado neste debate do que nos dois que antecederam as eleições de abril — muito provavelmente porque, nesse ato eleitoral, teve o pior resultado de sempre do partido em eleições legislativas.
Mas mesmo um Casado em versão descafeinada conseguiu ter algum brilho, já que foi ele quem protagonizou os momentos em que Pedro Sánchez ficou em mais dificuldades. E como? Mais uma vez, com o tema Catalunha e coligações eleitorais, perguntando repetidamente ao líder do PSOE se irá formar alguma coligação que inclua partidos independentistas.
A questão é bicuda para os socialistas que, de acordo com as sondagens, não deverão ter maioria para formar governo apenas com o Unidas Podemos, necessitando de alguns partidos independentistas se quiser fazer uma aliança à esquerda. Sánchez tentou contornar a questão dizendo que Casado estava a por em causa coligações com o Partido Nacional Basco — independentista, sim, mas muito mais moderado do que os colegas catalães —, mas o truque não parece ter resultado.
Vai fazer pactos com os independentistas?”, continuou a perguntar Casado, sem resposta. O silêncio de Sánchez sobre essa matéria ia-se tornando ensurdecedor.
Esse foi um dos pontos onde o PP e o Ciudadanos de Albert Rivera estiveram juntos, a tentar encostar o PSOE às cordas, mas o resto do tempo foi mais ocupado a digladiarem-se, numa disputa de eleitorado. Os dois líderes pegaram-se não uma, mas pelo menos três vezes. Uma delas foi sobre a Catalunha, com Rivera a comparar a ação do PP no tema à do PSOE, o que enfureceu Casado e o levou a aconselhar “não se engane em relação ao seu adversário”. Outra foi acerca do tema corrupção, com Rivera a tentar fazer ressuscitar o assunto: “Se deixarem de roubar, se deixarem de tirar dinheiro, sr. Casado e sr. Sánchez, os espanhóis ficam com mais dinheiro no bolso”, atirou. “O que proponho é um governo que não roube, é um governo decente”. E quem parece ter enfiado a carapuça foi mesmo Casado, assombrado por casos como o Gürtel ou o Bárcenas: “Eu ganhei as primárias [do PP] para lutar contra a corrupção”, recordou.
O PP e o Ciudadanos tiveram vários embates — basta recordar que, por duas vezes, Casado pediu a Rivera que não espalhasse fake news sobre o seu partido —, mas o primeiro parece ter saído do debate com mais consistência do que o segundo. Casado foi discreto, mas eficaz contra Sánchez e rebateu os ataques de Rivera. Já o líder do Ciudadanos pareceu um pouco sem rumo: manteve a linha dura na Catalunha, mas tentou moderar o discurso voltando a assumir-se como um “liberal” e o seu partido como sendo “do centro”.
Rivera chegou inclusivamente a criticar Santiago Abascal do Vox, que acusou de dizer nos seus comícios que “todos os ‘vermelhos’ são perigosos”, o que levou a que Abascal lhe atirasse um “o senhor mente!” e acusasse o líder do Ciudadanos de o fazer “frequentemente”. Foi mesmo um dos momentos mais inesperados do debate.
Fora do sistema: o tiroteio de Abascal em todas as direções
Quem aproveitou para reforçar o seu eleitorado e disparar em todas as direções foi, como se esperava, o Vox. O partido de extrema-direita que entrou no Parlamento em abril deverá, de acordo com as sondagens, subir ainda mais agora em novembro e o seu líder, Santiago Abascal, sabe-o. Porquê? Porque se tem mantido fiel à sua receita anti-sistema e é isso que tenciona continuar a fazer, pela amostra deste debate.
Abascal defendeu repetidamente as bandeiras do partido. Foi assim na Catalunha, pedindo a prisão imediata do líder da Generalitat e a ilegalização dos partidos independentistas. Foi também assim na segurança e imigração, dizendo que a preocupação dos políticos com a “tal Manada” faz com que ignorem as “mais de 100 Manadas” que diz terem ocorrido desde então em Espanha, “80% delas provocadas por estrangeiros”, de acordo com Abascal. Houve pedidos de reforço das fronteiras, defesa da “matriz cristã” da Europa e até pedidos de aproximação a países mais próximos culturalmente de Espanha, como “a nação-irmã” que é Portugal.
Mas o líder do Vox não foi ao debate apenas para enunciar o seu programa. Foi para mostrar que está fora do sistema e que critica todos os outros partidos, por igual. Não admira, por isso, que tenha tido momentos mais acesos com praticamente todos os participantes, à exceção de Pablo Casado: com Sánchez sobre a imigração, com Iglesias sobre a Memórias Histórica e com Rivera sobre o seu discurso de “ódio”.
De resto, o método foi sempre o mesmo: alinhar todos pelo mesmo diapasão, em todas as áreas. “O que aqui temos são dois senhores que dizem que vão cortar os impostos, mas não explicam onde se vai buscar o dinheiro e dois senhores que dizem que tudo é grátis e não explicam como se paga o gasto”, atacou o líder do Vox, apontando primeiro para Casado e Rivera e depois para Sánchez e Iglésias, sobre política fiscal.
O truque foi sendo repetido, como por exemplo no tema Catalunha, onde culpabilizou governos do PSOE e do PP de igual forma:
É ofensivo escutar o candidato socialista agora a dizer que se deve criminalizar a convocação de um referendo quando isso foi abolido do código penal por Zapatero”, disse Asbacal a Pedro Sánchez. Mas logo de seguida virou-se para Casado e também lhe atirou o antecessor à cara: “Mas também foi o senhor Rajoy que rejeitou voltar a criminalizar essa ação.”
Com um Vox combativo, um líder socialista que não se compromete com nenhuma solução de governo e os restantes partidos sem saírem dos seus lugares, só uma conclusão salta à vista após três horas de debate: seja ao centro, à direita ou à esquerda, el bloqueo promete continuar.