Por entre a miríade de fait-divers com que nos deparamos diariamente nos nossos múltiplos scrolls pela internet há dois que, no meu entender, ainda não tiveram a devida atenção dos internautas: ambos dizem respeito aos R.E.M. em 1994 e ambos são tão banais quanto irónicos.

Em 1994 – e este é o primeiro fait-divers acerca dos R.E.M. em 1994, tão banal quanto irónico – Michael Stipe rapou o cabelo, um ato razoavelmente comum na vida (por exemplo) de um basquetebolista ou de um adolescente, mas inesperado numa estrela pop – até se pode asseverar, com alguma certeza, que Stipe foi a primeira estrela pop a não exibir uma gloriosa melena.

Como acontece sempre na vida das estrelas, a opção capilar foi espiolhada e sobre-interpretada, ao ponto de a dada altura ter havido quem aventasse que a ausência de cabelo fora provocada por uma suposta infeção pelo vírus do HIV.

A realidade até é, muitas vezes, mais interessante que a ficção, mas não neste caso: “O meu cabelo estava a ficar fino e resolvi cortá-lo”, contava há dias Michael Stipe, com razoável nonchalance, numa entrevista de promoção à edição comemorativa de Monster, o disco lançado no pico da popularidade e que fez 25 anos há dias.

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A capa da edição original de “Monster” e a reedição comemorativa dos 25 anos do álbum

A ironia reside no facto de hoje vermos no boato do HIV uma série de preconceitos que hoje são inaceitáveis – os preconceitos sobre estrelas rock associados aos preconceitos acerca da homossexualidade e aos preconceitos acerca da infeção por HIV; hoje vemos nesse boato o terror da sociedade, traumatizada que estava pelas epidemias da heroína e da SIDA – o terror tende a levar-nos a simplificar em demasia; de modo que se vivemos uma epidemia de SIDA e heroína e uma estrela de rock está magra e sem cabelo e ainda por cima é gay, então de certeza que está a morrer de SIDA.

O segundo fait-divers acerca dos R.E.M. em 1994, tão banal quanto irónico, diz respeito ao capitalismo: Monster, o álbum que os R.E.M. lançaram em 1994, é – supostamente – o disco de sucesso do qual os respetivos donos se tentaram livrar mais depressa; posto de forma mais simples e direta: Monster é – supostamente – o disco de que mais gente se arrependeu de comprar.

Como é de bom tom nestas coisas, não há números oficiais acerca deste mistério, cuja veracidade reside numa experiência pessoal legitimada pelas experiências de outros, que são em número suficiente para assumirem o estatuto de “verdade”, pelo menos a partir do momento em que há textos a corroborar a “verdade”. A partir de um certo número de textos, a suposta “verdade” torna-se verdade de facto porque queremos mesmo muito que seja verdadeira e porque está legitimada por textos.

O meu texto favorito de entre os que pretendem provar que Monster é o álbum que mais desgosto provocou em quem o comprou é datado de janeiro de 2010 e foi publicado na revista online PopMatters; trata-se da narrativa em primeira pessoa da comovente história da hercúlea tentativa de um jornalista de vender a sua cópia de Monster – ao longo sete dolorosos anos. A cada tentativa de despachar a sua cópia, o pobre jornalista deparava com a mesma resposta, fornecida pelos impiedosos capitalistas atrás do balcão de lojas de discos em segunda mão: “Já temos demasiados e isso não se vende”.

A minha experiência pessoal não é esta, mas confirma-a: não fiz parte das pessoas que compraram Monster na semana do seu lançamento, fiz parte das pessoas que compraram Monster em segunda mão, depois da semana do seu lançamento. Não posso garantir que durante sete anos as prateleiras das lojas de discos em segunda mão estavam sempre cheias de exemplares de Monster, mas que durante anos era certo e sabido que se encontrava pelo menos uma cópia de Monster em qualquer loja de discos em segunda mão em quem entrássemos, isso é verdade. (E se não for há agora este texto a garantir que sim, pelo que passou a ser.)

Tenho uma teoria sobre o Estranho Caso do Altíssimo Grau de Arrependimento que Monster Provocou nas Pessoas: Monster foi devolvido porque quem o comprou não era verdadeiramente fã dos R.E.M., era fã de “Everybody Hurts”, admirável canção de Automatic For the People, de 1992, e o disco de maior sucesso comercial dos R.E.M. (vendeu até hoje 18 milhões de cópias).

“Automatic for the People”: o que seria de nós se os R.E.M. nunca tivessem feito este disco?

Essas pessoas – e eu sei que neste momento já há gente ofendida, mas a vida também é um pouco isso: ser ofendido volta e meia por um tipo que não se conhece de lado algum – compraram Monster à espera de uma dezena de “Everybody Hurts”, de um disco sensível e delicodoce – e saiu-lhes uma valente descarga elétrica. Hence, ida à loja de discos em segunda mão mais próxima.

Hoje é pacato escrever isto – mas na década de 90 a vida de imensos fãs dos R.E.M. foi abalada por esta descoberta. Um número incontável de relações chegou ao fim quando um membro do casal ofereceu Monster à sua cara metade apenas para esta revelar o seu verdadeiro ser e um dia, de forma blasé, como se isto fosse insignificante, dizer:

— “Não gosto muito deste disco, faltam canções como o Everybody Hurts”
— “Mas este disco até está mais próximo dos R.E.M. clássicos e tu adoras os R.E.M. clássicos”
— “Não gosto assim tanto, disse isso só para te agradar”
— “Mas, mas…”

Por acaso até havia uma “Everybody Hurts” em Monster, chamada “Strange Currencies”, lindíssima canção melancólica para guitarra elétrica dedilhada e Michael Stipe em modo de hiper-sensibilidade, mas isso não foi suficiente para convencer quem só conhecia os R.E.M. de Out of Time (1990) e de Automatic For the People (1992); isso não foi suficiente para convencer quem não sabia que os R.E.M., apesar da popularidade de anos recentes, sempre haviam sido uma banda esquisita.

[“Strange Currencies”:]

Monster rockava – logo desde o tema da abertura, “What’s the frequency, Kenneth?”, a eletricidade das guitarras dominava o disco, abafando a voz de Stipe, que ficava lá ao fundo na mistura, mas não era suposto rockar: quando acabaram Out of Time, os R.E.M., cansados do excesso de sensibilidade desse disco, propuseram-se fazer um disco elétrico e voraz – mas o que lhes saiu foi ainda mais lento e negro. E assim surgiu Automatic for the People que os tornou mega-estrelas e (aham) respeitáveis.

Só que em 1994 os R.E.M. estavam há cinco anos sem fazer digressões – uma informação que tem automaticamente o poder de fazer o povo entender que isto foi há uma vida: em 1994 era possível viver das vendas dos discos e não dar concertos. Quando se está cinco anos praticamente sem tocar ao vivo, o cérebro de um músico tende a obcecar com uma ideia: tocar ao vivo. É por isto que Monster rocka: porque os R.E.M. queriam voltar a tocar ao vivo e nos últimos anos só tinham canções deprimentes e lentas. De modo que pegaram nas escassas canções rockeiras que haviam escrito por alturas de Automatic For the People e não haviam entrado nesse disco e acrescentaram umas quantas.

Monster era estranho, como os primeiros discos dos R.E.M., mas não era tão misterioso como esses álbuns que não tiveram sucesso comercial: Murmur (1983), Reckoning (1984), Fables of the Reconstruction (1985), Lifes Rich Pageant (1986) e Document (1987) são pérolas do college-rock, de uma era que produziu bandas como os Hüsker Dü e os Replacements e um som de guitarra que não obedecia à tradicional fórmula verso-refrão-verso.

[“What’s the frequency, Kenneth?”:]

Ao contrário do que se costuma dizer, o público não tem sempre razão e havia suficientes canções maravilhosas em Murmur (assim de repente: “Radio Free Europe”, “Pilgrimage”, “Talk about the passion”) e em Reckoning (“Harborcoat”, “Pretty persuasion”, com os seus magníficos coros, “Don’t go back to Rockville”) para que qualquer um deles pudesse ter sido um êxito. Não foram – como tantas outras bandas dos anos 80 que por alguma razão escaparam ao sucesso (Go-Betweens à cabeça).

A cultura, nessa altura, era muito diferente do que viria a ser a meio dos anos 90 e os porta-estandartes do college-rock começaram a definhar; sozinhos na paisagem inóspita da transição dos anos 80 para os anos 90, os R.E.M. começaram a fazer música que, de certa forma, pode ser considerada ainda mais esquisita porque ia beber tanto à pop como à música de raiz mais tradicional (daí a recuperação de bandolins e afins).

Há uma frase de David Berman, falecido líder dos Silver Jews, que diz muito sobre a apreciação que a rapaziada das margens fazia dos R.E.M. no início dos anos 90: ao tentar justificar o facto de ter acabado com os Jews, Berman disse: “Se continuasse ainda escrevia a sequela de Shiny Happy people”. “Shiny happy people” é a canção mais pop de Out of Time e uma das canções responsáveis pelo sucesso de vendas em que a banda se tornou – e pelo fim da reputação dos R.E.M. entre os apreciadores de música (hum) cool.

[“Star 69”:]

Um dos maiores anacronismos dos anos 90 era esse: músicos experimentais e fãs de música arriscada queriam distância de tudo o que tivesse sucesso, do que fosse comercial, porque por norma isso significava que a integridade artística havia sido comprometida. Mas ao mesmo tempo esta foi a altura em que bandas extraordinárias como os R.E.M. e os Nirvana venderam milhões de discos; em que bandas experimentais como os Sonic Youth e os Morphine editaram álbuns através de majors; em que junkies niilistas e/ou deprimidos (Kurt Cobain, Mark Sandman) foram os símbolos e os líderes da juventude e não faziam discursos para agradar a ninguém.

Isto fazia dos R.E.M. uma banda dúplice – simultaneamente no topo do mundo mas também em vias de perder a sua street cred, o seu mojo indie; antes o spirit animal do quarteto seria (digamos) um furão; agora seria um gatinho fofinho e melancólico enrolado numa mantinha junto a uma lareira.

Os fãs que fizeram de Automatic For the People um colosso de vendas (como uma parte das pessoas que fizeram de Nevermind um colosso de vendas) não eram fanáticas de rock’n’roll, eram pessoas que ouviam rádios comerciais; e do mesmo modo que a maré empurrou para o estrelato gente que nunca se imaginou estrela, a maré vazou e deixou restolhos na praia – como os cadáveres de River Phoenix e Kurt Cobain. Phoenix era como um irmão para Michael Stipe e morreu no início do processo de escrita de Monster – e “Let me in” é-lhe dedicada. Cobain, amigo de Stipe, morreu já no final das gravações.

[“Let me in”:]

Isto não significa que Monster seja exclusivamente negro, mas que tem sombras em seu redor, óbvias em “Let me in” mas também em “Tongue”, contada do ponto de vista de uma rapariga que dispõe o seu corpo para os rapazes em troco de um pouco de atenção. Um quarto de século antes do movimento #MeToo um homem escreveu um refrão em que se cantava “It pains me/ Please just leave it”.

As mortes de Phoenix e de Cobain determinaram o fim da ascensão da contra-cultura – há um limite para o que comunidade aceita legitimar e um desses limites é uma epidemia de heroína. A indústria rapidamente deixou cair as bandas que arriscavam e tratou de produzir uma série de bandas que aparentavam ser como os Nirvana mas cuja música era inofensiva. As camisas de flanela, que alguns músicos usavam porque viviam em zonas frias, tornaram-se itens de moda porque a moda precisa de novidades para vender.

Com o par de discos mais comerciais de início da década de 1990 os R.E.M. perderam uma parte dos seus fãs de primeira hora; com Monster perderam os fãs mais recentes. Já não eram cool para a malta cool – e também já não eram cool para quem ouvia música comercial. Monster quedou-se numa zona de ninguém, sem amigos. E isso trouxe-lhe a mais humilhante das formas de indiferença social: escassíssima produção semiótica a seu respeito, quase inexistente presença nas redes sociais.

[“Crush with eyeliner”:]

Como tal, o final perfeito para esta história era uma total revisão do estatuto de Monster que implicasse a sua entronização como objeto fundamental da egrégia disciplina dos antigos, conhecida por rock’n’roll, a sua elevação a obra-prima – mas a realidade tende a ser mais comezinha: Monster é um bom disco de rock-sem-merdas de quem aprendeu a fazer as canções soarem grandes: tem uma data de riffs de eleição (“What’s the frequency, Kenneth?”, “Crush with eyeliner”, “Star 69”, “Bang and blame”, “I took your name”), um par de canções tristes e lentas e negras (“Let me in” e “Tongue”), a ocasional canção aleatória de quem ninguém se lembra, e que as bandas fazem quando já têm uma discografia longa e começa a tornar-se complicado distinguir o bom do mau (“I don’t sleep, I dream”), e uma canção perfeita e negligenciada (“Strange currencies”).

Mas talvez não seja este o prisma pelo qual devemos avaliar este Triângulo das Bermudas em forma de disco – talvez seja mais engraçado pensar no que este disco pode significar hoje para quem nasceu em 1994. É pouco provável que uma rapariga nascida em 1994 esteja em pulgas para adquirir a caixa comemorativa de Monster, que inclui um disco extra de demos e outro com uma nova remistura; pelo menos é mesmo muito pouco provável que esteja tão entusiasmada como com uma nova canção de Rosalía ou de Ariana Grande.

Para quem nasceu em 1994, Monster é dad rock. O que significa que Monster vai continuar sem amigos – ou pelo menos que vai continuar sem amigos que não sejam velhotes.