A ex-embaixadora dos EUA na Ucrânia, Marie Yovanovitch, foi ouvida esta sexta-feira no Congresso norte-americano, no segundo dia de audições à porta aberta no âmbito do processo aberto pelo Partido Democrata que poderá conduzir à destituição — ou impeachment — do Presidente Donald Trump.

A audição foi marcada por declarações emotivas da antiga embaixadora, que disse nunca ter visto algo igual à “campanha de difamação” promovida por Rudy Giuliani que levou ao seu afastamento e disse-se ainda “chocada e devastada” pelo facto de ter sido diretamente criticada no telefonema de Trump com o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky — que deu o pontapé de saída para este processo de impeachment.

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No centro do processo do impeachment está a tese dos democratas de que Trump poderá ter pressionado o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, para investigar Joe Biden (que é seu rival nas próximas eleições norte-americanas) a propósito dos negócios do filho de Biden na Ucrânia, oferecendo em troca ajuda financeira e militar ao país.

A sessão foi ainda marcada por tweets do próprio Presidente contra a embaixadora, uma ação que os democratas consideraram poder ser uma forma de intimidação de uma testemunha. E a estratégia dos republicanos assentou em sublinhar que Yovanovich — que Devin Nunes felicitou pela fantástica “performance” — não teve envolvimento direto nessa chamada telefónica, nem testemunhou nenhum incidente no chamado quid pro quo que estaria em causa (ajuda financeira à Ucrânia em troca de investigação aos Bidens). Para além disso, a estratégia da defesa apontou outras alegadas irregularidades que envolveriam cidadãos norte-americanos em Kiev, numa tentativa de insinuar que haveria um esforço concertado para prejudicar Donald Trump a partir daquele país — como o próprio Presidente já afirmou.

Yovanovitch, a vítima de uma “campanha de difamação”

Nomeada embaixadora na Ucrânia em 2016, Marie Yovanovitch foi acusada por Rudy Giuliani e pelo ex-procurador ucraniano Yuri Lutsenko de estar envolvida numa conspiração lidar com casos que prejudicariam Trump na campanha eleitoral, como o do chamado “livro preto”, um livro de contabilidade onde estavam descritos pagamentos do antigo Presidente ucraniano e de outros oligarcas a Paul Manafort, diretor de campanha de Trump.

Essa acusação foi imediatamente desmentida pela própria nas suas alegações iniciais: “Não disse ao senhor Lutsenko ou a outros procuradores quem deviam ou não acusar”, algo que considerou “inaceitável” por parte de um diplomata. E acrescentou: “Nunca conheci Hunter Biden nem tive conversas diretas ou indiretas com ele; e apesar de já me ter cruzado várias vezes com Joe Biden, nem ele nem outros membros da administração alguma vez mencionaram o tema Burisma [empresa em que Hunter trabalhava] comigo”.

Marie Yovanovitch acabaria afastada do cargo antes de terminar a sua missão diplomática — mesmo tendo o Departamento de Estado desmentido as acusações contra a embaixadora. Esse foi um processo que a embaixadora classificou na sua intervenção inicial como sendo “uma campanha de difamação” contra ela, promovida por Giuliani, desmentida pelo próprio Departamento de Estado.

Ainda acho difícil de compreender que interesses estrangeiros e privados tenham minado os interesses nacionais”, aludiu Yovanovitch, para classificar a “campanha contra uma responsável nacional através de um backchannel não-oficial”, que terá sido levado a cabo por Rudy Giuliani, advogado pessoal do Presidente.

Yovanovitch demonstrou ainda alguma emoção ao ser mencionado pelo presidente do Comité, o democrata Adam Schiff, o facto de a embaixadora ter sido diretamente nomeada por Trump no telefonema com y — “a antiga embaixadora dos EUA, a mulher, ela não trazia nada de bom e as pessoas que a rodeavam também não”, disse o Presidente no telefonema. A antiga embaixadora começou por classificar essa afirmação apenas como sendo algo que “abalou o moral da embaixada em Kiev e do Departamento de Estado”, mas acabou por confessar que a informação a afetou diretamente. “Fiquei chocada, completamente chocada e devastada, para dizer a verdade”, disse Yovanovitch. “Uma das pessoas que me viu a ler a transcrição disse que fiquei branca. Até neste momento, fico ainda sem palavras.”

No testemunho à porta fechada, Marie Yovanovitch já tinha dito ter-se sentido ameaçada por Trump e afirmou que até foi aconselhada por outro embaixador a publicar tweets elogiosos sobre o Presidente Donald Trump.

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Os tweets do Presidente que podem ser intimidação

O momento mais fulcral da audição, contudo, não chegou vindo de dentro da sala, mas de fora. Enquanto Marie Yovanovitch testemunhava, o próprio Presidente tweetou sobre ela, muito embora a sua equipa tenha dito que Trump não estava a assistir à sessão. “Onde quer que a Marie Yovanovitch vá as coisas correm mal. Ela começou na Somália e como é que isso ficou? Depois avancem para a Ucrânia, onde o novo Presidente ucraniano me disse mal dela no segundo telefonema que tivemos”, escreveu o Presidente dos EUA.

A atitude levou de imediato a que Adam Schiff lesse os tweets em voz alta na sessão e perguntasse a Yovanovitch como comentava. A ex-embaixadora limitou-se a dizer que “não tem poder” para fazer as coisas correrem mal em diferentes países. Os democratas, pela voz de Schiff, afirmaram que os tweets têm particular gravidade por poderem ser uma forma de intimidação de uma testemunha — o que pode, no limite, fazer com que essa seja uma das acusações finais que serão votados.

A correspondente do New York Times na Casa Branca, Maggie Haberman, relembrou que o procurador-especial Robert Mueller, que conduziu a investigação às suspeitas de conluio da campanha Trump com os russos, considerou que tweets semelhantes de Trump em relação a outras testemunhas eram uma forma de interferir com elas e uma forma de obstrução da Justiça.

As críticas dos republicanos à “performance” de Yovanovitch

Do lado dos congressistas republicanos com assento no Comité, as hostilidades foram abertas pelo seu presidente naquela câmara, Devin Nunes, que começou por “felicitar” a antiga embaixadora: “Esteve lá em baixo nas salas dos depoimentos secretos, foi aprovada. E [quero felicitá-la] pela sua performance hoje também“, afirmou.

De seguida, deixou clara a estratégia principal do partido: fazer uma série de perguntas que deixam claro que Yovanovitch não foi testemunha direta dos crimes de que Trump é acusado. “Não tenho a certeza do que faz a embaixadora aqui hoje”, rematou o congressista.

Já Steve Castor, o arguente do lado da defesa do Presidente, fez antes várias perguntas para ilustrar a série de casos que podem envolver norte-americanos na Ucrânia e que poderiam ter como objetivo prejudicar a eleição de Trump “Havia outros a tentar ‘apanhar’ o Presidente Trump”, afirmou a certo ponto, numa estratégia de validação da argumentação do Presidente, que afirma que Yovanovitch se terá rodeado destas pessoas. A ex-embaixadora rejeitou as acusações e acrescentou que “há pessoas que são críticas”, algo que fica patente “nas redes sociais”.

Isso não quer dizer que um governo esteja a tentar minar os interesses de outro país”, acrescentou Yovanovitch. “Relembro que nos EUA se concluiu que a Rússia, essa sim, estava a tentar interferir com o nosso país.”

Se os democratas foram pela estratégia mais imediata de tentar provar que Trump afastou deliberadamente Yovanovitch por ser de alguma forma prejudicial aos seus interesses pessoais no país — apoiando-se no testemunho direto e emotivo da própria —, os republicanos percorreram um caminho mais intrincado. “Eles têm duas audiências”, resumiu o jornalista especializado nas secretas do New York Times, Julian Barnes. “Um é o público americano em geral e, para esse grupo, eles tentam provar que o testemunho de Yovanovitch é irrelevante. E depois há uma segunda audiência, a dos apoiantes de base de Trump, que estão muito mais a par de teorias sobre o caso do ‘livro preto’ como sendo conspirações contra o Presidente.”