Quando Martin Scorsese realizou “Os Cavaleiros do Asfalto”, em 1973, o falecido crítico de cinema Roger Ebert disse que ele iria tornar-se no “Fellini americano”. Ebert enganou-se. Scorsese transformou-se, isso sim, num antropólogo cinematográfico. Ele é o Claude Lévi-Strauss da Máfia, o melhor observador, cronista e explicador desta tribo do crime, dos seus comportamentos, costumes, códigos de lealdade, estruturas hierárquicas, rituais corporativos e linguagem, da sua mentalidade, iconografia e guarda-roupa, em filmes como o citado “Os Cavaleiros do Asfalto”, “Tudo Bons Rapazes”, “Casino”, “Gangs de Nova Iorque” e “Entre Inimigos”, no episódio-piloto de “Boardwalk Empire” e agora em “O Irlandês”, que em Portugal só poderá ser visto na Netflix, que o produziu. Que não haja hoje em Hollywood um estúdio que apoie um cineasta como Scorsese, diz muito sobre o estado a que chegou a indústria cinematográfica americana.

[Veja o “trailer” de “O Irlandês”:]

Escrito por Steven Zaillian com base no livro de Charles Brandt I Heard You Paint Houses (em calão mafioso, “pintar casas” significa matar a troco de dinheiro – a “pintura” é o sangue da vítima que espirra para as paredes), “O Irlandês” não está filmado com o frenesim visual, a exuberância sonora e a metralha verbal de todos os filmes de “gangsters” anteriores de Scorsese. O ritmo é pausado, o tom é grave e a conversa é quase sempre a estritamente necessária, com muitos subentendidos e meias palavras. Até a violência é rápida e abrupta, o tempo de passar ao pé da vítima e meter-lhe dois balázios na cabeça, ou de pôr umas bombas incendiárias nos carros de quem não se está a portar como devia. Em “O Irlandês”, matar e intimidar é trabalho, não é espectáculo.

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[Veja uma entrevista com Martin Scorsese:]

Encontramos aqui todos os nossos velhos conhecidos da “família” scorsesiana  – Robert De Niro, Joe Pesci, Harvey Keitel, e mais Al Pacino – e os temas, as personagens, os nomes, ambientes, esquemas, as trafulhices, situações criminosas e a violência mais do que familiares. Mas “O Irlandês” é também o filme do homem que fez “A Última Tentação de Cristo” e “Silêncio”. É um “Tudo Bons Rapazes” virado pelos fundilhos, austero, introspetivo e lacónico, onde o tempo vai pesando cada vez mais e a morte está sempre a lembrar que é inescapável (quando aparece uma personagem nova, Scorsese para a imagem por breves segundos e põe uma legenda com a forma como morreu – quase sempre violenta), onde há vários assassínios mas também muito sentimento de culpa, inquietação moral e arrependimento, mesmo que retroativos.

[Veja uma entrevista com Robert De Niro e Al Pacino:]

Em vez do psicopata sanguinário, do vígaro de meia tigela ou do fala-barato a que nos habituou, Joe Pesci (saído da reforma para fazer esta fita) interpreta, em inatacável “underacting”, um mafioso de Filadélfia calmo, sensato e, quando necessário, implacável, chamado Russell Bufalino, um dos vértices do triângulo de amizade, lealdade e traição que forma a história de “O Irlandês”. Os outros dois são Frank Sheeran (Robert De Niro), o irlandês do título, um veterano da II Guerra Mundial que Russell toma sob a sua proteção; e Jimmy Hoffa, o poderoso, corrupto e abrasivo presidente do Sindicato dos Camionistas dos EUA, desaparecido em 1975 e posteriormente declarado morto, e interpretado por Al Pacino como se pertencesse a “Tudo Bons Rapazes” e “Casino” e não a este filme muito mais soturno e circunspecto, ou se tivesse transformado em Joe Pesci.

[Veja uma entrevista com Al Pacino:]

“O Irlandês” é contado em “flashback” por um Frank idoso e alquebrado, que sobreviveu à mulher e a todos os outros mafiosos, tem pouco contacto com as quatro filhas, vive numa casa de repouso e sente a sua hora aproximar-se. O pano de fundo histórico abrange a invasão da Baía dos Porcos, o assassinato do presidente John F. Kennedy, a investida jurídica do seu irmão Robert contra a Máfia, a crise dos mísseis de Cuba e o Caso Watergate, e os vasos comunicantes e pontos de intersecção entre todos estes acontecimentos, os seus principais atores e o mundo do crime. Pelo meio, circulam Russell, Hoffa e Frank, este numa constante jiga-joga entre os outros dois, ligado a eles por laços de amizade, lealdade e interesse, servindo de mensageiro, elo de ligação, apaziguador e almofada, tentando mantê-los sempre satisfeitos e em harmonia.

[Veja uma entrevista com o argumentista Steven Zaillian:]

Muitas das melhores cenas de “O Irlandês” são de intimidade, cumplicidade e entendimento entre Frank e eles. Frank e Russell a combinarem um assassínio com uma troca de olhares e um par de frases crípticas, ou a trocarem banalidades numa viagem de carro que fazem com as mulheres para irem a um casamento em Detroit; Frank e Hoffa num quarto de hotel a falarem da homenagem que o sindicato vai prestar ao primeiro num grande banquete, ou a verem as audições do Watergate na televisão. Só que o momento chegará em que as coisas vão azedar entre os mafiosos e o sindicalista, e Frank vai ter que fazer uma escolha cujas consequências atingirão a família e irão assombrá-lo para o resto da vida, em especial nos últimos anos de doença e solidão. Em nenhum outro dos seus filmes de “gangsters” Scorsese filmou a consciência da traição, o peso do arrependimento e a agonia da culpa como neste.

[Veja uma cena de “O Irlandês”:]

Ao contrário do que se poderia temer, o rejuvenescimento digital dos atores não se faz notar particularmente. Há apenas uma ou duas cenas em que a movimentação do quase octogenário Robert De Niro trai o seu aspeto mais jovem. A cena em que Frank telefona à mulher de Jimmy Hoffa logo após o desaparecimento deste, e a meia hora final da fita, onde o velho e achacado “gangster” avalia a sua vida e as suas ações, enquanto compra um caixão para si e procura algum alívio espiritual junto de um padre, redimem todos os papéis alimentares, medíocres e descartáveis que De Niro tem colecionado de há vários anos para cá. Há muito tempo que o não o víamos fazer tão pouco e expressar tanta coisa com tanta concentração emocional.

[Veja uma cena de “O Irlandês”:]

Há que referir ainda Peggy, a filha de Frank, interpretada quando pequena por Lucy Gallina e por Anna Paquin quando crescida. Peggy é a consciência muda de “O Irlandês”. Embora não diga mais de meia-dúzia de palavras durante todo o filme, o olhar de reprovação, ressentimento e acusação que, quando adulta, deita em seu redor e concentra em Frank, resume o que ela pensa do pai, e é também o juízo do próprio realizador. Independentemente das desculpas que possa pedir e de dizer que tudo o que fez foi a pensar no bem-estar e na proteção dos seus, e pela lealdade devida aos seus maiores, ele é um brutamontes, um assassino e um traidor a quem confiava nele como se fosse da família, e o seu castigo é ter sobrevivido e envelhecido sozinho com a sua culpa.

“O Irlandês” é uma elegia de três horas e meia por uma geração de “gangsters” extinta, e pelo próprio filme de mafiosos tal como Martin Scorsese o cultivou, codificou e definiu ao longo de quase 50 anos, de “Os Cavaleiros do Asfalto” e este. Não admira que a passagem do tempo, a forma de o traduzir numa narrativa cinematográfica e o efeito que tem sobre as personagens, os seus atos e as suas vidas, sejam tão importantes e se manifestem de forma tão superiormente realista, eloquente e melancólica como em “O Irlandês”.

(“O Irlandês” não vai ter estreia comercial em Portugal e está disponível na Netflix a partir de quarta-feira, dia 27)