Goo Hara é o nome da mais recente estrela do universo K-Pop a perder a vida. Aos 28 anos de idade, a artista foi encontrada morta na sua casa em Seul, Coreia do Sul, no fim de semana passado. No local, a polícia encontrou um bilhete “pessimista”, escrito à mão, abandonado na mesa da sala de estar. Já antes, em junho, a ex-membro da banda feminina Kara fora encontrada inconsciente e teve de ser hospitalizada — à data admitiu que estava a combater uma depressão e prometeu reagir contra os muitos comentários negativos que recebia através das redes sociais.
A história de Goo Hara, que se despediu no Instagram com um perturbador post, está longe de ser única. Desde 2017 já quatro estrelas do movimento musical K-Pop perderam a vida em circunstâncias semelhantes. Sulli, amiga íntima de Goo Hara, que em tempos integrou a banda f(x), morreu em outubro. Foi encontrada morta em casa e o suicídio é a causa mais apontada. Sulli tinha 25 anos. Antes dela, morreu Seo Min-woo, em março de 2018, líder da banda 100%. O motivo oficial de morte foi um ataque de coração — Seo Min-woo tinha 33 anos. São poucos os detalhes sobre o que aconteceu. Em dezembro de 2017, Kim Jong-hyun, da banda SHINee, também foi encontrado inconsciente no hotel, no exclusivo bairro Cheong-dong, onde residia — morreria mais tarde no hospital. Jong-hyun, de 27 anos, deixou uma nota de suicídio, onde escrevia que tinha sido consumido pela depressão.
À medida que a imprensa internacional presta mais atenção ao que está por detrás deste género musical, mais se descobre: dietas rigorosas, cirurgias plásticas, contratos severos, subornos, assédio e muitas horas de trabalho são algumas das difíceis condições da indústria K-pop já antes relatadas. Em Portugal, o fascínio pela K-pop é real, com workshops dedicados ao estilo e clubes de dança a ganharem idade e escala, mas as notícias de um lado mais obscuro da indústria não deixam ninguém indiferente.
K-Pop em português
Paula Lagarto tem 42 anos e é professora de português e inglês. Trabalha no agrupamento de escolas de Almodôvar, no Alentejo, e há seis anos que é responsável por um clube dedicado ao universo K-pop, o qual promove sobretudo dança e um pouco de cultura sul-coreana. O grupo All.ways com cerca de 20 alunas, entre os 10 e os 18 anos, tem por hábito ensaiar semanalmente coreografias tiradas diretamente dos vídeos mais populares, as quais são partilhadas no respetivo canal de Youtube e exibidas nas performances ao vivo que vão tendo ao longo do ano. Algumas das integrantes sabem inclusivamente falar e escrever coreano — uma ex-aluna está agora a estudar na China depois de se ter apaixonado pela cultura asiática. A dança e a música servem de porta de entrada para uma empatia imediata com a cultura sul-coreana. São fãs das bandas mais populares e não estão indiferentes às notícias que têm marcado a atualidade.
Quando em dezembro de 2017 Kim Jong-hyun foi encontrado sem vida, o assunto foi discutido na escola. “Falámos sobre isso. Elas ficaram inicialmente em choque, mas conseguiram ultrapassar isso bem. Somos um meio pequeno, há muito contacto uns com o outros e, felizmente, não me preocupa o solidão”, diz Paula Lagarto ao Observador. “Claro que falamos [sobre estas notícias]”, assegura.
À semelhança das alunas que compõem o grupo, Paula Lagarto conhece bem o universo K-pop e em conversa telefónica recorda a experiência que teve num concerto recente do grupo VAV — “a quinta ou sexta banda a atuar este ano em Portugal”. É “fã adulta”, diz, pelo que tem noção das coisas menos positivas que têm sido escritas lá fora. “Elas, que são mais novas, não pensam tanto nessas coisas. Gostam de vê-los e de ouvi-los. Nós vemos outra realidade”. Paula está ciente dos escândalos, dos impedimentos das estrelas e cita histórias da K-pop de cor e salteado.
A sul-coreana Sunbee Han é formadora de K-pop no Museu de Oriente, que esporadicamente, desde a primavera, realiza workshops dedicados às coreografias do género musical. É dançarina profissional em Londres e vive em Portugal com o marido, um coreógrafo britânico. Em sala de aula, ensina diferentes covers de diferentes músicas — e fá-lo não só no Museu do Oriente, como também no estúdio de dança que abriu na Ericeira, PositiveNoMad studio.
Hoje com 33 anos, Sunbee Han era adolescente quando o fenómeno K-pop surgiu, pelo que pertence à primeira geração influenciada por esse universo. Reconhece que o estilo está a chegar a diferentes partes do globo e surpreende-se de cada vez que ouve uma aluna portuguesa cantar em coreano. Também ela tem noção da pressão a que os ídolos podem estar sujeitos, até porque trabalha de certa forma na indústria, e culpa, em parte, o uso que se faz da internet. Afinal, no tempo dela o que havia eram espetáculos ao vivo e vídeos que passavam na televisão. As redes sociais eram miragem e os comentários negativos que delas brotam também.
“Antes de serem estrelas eles tinham um sonho. Às vezes, quando chegamos a um certo nível, a fama implica muita pressão. Enquanto audiência, também devemos ajudar. Eles são seres humanos”, diz, afirmando que é importante não perder o género enquanto parte da cultura do seu país e lembrando os aspetos positivos da dança. “Vejo isso com os meus alunos. Há um aumento de confiança, ficam mais extrovertidos. E todos têm um motivo diferente para dançar K-pop”. Sunbee Han sente-se uma espécie de embaixadora do K-pop em Portugal, pelo que ambiciona levar os seus ensinamentos a outras cidades do país: Faro e Porto, onde nunca esteve, são ambições reais.
As origens de uma “arma económica”
Coreografias, cores vibrantes e rostos jovens. O movimento musical K-pop começou a ganhar força a partir dos anos 90 e foi buscar grande parte da inspiração às boy band norte-americanas (e girl bands britâncias se pensarmos no sucesso global das Spice Girls). O estilo musical que tem servido de porta de entrada para o ocidente é profundamente comercial e resulta da rápida transformação da cultura sul-coreana, como já antes deu conta o jornal brasileiro O Globo, num podcast que explorou as origens do género.
Se no início da década de 1990 a música sul-coreana tinha pouquíssima expressão internacional e era particularmente fechada, hoje essa é uma realidade tão longínqua quanto inicialmente estranha: em maio do ano passado, os famosos BTS eram notícia por serem responsáveis pelo primeiro disco de K-pop a chegar ao número um do top de vendas dos EUA. A banda tornava-se assim no primeiro grupo da pop sul-coreana contemporânea com o álbum mais ouvido e comprado nos EUA durante uma semana, ultrapassando à data nomes como Post Malone, P!nk, J. Cole, Cardi B e Arctic Monkeys. O sucesso é tanto que os fãs do grupo são conhecidos como membros do “exército BTS” (“BTS army” em inglês).
[O videoclip de DNA é o mais visto dos BTS no Youtube. Tem mais de 875 milhões de visualizações:]
A Business Insider escreve que governos bem sucedidos incluíram a música numa estratégia de “soft power” para “posicionar a Coreia do Sul enquanto líder cultural asiático”. Exemplo disso é precisamente o sucesso da banda BTS, considerada um “fenómeno global”, que já colaborou com Steve Aoki, Nicki Minaj e outras estrelas do ocidente. A mesma publicação garante que em 2018 as quatro maiores empresas de K-pop tiveram receitas no valor de 1.1 mil milhões de dólares, de acordo com a agência de exportação musical DFSB Kollective. Não é por acaso que a BBC Radio 1 apresentou um documentário, publicado no Youtube em janeiro de 2018, onde se referia à K-pop como a “arma secreta da Coreia do Sul” — não só no sentido financeiro, já que consta que na fronteira muitas vezes os soldados sul-coreanos transmitem K-pop na direção da Coreia do Norte.
Governo e empresas privadas estão na origem do crescimento acelerado deste género musical dado os investimentos que foram feitos no final dos anos 90. Tal como se garante no podcast já citado, a K-pop surge de uma política de estado, com o governo a providenciar planos de incentivo para a música — o ministério da Cultura sul-coreana tem inclusive um departamento dedicado à K-pop, este que, reunindo em si pop, rap e eletrónica, estilos embrulhados num conceito muito visual, é tido como a imagem da globalização daquele país e encarado enquanto “arma económica”. O K-pop faz parte da “onda coreana”, de nome “Hallyu”, referente à popularização da cultura sul-coreana a partir precisamente da década de 1990.
Ainda assim, foi apenas em 2012 que o ocidente limpou os ouvidos para escutar e dançar ao ritmo de Gangnam Style, de Psy, um hit viral daquele que seria o primeiro artista de sempre a conseguir mil milhões de visualizações no Youtube. Publicado a 15 de julho desse ano, o vídeo tem atualmente mais de 3.463 mil milhões de visualizações.
O universo K-pop facilmente cria, entre os seus fãs, fascínio pela cultura sul-coreana, tanto que o estilo musical foi o motivo porque um em cada 13 turistas vindos de fora do país visitaram a Coreia do Sul em 2017. Mais, o governo anunciou no início do ano que vai construir uma arena totalmente dedicada à K-Pop até 2024, de maneira a atrair ainda mais turistas.
O lado negro da indústria multimilionária
São amados por milhões de fãs, mas fora dos palcos e das redes sociais a realidade é outra. Em março de 2017, as principais agências de talento da Coreia do Sul foram ordenadas pela Comissão de Comércio Justo a acabar com os contratos injustos que propunham aos seus associados. A Variety falava, então, de “contratos-escravos”. Em causa estavam agências conhecidas por trabalhar desde cedo o talento potencial de vários jovens que sonham ascender a “ídolos” — expressão usada pelos sul-coreanos para definir as estrelas da K-pop –, mas também pela postura agressiva com que operam no mercado.
Entre as agências visadas pela decisão estavam as três de maior influência no país: JYP Entertainment, SM Entertainment e YG Entertainment, mas também firmas mais pequenas (OEN, FNC, Cube, Jellyfish Entertainments e DSP Media). À data, a Comissão de Comércio Justo tinha inspecionado oito agências e exigiu a correção de seis tipos de cláusulas contratuais, uma vez que algumas das penalidades aplicadas aos jovens em treino que violavam o contrato ou que queriam abandonar o negócio eram excessivas, rondando entre os 86 mil e os 129 mil dólares. O jornal Globo, já aqui citado, esclarece que existem empresas responsáveis por criar os grupos musicais de K-pop, com os jovens talentos a terem de aprender a dançar, cantar e atuar desde muito cedo, de maneira a serem lançados em grupo no mercado. Um trabalho milimétrico.
Porque, para ascender a ídolo, não é fácil. As estrelas treinam muito e desde muito novas, têm uma reduzida vida pessoal e algumas são mesmo proibidas de namorar, sendo que os membros dos grupos musicais têm de viver juntos, debaixo do mesmo teto. As regras são muitas e o dinheiro pode não ser tanto quanto o esperado. Quando a locutora da BBC Radio 1 Adele Roberts questiona a manager de uma banda K-pop sobre se estes artistas são ricos, no documentário já citado, esta responde: “Acho que não. Porque custa muito dinheiro alcançar sucesso. Isso não é necessariamente verdade”.
Um contrato típico entre uma empresa e as suas estrelas implica que esta pague pelas despesas, como viagens, alimentação e aulas, na esperança de obter ganhos através dos grupos musicais — mas, por vezes, os gastos são muitos e as estrelas precisam de pagar o que devem, esclarece a Insider. Sobre isso já antes uma ex-estrela K-pop falou neste vídeo.
Os ídolos são conhecidos por terem uma carreira muito curta e não é raro alguns deles canalizarem o sucesso para negócios secundários. A carreira tende a ser interrompida, no caso das boys bands, quando eles são chamados para cumprir o serviço militar obrigatório que dura cerca de dois anos, tempo em stand by que pode revelar-se prejudicial para a carreira musical. São vários os tipos de constrangimentos, incluindo aquele vindo dos fãs, alguns deles conhecidos como “sasaengs”, pessoas obcecadas que perseguem os ídolos e que não raras vezes invadem a esfera privada destes. Um fervor que, segundo a publicação Ranker, é alimentado pela indústria. Tanto as empresas como os ídolos têm noção do impacto que a imagem de “disponibilidade” passa, daí que muitos estejam proibidos de namorar.
A isso juntam-se as notícias que dão conta de assédio no local de trabalho, de dietas extremas a que algumas estrelas se submetem e a fixação pelas operações plásticas. A expressão “ídolo” não vem ao acaso: as estrelas precisam de manter os standards de beleza exigidos pela indústria e esperados por uma sociedade que, apesar do avanço tecnológico e dos vídeos coloridos que misturam estilos musicais, ainda se mostra conservadora. Ao Insider, um dos membros da banda Great Guys resumiu assim os seus dias: “Ginásio, estúdio e quarto — esta é a minha vida num círculo. Agora estamos a preparar o nosso novo álbum e estamos muito ocupados. Honestamente, não temos muito tempo para comer. Nem somos livres para comermos o que quisermos”.
Goo Hara e Sulli são os casos mais recentes que ilustram a pressão da indústria — mas não são os únicos, já em 2017 o The Straits Times elencava nomes no universo K-pop que sofriam de depressão, um tema que ainda hoje é tabu. As duas estrelas da K-pop, e amigas íntimas, morreram num espaço do mês. Já antes Goo Hara falara publicamente sobre o impacto pessoal que os comentários negativos nas redes sociais representavam para ela. Também Sulli sofreu com situações semelhantes, ela que — escreve a BBC — foi a mulher que se rebelou contra o mundo da K-pop.
Numa indústria que premeia o silêncio fora do palco, Sulli era conhecida pelas opiniões “extravagantes”, ao abordar publicamente temas como a saúde mental, o bullying cibernético e os direitos das mulheres (era pró-aborto e criticada por não usar sutiã em público). “As estrelas femininas de K-pop devem ser fofas e amorosas ao mesmo tempo que obedientes à receção do público. Sulli não se encaixava nesse molde. Ela era uma pessoa que intencionalmente levantou a voz e que queria ser ouvida”, chegou a dizer à BBC Yoonha Kim, crítica de K-pop na Coreia do Sul.
Quando o corpo de Kim Jong-hyun foi encontrado sem vida, em dezembro de 2017, a nota por ele deixada circulou pelos jornais. Aos 27 anos, a estrela da K-pop desistia de viver porque a depressão tinha-o “devorado”. “Eu estava quebrado por dentro. A depressão levou-me lentamente para longe, finalmente devorando-me… Pensamentos perturbadores inundaram a minha mente. Nunca tive a oportunidade de aprender a transformar a dor em alegria pura. Não era o meu caminho tornar-me mundialmente famoso… É um milagre que eu tenha aguentado todo este tempo”, lia-se na nota de suicídio deixada pelo artista, a qual abriu a sociedade sul-coreana ao debate sobre a saúde mental num país que tem uma das taxas de suicídio mais altas do mundo.
A taxa de suicídio da Coreia do Sul é a mais alta entre todos os países da OCDE (24,6 suicídios por cada 100 mil pessoas). O suicídio é a quarta causa de morte entre a população em geral, esclarece o El País num artigo também sobre as recentes fatalidades na indústria K-Pop, e a primeira entre os jovens de 10 a 30 anos. Nem de propósito, em junho de 2013 era notícia que uma ponte na Coreia do Sul, onde já várias pessoas tinham perdido a vida, foi dotada de mensagens inspiradoras, de esperança, que se acendiam à medida que as pessoas caminhavam. E há sensivelmente duas semanas, o site Quartz escrevia precisamente sobre como a cultura “obcecada pelo sucesso” estava finalmente a reconhecer o seu lado sombrio, ao abraçar a ideia do falhanço com menos severidade, isto numa sociedade que vive constantemente sob pressão: económica, académica, familiar e cosmética.