A câmara de Matosinhos apresentou esta segunda-feira uma queixa no Ministério Público contra desconhecidos pelo vandalismo à escultura “A Linha do Mar”, de Pedro Cabrita Reis. “É um crime público, e pedimos às forças de segurança, e também à polícia municipal, uma maior atenção a este tipo de ações”, assegurou ao Observador Fernando Rocha, vereador com o pelouro da cultura.
“Vergonha”, “300 mil €”, “os nossos impostos” e “isto é Leça” foram algumas palavras pintadas a tinta preta nas vigas de ferro que compõem a obra, assim como o símbolo de um tridente, “partilhado por diversas organizações de diferente teor mas todas unidas por um pensamento de extrema direita ao longo da Europa”, relata Pedro Cabrita Reis ao Observador. O artista considera, portanto, que “aquele tridente é uma assinatura política”.
Cabrita Reis recebeu um vídeo da câmara de Matosinhos no domingo de manhã a dar conta do ato de vandalismo com mensagens que considera serem dirigidas “ao sistema político em que nós vivemos, com um discurso populista de ódio que explora por vezes algumas sensações de frustração das pessoas”.
O restauro da escultura vandalizada no passado domingo estará pronto em poucos dias. Os trabalhos foram iniciados esta manhã por uma equipa municipal e trata-se de um trabalho simples e pouco dispendioso. “A tinta usada foi um spray que está a ser facilmente removido com diluente, é um trabalho minucioso são muitas letras, mas não é um restauro muito caro, demorado ou intrusivo”, explicou o vereador da câmara de Matosinhos.
“Estará rapidamente pronta a cumprir a sua função”, reforça o autor da escultura inaugurada a 15 de dezembro junto ao Farol da Boa Nova, em Leça da Palmeira, Pedro Cabrita Reis, que a explica como “um lugar de encontro de pessoas”, seja alguém que “vá passear um carrinho de bebé” ou quem queira “passar e sentar-se para ler o jornal”.
Protestos à moda de Leça na milionária escultura A Linha do Mar, de Pedro Cabrita Reis, recém-inaugurada à beira do Farol da Boa Nova. pic.twitter.com/KS7QUdVmm7
— António Larguesa (@larguesa) December 29, 2019
Surgem críticas pelo valor da obra, 307 mil euros
Uma das maiores críticas apontadas é o valor acrescido da obra, algo que Fernando Rocha, vereador com o pelouro da cultura na câmara municipal de Matosinhos, justifica com a “excelente situação financeira” da autarquia e que o artista não quis comentar.
“A Linha do Mar” custou ao município de Matosinhos 307,5 mil euros – 250 mil euros da obra +57,500 de IVA – , através de um ajuste direto feito com a empresa Armazém 10, Lda, constituída em 2016 e, nessa altura, detida em larga maioria por Pedro Cabrita Reis, mas em sociedade com outros cinco sócios minoritários. Com um capital de 335 mil euros, o artista detinha uma quota de 247 mil euros. A esposa e o filho detinham, respetivamente, cerca de 60 mil e 14 mil euros, e os restantes sócios apenas detém, em partes iguais, uma quota de 3.338 euros.
“Tenho essa empresa, através da qual vendo as minhas obras de arte, sejam elas simples desenhos em folhas de papel ou esculturas públicas, porque é a forma mais correta para, dentro do sistema fiscal, tornar eficaz a minha relação com o mercado”, explicou Cabrita Reis ao Observador.
Algumas críticas nas redes sociais anunciavam eventuais favorecimentos para a Câmara de Matosinhos, pelo valor avultado da compra, mas, segundo apurou o Observador junto de documentos públicos, apenas dois sócios da Armazém 10 – António Lobo Xavier e Francisco Mendes da Silva – têm ligações políticas diretas e ao CDS-PP.
O vereador Fernando Rocha conta ao Observador que a encomenda daquela que é a primeira obra de Pedro Cabrita Reis em Matosinhos estava planeada no orçamento da autarquia para 2019. O município tinha previsto gastar 400 mil euros, mas bastaram 307,50 mil euros para a conceção, produção e instalação da obra do pintor e artista plástico português, cujo nome é capaz de atrair visitantes. “Ao colocarmos estas obras fazemos isto como forma de atração. Grandes nomes também atraem visitantes, turistas, valorizam o espaço público e o objetivo é esse.”
“Temos vindo a encomendar obras aos artistas contemporâneos mais famosos, com maior nome em Portugal e internacionalmente. Entendemos que era importante ter uma obra de um artista com a dimensão do Pedro Cabrita Reis”, justificou Fernando Rocha.
Acrescentou ainda que a peça do artista “vem enriquecer o património artístico de Matosinhos, ao nível da arte pública contemporânea, onde se destacam Janet Echelman, Zulmiro de Carvalho, Rui Anahory, José Pedro Croft e Julião Sarmento”.
“A Linha do Mar” foi encomendada em fevereiro deste ano. “Ele tinha um certo fascínio pelo mar de Leça, pela espuma branca resultante das ondas baterem constantemente nos rochedos da praia, e assim nasceu a ideia”, explica Fernando Rocha, vereador socialista, garantindo que esta não é a escultura mais cara da autarquia.
“O dinheiro que está a ser investido na cultura, onde se inclui esta escultura, não retira um cêntimo a outras atividades prioritárias da câmara, que isto fique bem claro. Para se fazer a escultura não se deixou de fazer o que quer que seja. Isto é possível dada a excelente situação financeira que a câmara de Matosinhos sempre teve”, explica.
O vereador assume que a cultura irá continuar a ser uma prioridade para o município, cujo orçamento de 2020 aprovado destina cerca de quatro milhões de euro para esta pasta. “Quando estamos a fazer isto não deixamos de ter dinheiro para reparar as escolas ou para promover programas de ação social. Temos um orçamento devidamente equilibrado e com uma estratégia completamente definida onde a cultura é um eixo também fundamental (…) não podemos ter uma grande programação cultural se não houver escolas, centros de saúde e habitação social. Isso não está em causa minimamente.”
Para o vereador da cultura em Matosinhos, não está em causa o facto de as pessoas não gostarem da peça, mas “um ato de destruição gratuita, que não podemos aceitar e tolerar”. “A arte contemporânea não é uma arte imediata, toda a gente sabe que o minimalismo e o abstracionismo não são facilmente interpretáveis ou podem ter várias interpretações. Temos consciência disso, mas também temos consciência que o tempo nestas coisas ajuda a consolidar as ideias (…) Temos o maior respeito por todas as pessoas que não concordam com a opção, não gostam da peça ou não gostam do artista, não podemos compactuar com atos de vandalismo e crimes públicos.”
Luísa Salgueiro, presidente da câmara de Matosinhos, comentou este domingo o incidente na sua página de Facebook, descrevendo-o como “mais um ato de vandalismo”, realçando o facto de “infelizmente” não ser uma novidade. A autarca socialista sublinha, contudo, que “a política cultural é determinante para combater a intolerância”, sendo por isso “decisivo continuar a investir nesta área, como a Câmara Municipal de Matosinhos tem feito nas últimas três décadas”.
“Evidentemente que o investimento na cultura está longe de ser consensual e é perfeitamente respeitável que as pessoas tenham a opinião de que esta não seja uma responsabilidade do Estado, privando o seu acesso à classe média e baixa”, afirma a presidente do município, relembrando que “existem diversas formas legais, democráticas e menos lesivas do nosso património comum para evidenciar essa opinião”.“A diversidade de opiniões, a discussão de ideias antagónicas e a tolerância terão sempre lugar em Matosinhos”, assegura.
Composta por cinco conjuntos de vigas de ferro, a peça está situada na Avenida da Liberdade, na marginal desenhada pelo arquiteto Siza Vieira, e é descrita no site da câmara como “apresentando uma nova perspetiva sobre a linha de horizonte do mar e sugerindo diversas interpretações através da forma e geometria e da sua sobreposição com o oceano”.
Em 2018, outra escultura do artista tinha sido intervencionada em Santo Tirso
Cabrita Reis é apresentado como “um dos principais embaixadores do movimento neominimalista em Portugal, com trabalhos expostos em todo o mundo e presente em museus e coleções nas mais variadas latitudes”.
O artista doou uma obra ao município de Santo Tirso em 2001 que “esteve 18 anos sem estar terminada”. Terminou-a Cabrita Reis no ano passado, “da maneira como entendi”, descreve. O artista trabalhou a martelo a superfície de uma construção em tijolo, mas “alguém terá seguido e continuado o trabalho de uma forma que não estava prevista”. No entanto, tal como manifestou na ocasião, não considera esse um ato de vandalismo. “A minha interpretação não é essa”.
As duas intervenções não autorizadas têm índoles diferenciadas, na opinião de Cabrita Reis.
“No caso de Santo Tirso, o que houve foi um desenvolvimento do trabalho que eu e os meus assistentes tínhamos realizado durante o dia. Durante a noite, alguém foi lá e fez o turno da noite”. Para Cabrita Reis, essa intervenção não trouxe consigo uma “carga negativa”, ao contrário do que aconteceu com “A Linha do Mar”, em que “se aproveitou uma obra de arte para prosseguir objetivos políticos inconfessados (ou não), ainda para mais numa obra que tinha sido inaugurada recentemente e portanto estava ainda debaixo de escrutínio público”.