A história mais bonita que alguma vez li sobre a influência duradoura que o mistério de Bill Fay provoca nos seus ouvintes era contada numa edição recente do New York Times, escrita a propósito de Countless Branches, o terceiro disco do bardo desde o seu regresso à edição, com Life Is People, em 2012.
O protagonista da peça não é Bill Fay, embora este ofereça um par de raríssimas declarações, mas sim Joshua Henry, um músico que cresceu a ouvir Time of the Last Persecution – o segundo álbum de Fay, datado de 1971, e o último que o músico inglês lançou durante 41 anos.
A presença de Time of the Last Persecution em sua casa sempre intrigou Henry, enquanto crescia: o pai não era um melómano, nem sequer costumava comprar discos. Henry nascera em LA e Time of the Last Persecution não fora editado nos EUA; mas o pai, que servira no Vietname, tornara-se um ativista anti-guerra e o ativismo anti-guerra está presente em fundo nas letras de Time of the Last Persecution.
[“Time of the Last Persecution”:]
Ao longo da vida, o disco tornou-se um elo de ligação entre pai e filho, que tinham por hábito ouvir o álbum e “dissecar a mistura peculiar de visão apocalíptica e resiliência esperançosa” de Fay. Ambos partilhavam a fantasia de encontrar Fay e fazê-lo regressar ao mundo dos que editam discos; quando Henry sr. morreu de cancro, Henry jr. decidiu que iria tornar essa fantasia em realidade.
Time of the Last Persecution era um disco incomum mesmo na época, uma delicada combinação de folk de profeta, rock psicadélico e música de câmara, que equacionava a presença do homem na Terra debaixo da sombra da guerra, mantendo uma inóspita crença na bondade humana.
Era um disco lindíssimo, tremendo, comovente – e ninguém lhe ligou nenhuma. Fay desapareceu do mundo da edição e, durante um quarto de século, das conversas dos melómanos. Até que no início do século ele voltou a ser falado, quando uma geração de indie rockers o redescobriu em vinis perdidos nas prateleiras de lojas em segunda mão e foi partilhando a descoberta, como quem oferece um bálsamos secreto e milagroso a um amigo cheio de dores.
O músico e produtor Jim O’Rourke mostrou Time of the Last Persecution a Jeff Tweedy, enquanto os Wilco gravavam Yankee Hotel Foxtrot; em 2007, Fay subiu ao palco com os Wilco, numa das suas muito raras aparições em público. David Tibet, que já havia recuperado a maravilhosa Shirley Collins, partiu à descoberta de Fay e conseguiu editar Tommorrow Tommorrow Tommorrow, um disco que Fay havia gravado nos anos 70 mas que não conseguir editar.
O mesmo Tibet foi o responsável pelo lançamento de Still Some Light, em 2010, que reunia os dois discos que Fay havia lançado oficialmente cerca de quatro décadas antes – e foi esta edição que deu a conhecer Fay a todos nós que nunca ouvíramos falar dele, que nunca nos havíamos deparado com uma das escassas cópias em vinil de Time of the Last Persecution nas nossas idas a lojas de discos em segunda mão.
Foi nas notas de Still Some Light que Henry encontrou pistas para partir à descoberta de Bill Fay. Não só conseguiu encontrá-lo como Fay se emocionou com a história que Henry lhe contou, de como crescera a ouvi-lo com o seu pai e finalmente acedeu a voltar a editar – até porque todos estes anos nunca parara de compor.
Apontamentos para a luta de classes: um homem de uma espiritualidade (não religiosa) profunda como Fay passou quatro décadas a embalar peixe e a tratar de jardins em Londres. Chegava a casa e compunha canções num teclado, imaginando arranjos grandiosos para canções que não pretendia editar. Fay, que hoje tem 76 anos, casou, teve filhos e após a morte do pai, tratou da mãe durante anos. Não fazia ideia que lá fora havia uma nova geração que encontrara em Time of the Last Persecution uma esperança, a voz do irmão mais velho que nunca se teve.
[o álbum “Life is People”:]
Os arranjos, em Life Is People, o tal disco de regresso que dista 41 anos do anterior, ficaram a cargo de Henry, que optou por um certo tom de música de câmara, elegante e discreta, pontuar a voz de Fay. Mas às vezes nem arranjos havia: num momento de perfeito alinhamento cósmico e geracional, Fay fazia uma versão de Jesus, etc (dos Wilco, a banda de Jeff Tweedy), só piano e aquela voz.
Para nós, que só havíamos chegado a Fay com as reedições, Life Is People não era apenas um disco lindíssimo mas uma espécie de justiça kármica: um homem com tanto talento e que, por alguma razão, passara ao lado de uma carreira, regressava agora, com alguns dos maiores ao seu lado, respeitado e reconhecido – como se a simples edição do (lindíssimo) Life Is People fosse, em si, um pequeno momento de justiça e beleza neste mundo que, por norma, é mais propenso à devastação que à generosidade.
[“Love Will Remain”, do novo “Countless Branches”:]
As delicadas canções de Countless Branches, quase sempre baseadas em piano, voz e discretos arranjos de cordas, são como uma versão minimal do cinema de Terrence Mallick em “Badlands”: introspetivo e cósmico (calma que eu disse “Badlands” e não “New World” ou um dos filmes recentes, para os quais se aplicam mais os adjetivos “pomposo” e “aborrecido”). Peças como “Love will remain” são delicadas e frágeis e recordam a música de David Ackles, embora sem o mesmo negrume; ocasionalmente vem à memória Dennis Wilson a solo, mas cheio de esperança, como em “Filled with wonder once again”.
A seguir a “Filled with wonder once again” vem “Time’s going nowhere”, um pequeno prodígio de fragilidade, em que um violoncelo e um violino reverberam em fundo, enquanto a voz quebrada de Fay, a lembrar o Robert Wyatt dos últimos tempos, equaciona a passagem do tempo. Cinquenta anos depois, Bill Fay ainda é mágico – quase ninguém o ouviu, mas os poucos que ouviram nunca mais o esqueceram.