A Força Aérea portuguesa encomendou, por ajuste direto, uma edição limitada de 200 relógios de pulso comemorativos do 60.º aniversário da base de Monte Real, no concelho de Leiria, à cadeia de ourivesarias Torres Joalheiros. No total, os 200 relógios, da marca Nautica, custaram à Força Aérea cerca de 54 mil euros, 270 por cada um. Estão à venda no site deste ramo das Forças Armadas desde 5 de setembro de 2019 por 280 euros.
De acordo com o Código dos Contratos Públicos, sendo superior a 20 mil euros e inferior a 75 mil, “pelo menos três entidades” deveriam ter sido convidadas a propor preços diferentes para a encomenda. Não foram, explicou o departamento de relações públicas da Força Aérea ao Público, que esta quinta-feira dá a notícia, porque os relógios em causa, mais do que acessórios, serão “criações artísticas”, o que, de acordo com a alínea e) i) do artigo 24 do referido código, permite a compra por ajuste direto.
“Devido às características de personalização que foram integradas no relógio e estojo, criados de propósito e em exclusivo para a comemoração dos 60 anos da Base Aérea 5, estes bens possuem características artísticas únicas, o que está de acordo com (…) o Código dos Contratos Públicos, que prevê que seja escolhido o procedimento por ajuste direto quando esteja em causa a aquisição de uma criação artística, como se verifica na presente peça”, justificou a Força Aérea quando questionada pelo jornal.
Aquilo que o referido código determina é que o ajuste direto pode aplicar-se quando “as prestações que constituem o objeto do contrato só possam ser confiadas a determinada entidade” por uma de três razões. A saber: quando “o objeto do procedimento seja a criação ou aquisição de uma obra de arte ou de um espetáculo artístico”; caso “não exista concorrência por motivos técnicos”; ou se for “necessário proteger direitos exclusivos, incluindo direitos de propriedade intelectual”. De acordo com a Força Aérea aplica-se a primeira exceção mas, por muito que até possam ser considerados “obras de arte”, mais difícil será garantir que nenhuma outra ourivesaria ou relojoaria pudesse encarregar-se da encomenda. Aliás, basta uma breve pesquisa na Internet para encontrar uma série de outros relógios comemorativos de várias efemérides celebradas pelos vários ramos das Forças Armadas, incluindo a Força Aérea, produzidos e vendidos por empresas diferentes.
De acordo com o Público, não será exclusiva da Força Aérea esta interpretação livre do Código dos Contratos Públicos: em setembro de 2019 o Tribunal de Contas terá recusado validar o contrato por ajuste direto que a Câmara Municipal da Póvoa de Varzim assinou com o arquiteto Siza Vieira para o desenvolvimento de um projeto de arquitetura para um fórum cultural, por 550 mil euros mais IVA. “A intenção de adjudicação não encontra fundamento legal, pois não são válidos os argumentos utilizados pelo município para justificar que a elaboração do projeto de conceção do fórum cultural apenas pode ser confiada ao referido arquiteto”, escreveram os juízes, a fundamentar a decisão. “Sem pôr em causa o elevado prestígio nacional e internacional do arquiteto Siza Vieira, existem no mercado da arquitetura outros arquitetos, de grande prestígio e notoriedade, a quem poderia igualmente ser confiada a prestação contratual em causa, escolhidos no âmbito de um procedimento de natureza concorrencial.”
Ao mesmo jornal, a Força Aérea garantiu não estar preocupada com as vendas dos relógios/ “criações artísticas”: “O número de relógios a adquirir foi calculado com base na experiência adquirida em lançamentos anteriores, de edições exclusivas de relógios comemorativos das unidades e esquadras. As suas características únicas e identificativas despertam sempre um grande interesse, havendo o registo de que todos os relógios criados para o efeito foram sempre todos vendidos. (…) A reputação da Base de Monte Real entre os militares da Força Aérea e entusiastas da aviação dá a garantia de que os relógios agora adquiridos serão vendidos na totalidade”.
De acordo com a Torres Joalheiros, cada relógio, mais estojo, terá um valor de mercado bastante superior ao preço contratualizado e pago pela Força Aérea: 590 euros.