“Acho que as pessoas ainda estão à espera de ser chocadas”. É assim que Ana Correia (ou a youtuber Peperan) olha para a nova temporada da série “Casa do Cais”, que tem estreia marcada para esta segunda feira, dia 20, no RTP Play, às 20h00. A primeira temporada ultrapassou o milhão de visualizações, mas bastou um novo trailer para as hostes mais conservadoras das redes sociais apontarem o dedo e o ódio a esta história de cinco amigos: Ema (Ana), Jay (o youtuber Kiko is Hot ou Francisco Soares), Alex (André Mariño), Lara (Soraia Carrega ou Djubsu) e Beatriz (Helena Amaral). É que quatro destas personagens são homossexuais, sendo, a quarta, negra e heterossexual.
A juntar a isto, a série toca ainda em temas como as doenças sexualmente transmissíveis ou o consumo de drogas. O problema? Os autores não querem carregar estas bandeiras, apesar de ser, no fundo, inevitável.
“As mensagens de ódio são um combustível para levar a mensagem mais à frente. Queremos quebrar preconceitos, mas não somos só uma série LGBTI. Aqui há problemas transversais a todos. Estamos na mesma luta”, afirma Helena, também produtora, ao Observador.
[ALERTA: segue-se um possível spoiler, se não viu a primeira temporada e não quer saber mais, não leia]
No fim da primeira temporada, este grupo ficou a saber que tinha de sair da casa onde estava — não por não conseguir pagar a renda, mas porque a senhoria se fartou das queixas de ruído que recebia. Um problema com que muitos se podem identificar, principalmente os mais jovens. Ou porque deram demasiadas festas, ou porque foram despedidos e, por vergonha, orgulho ou impossibilidade, não querem pedir dinheiro aos pais para pagar a renda. A única diferença na Casa do Cais é que, sendo este o gancho principal da série, são as suas camadas mais secundárias que acabam por influenciar as opiniões de quem a vê. Principalmente, as mais conservadoras.
[o trailer da segunda temporada da “Casa do Cais”:]
“Estou na internet há nove anos, já ouvi um pouco de tudo. Mesmo assim acho que há uma evolução, até porque as pessoas que estão contra a série, têm questões políticas por trás, não é tanto sobre a qualidade. Só que isto é uma série de comédia, com personagens que pertencem a minorias, mas é só isso”, comenta Kiko. Este murro na mesa acabou por ser repetido por todos os cinco elementos durante a conversa com o Observador, apesar de haver uma noção clara de que é impossível fugir aos temas ditos fraturantes, ainda que não exista o objetivo de mudar a cabeça de ninguém. “Nós não nos sentamos e pensamos: ‘como é que vamos mudar a mentalidade?’, explica o youtuber.
Só que o apontar o dedo não vem só de quem é mais conservador. Já veio também da própria comunidade LGBTI. Ou porque pedem aos cinco que carreguem essa bandeira, ou porque tocam nos assuntos de uma forma leviana.
“Quando tens uma temática LGBTI, é esperado que tenha uma vertente séria, educativa, e essas pessoas acham que tem de ser assim. Só que o que não entendem é que essa bandeira é uma prisão que lhes puseram”, conta.
Ana Correia, que também é a realizadora do projeto, vai ainda mais longe, com uma pergunta bem mais simples. “Como é que podem esperar que cinco pessoas representem toda a comunidade?”. Já Soraia Carrega, que “fica admirada quando só há comentários bons”, segue a linha do grupo, negando a vontade de haver aqui uma missão na defesa dos direitos dos negros e da comunidade LGBTI. “Há muita gente que adora e idolatra séries estrangeiras com estes temas, em que a personagem negra ou homossexual é um estereótipo que não sai daquilo. E nós, de repente, não podemos representar uma coisa diferente?”, conclui.
Duas perguntas que terão de ser respondidas entre todos, num debate que os autores gostam de ter até quando encontram fãs na rua, principalmente fora das redes sociais. Falta saber o que pensa André Mariño — personagem que chega a ter medo de ter contraído VIH, por ter vários parceiros sexuais. “A comédia não é algo para ser levado super a sério e nós não temos de levar um crachá de bom exemplo. Até porque estamos em 2020, a história já não pode ser o Martim, berço de ouro, que não pode sair do armário porque a mãe é católica…”.
O facto de saltarem para a RTP1 não os deixou mais nervosos, nem mudou o método de trabalho — que tem um guião seguido à risca, “uma bíblia”, com espaço para um ou outro improviso nos takes –, mais uma grande vontade de fazer um produto bem feito, com os erros corrigidos e ambição de corresponder às expectativas. Até porque nesta segunda temporada houve um maior apoio do canal e a participação de atores/celebridades, como Conan Osiris, Rúben Rua, Rui Maria Pêgo ou Filipe Vargas, que, segundo os autores, podiam ter medo de ser mal vistos, mas acabaram por abraçar o projeto.
“Fizemos o levantamento do que estava mal, na primeira temporada apresentámos as personagens, fomos menos longe, agora há mais liberdade de fazer mesmo o que queríamos”, diz Helena.
E há também a intenção de fazer com que o público se ligue mais às personagens. “Para quem não viu a primeira, pode ser um choque, mas desta vez criámos um arco emocional, queremos que as pessoas se relacionem mais com as personagens”, diz André Mariño.
A estreia está marcada para as 20h00 desta segunda feira no RTP Play, só falta saber quando salta para o canal da estação de televisão. Dez episódios, com teasers preparados no Youtube, e, a julgar pelo trailer, as mensagens de ódio estão só no seu início. Ainda que este grupo confie numa maior abertura das televisões para este tipo de conteúdo, sabem perfeitamente que nunca poderá ser para já. Nem para quem faz entretenimento, nem para quem consome. A sorte é que “esta já não vai ser a primeira ‘chapada’ que vão levar”, finaliza Ana Correia. É ver e odiar por mais.