A história do rock’n’roll conhece muitos fins trágicos: morte por sobredose, por enforcamento, por lesões após choque automóvel, até por sufoco no próprio vómito. No caso de Richey Edwards, o que é trágico não é o final – é aparentemente não haver final. Literalmente: a 1 de fevereiro de 1995, Richey desapareceu sem deixar rasto – até hoje, 25 anos depois. Há muitas tragédias no rock’n’roll, mas este é talvez o seu maior mistério.

Nos velhos tempos, quando não existia internet e a distância física era uma distância real, verificar um facto era ainda mais complexo que hoje. O que levava à propagação de mitos. Por exemplo: não era raro, nas conversas de adolescentes, haver quem afiançasse que Syd Barrett tinha morrido, apenas para ser contrariado por alguém que dizia ter lido que outrém vira Barrett a passear pacatamente de bicicleta em Londres.

O tempo e o acesso a informação tudo desmistificam: Barrett só morreu a 7 de julho de 2006 e, sim, costumava passear de bicicleta por Londres, um bocadinho fora de si (eventualmente doença mental, eventualmente resquícios do excesso de LSD que tomou na juventude). Edwards, durante algum tempo, também “apareceu”: ainda o ano passado ele estaria a viver num kibutz em Israel, porque… bom, porque não?

Antes de mais, porque Richey era uma estrela: guitarrista e co-letrista dos galeses Manic Street Preachers, teria algum dinheiro no bolso, tendo em conta que Generation Terrorists, o disco de estreia da banda (de 1992), se não vendeu os 16 milhões de discos que a banda dizia ser o seu objetivo mínimo, pelo menos causou impacto: mais que um disco de revivalismo punk, era um disco de glam-rock fora de tempo, energético ainda que disperso (uma das críticas mais comuns ao álbum era a sua longa duração e excesso de faixas, com algumas abaixo da qualidade recomendável). Uma canção, “Motorcycle Emptyness”, alcançou estatuto de êxito e propagou o nome dos Manics para o mainstream. Os dois discos seguintes, Gold Against the Soul (1993) e The Holy Bible (1994), cimentaram esse estatuto.

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[“Motorcycle Emptiness”:]

E a 1 de fevereiro de 1995 Edwards desapareceu – no dia em que ele e Dean Bradfield, guitarra e voz da banda, embarcariam para uma digressão de promoção de The Holy Bible  nos Estados Unidos da América.

Estes são os factos: nas duas semanas anteriores ao desaparecimento, Edwards retirou duzentas libras por dia da sua conta bancária, num total de 2800. Às 7 da manhã do dia em que desapareceu, Edwards saiu do Embassy Hotel, em Londres, onde estava hospedado, deixando para trás a sua bagagem e itens avulsos (como Prozac). Nas semanas seguintes foi avistado algumas vezes, não havendo certeza acerca da fiabilidade dos testemunhos (um dos quais um taxista que o teria guiado durante horas, ao ponto da conta da viagem ser 68 libras).

A 17 de fevereiro a polícia encontrou o carro de Richey e determinou que ele provavelmente teria estado a viver no carro há semanas. Dada a proximidade da Severn Bridge, usada regularmente por suicidas, a conclusão da polícia foi de que Richey ter-se-ia suicidado – sendo que o corpo nunca apareceu e a família diz que ele não era suicida. Obviamente que desde então Edwards já foi “visto” várias vezes: em Goa mas também em Fuerteventura e mesmo em Lanzarote.

Porque é que um homem que acabava de encontrar o sucesso terminaria a sua própria vida? Recuemos a 15 de maio de 1991, data em que Richey concedeu uma entrevista ao New Music Express: Steve Lamacq, que hoje é DJ da Radio 1, foi ver os Manics atuar no Norwich Arts Centre (em Norwich, Inglaterra), e entrevistá-los. Lamacq não era propriamente um fã da banda e tinha algumas dúvidas acerca do discurso político dos Manics, que considerava razoavelmente copiado dos Clash. A conversa foi um bocadinho tensa, mas nada de mais – até que Richey o chama para um último argumento e, enquanto fala, se mutila no braço, escrevendo a frase “4 REAL” no braço, por forma a mostrar que, bom, os Manics falavam a sério.

James Dean Bradfield, Richey Edwards, Nicky Wire e Sean Moore: os Manic Street Preachers em 1991

O fotógrafo do jornal captou o momento; a peça sobre o concerto e a entrevista saiu com a fotografia de Edwards com o braço mutilado com o dizer “4 REAL”; alguns fãs dos Manic Street Preachers ameaçaram Lamacq de morte (mas não o mataram). Foi um escândalo, circunscrito ao mundo da música, um escândalo que ainda se fala nos dias de hoje, mas um escândalo com o qual, basicamente, ninguém lidou – imagine-se, hoje, uma estrela rock mutilar-se: as redes sociais reagiriam, a estrela inscrevia-se numa clínica, uma equipa de relações públicas seria chamada para tratar do assunto (e do Instagram da estrela), haveria debates sobre saúde mental.

Mas no rock’n’roll estas situações costumam passar nos pingos da chuva. Os membros dos Joy Division costumam dizer que quando Ian Curtis, o vocalista da banda, se suicidou eles tinham 20 ou 21 anos – nunca tinham reparado que ele fosse deprimido ou que estivesse a precisar de ajuda. Nem sequer tinham perdido muito tempo a ler as letras (que eram, convenhamos, um niquinho depressivas).

O rock’n’roll é o lugar para onde se dirigem os rejeitados; aqueles que vivem com a impressão de não se saberem incluir na sociedade, aqueles que vivem com a impressão de que a humanidade não os aprecia por aí além – e o rock é (muito) uma forma de fazer a purga à raiva que advém desse sentimento de reprovação.

É muito possível que tenha sido esse o caso de Edwards: numa peça publicada na Select, a maio de 1995, contava-se como James Dean Bradfield, o vocalista dos Manic Street Preachers, ficara estupefacto, um dia, em 1988, quando vira Richey pegar num compasso e desenhar uma série de segmentos de reta no braço, com o bico metálico, até ficar a sangrar. Convém realçar que a auto-mutilação era um problema bem mais presente do que parecia, por esses dias – em parte porque não se dava atenção a qualquer problema mental.

[“Faster”, de 1994:]

Muito antes de ser uma estrela rock com problemas de mutilação, Richey Edwards era um rapaz extremamente inteligente, mas com problemas de integração e auto-estima – são sempre, no rock’n’roll. Depois de uma infância feliz foi-se tornando mais e mais fechado – mantinha as boas notas, mas os seus interesses reduziam-se ao rock e a um grupo muito restrito de amigos com os quais falava.

Enquanto a outra miudagem ia a pubs, discotecas, perseguia garotas e falava de futebol, Edwards passava horas com os três amigos com quem mais tarde viria a fundar os Manic Street Preachers, a beber chá, discutir livros de William Burroughs e Hunter Thompson, e a ouvir música e a consumir jornais de música.

A cultura convencional sufocava-o e não encontrava lugar nela; ter boas notas não lhe trazia satisfação e mesmo quando tirava “A” na faculdade achava que era pior que os outros; era um rapaz culto e tinha dificuldade em conversar com quem não fosse tão literato como ele; nesse período começou a cortar-se e a beber.

O hábito de cortar-se era de tal modo que a dada altura já o fazia em frente aos seus três amigos de infância e de banda – que por vezes tinham de o alertar para o facto de que estar a auto-mutilar-se não era grande ideia.

Como noutras histórias em que a auto-depreciação deixa de ser apenas um perfume no ar até se tornar humidade estrutural e dar cabo das paredes, o grau do problema só é percebido mais tarde: o álcool era uma constante durante a gravação de Gold Against the Soul (1993); por um par de vezes a banda mandou-o para uma espécie de quinta, para parar de beber – mas, segundo amigos, em 1994, quando começou a viver sozinho, bebia uma a duas garrafas de vodka sozinho, por dia. A auto-mutilação, sabemos hoje, já era feita em público (ao ponto de uma fã lhe oferecer facas e pedir-lhe que se mutilasse enquanto olhava para ela, o que ele terá recusado).

Richey Edwards em palco com os Manic Street Preachers em 1993

A situação piora após a gravação de Holy Bible (de 1994): Edwards é diagnosticado com depressão e anorexia, é internado, medicado, muda de clínica, de medicação, entrega os seus cadernos a Nicky Wire, o baixista da banda e – dias depois – desaparece para só voltar no relato de ocasionais anónimos na imprensa.

Uns meses depois do desaparecimento, Wire disse à imprensa que a diferença entre Richey e ele é que “o Richey sempre quis ser compreendido. Eu não sinto necessidade que toda a gente me respeite ou ame, mas o Richey sentia. Doía-lhe que as pessoas não gostassem dele, isso não o divertia”.

O mais provável é que Edwards tenha cometido suicídio e o corpo não tenha dado à costa. As pessoas que acreditam que ele fabricou o seu desaparecimento são, provavelmente, as pessoas que não sabem como encaixar que um jovem inteligente e bem sucedido pudesse querer tirar a sua própria vida. Uma estrela. As estrelas não se apagam, não é suposto apagarem-se.

Mas talvez a história de Richey Edwards não seja a história de uma estrela – mas de um rapaz solitário, com dificuldade em integrar-se, que procurou no álcool e na auto-mutilação e na anorexia uma qualquer forma de controlo de uma dor que desde cedo sempre foi excessiva e que lhe provocava um sentimento de inutilidade que nunca soube superar. Talvez a história de Richey Edwards seja a história de muitos outros rapazes que, neste exato instante, sentem a mesma coisa e não têm com quem conversar sobre isso.

A única diferença é que Richey Edwards pegou numa guitarra e houve quem batesse palmas. Mas quando resolveu desaparecer não estava lá nenhum fã. Estava sozinho, como sempre parece ter estado.

Pelo menos durante dez anos, desde o desaparecimento do músico, os Manic Street Preachers depositaram 25 dos royalties da banda na conta de Richey Edwards. Em 2008, um tribunal britânico tornou oficial que Richey Edwards terá morrido “a” ou “desde” 1 de fevereiro de 1995. O álbum “Journal for Plague Lovers”, de 2009, é feito de canções com letras deixadas por Richey Edwards.