É preciso fôlego para a enumeração que aí vem. A reforma dos trabalhadores dos matadouros da Madeira aos 55 anos, a regularização de trabalhadores precários da RTP-Madeira, a remodelação dos tribunais da região dos Açores, a exigência de duas tripulações para o helicóptero de resgate nos Açores, a criação de um serviço público de carga aérea que ligue Lisboa/Terceira/Ponta Delgada/Lisboa, a requalificação da cadeia da Horta, a substituição do cabo submarino entre continente e ilhas, a autorização de um empréstimo de 158,7 milhões de euros para o novo Hospital da Madeira e a remodelação das esquadras da PSP na Madeira. Tudo isto foi aprovado nas chamadas “coligações negativas” com o voto contra do PS durante a tarde de segunda-feira, na primeira ronda de votações do Orçamento do Estado para 2020 na especialidade. Ao ver que o Governo ia ter de aplicar estas medidas de qualquer foram, mas ficar com o ónus de ter votado contra, o PS pediu a palavra ao fim de cinco horas e meia de votações e pediu para se juntar a onze coligações negativas.
O PS não foi o único a alterar o sentido de voto ao longo da tarde, mas foi o que o fez de forma mais ostensiva: foram 13 só de uma vez, 11 delas sem alterar o sentido de votação. Ao “anular” coligações negativas — que transformou em grandes coligações — o PS foi acusado de não estar apenas a corrigir um mero lapso, mas a alterar o voto por razões eleitoralistas.
Em outras bancadas falou-se de “chico-espertismo”, mas foi o Iniciativa Liberal a mostrar uma maior indignação. O líder e deputado da IL, João Cotrim de Figueiredo, fez uma interpelação à mesa, presidida por Filipe Neto Brandão, a reclamar da situação: “Gostava que o senhor presidente me explicasse até quando se pode rever votos? É que me parece que estão a rever votações só com vontade de fazer show off político.”
Na verdade, quando um partido vota mal uma proposta na especialidade pode retificá-la até ao fim dessa reunião. Caso contrário só o pode fazer no dia seguinte em plenário caso a mesma proposta seja avocada — onde pode voltar a ser votada. Houve por isso, vários partidos a fazer retificações, mas não tantas vez como o PS.
João Cotrim Figueiredo protestava indignado: “Um único deputado que está aqui, com poucos assessores, não revê um único voto, não se engana. Enquanto o PS está aqui a rever votos só para não ficar mal numa qualquer fotografia eleitoral“. As acusações de eleitoralismo ganham especial relevância já que em 2020 existem eleições regionais dos Açores e todas as propostas em que o PS recuou em coligações negativas são relativas às regiões autónomas (cinco delas diretamente relativas aos Açores).
O PS recuou ainda nesse mesmo momento em duas propostas nas quais acabou por alterar o sentido de voto: de reprovado para aprovado. Uma delas do PAN, relativa ao “reforço de recursos humanos afetos à educação inclusiva e programa de formação destes agentes educativos” e outra do PCP (que o BE tinha uma igual) de reforço de 1,5 milhões de euros para a agência noticiosa Lusa.
No meio das 13 alterações do PS, ao fim de 5 horas de debate, o deputado do Chega, André Ventura — que ao não estar presente no início da sessão permitiu que uma proposta do PSD para evitar as cativações no Ensino Superior fosse chumbada por via de dois empates — tentou alterar essa votação. O que não foi permitido: o regimento não permite alterar um voto que não foi feito.
PSD correu para alterar votação, mas deixou para hoje o que podia ter feito ontem
Como sempre, há momentos das votações do debate do Orçamento do Estado na especialidade em que tanto deputados, como jornalistas, como a própria mesa se perdem. Isso aconteceu com o PSD nas pensões. Sem o querer fazer, o PSD aprovou uma alínea de uma proposta do PCP que previa um aumento extraordinário até 10 euros das pensões também para quem recebia acima de 1,5 vezes o Indexante de Apoios Sociais (658,20 euros). Os assessores correram à bancada dos jornalistas a esclarecer que tinha sido um engano e que o PSD ia corrigir a votação até ao final da tarde. Foi o que aconteceu.
Outra das aprovações que causou estranheza — face àquilo que o PSD sempre defendeu — foi o facto de ter aprovado uma proposta, mais uma vez do PCP, em que a condição financeira dos filhos deixa de ser fundamental para definir se os pais podem ou não receber o CSI. Na mesma tarde foram também as propostas do Bloco de Esquerda e do PS, que retiram da equação o rendimento dos filhos até ao terceiro escalão de rendimento do IRS. Ou seja, entram nas contas os rendimentos de filhos que ganhem mais de 20.322 euros por ano. O que já é uma evolução face proposta de orçamento apresentada por Mário Centeno, que eliminava esse fator apenas até ao segundo escalão.
O Observador tentou apurar junto da bancada do PSD se não iam alterar o sentido de voto como tinha acontecido nas pensões, mas do outro lado chegou a indicação de que não tinha havido qualquer erro. No entanto, mudou de opinião durante a noite, o que não é assim tão pouco habitual na especialidade (embora nem sempre seja pacífico). A proposta foi esta terça-feira de manhã avocada a plenário, onde o PSD retificou a votação (absteve-se) que tinha feito no serão de segunda-feira.
Como foi em 2018?Nem sempre as mudanças de voto são pacíficas
Em novembro de 2017, o Bloco de Esquerda foi de fim-de-semana a pensar que tinha conseguido aprovar uma taxa sobre as renováveis, já que tinha votado a proposta com o apoio do PS. Mas em dois dias, tudo mudou. O próprio António Costa envolveu-se diretamente no processo e forçou a bancada socialista a votar em sentido contrário.
O que mudou em poucas horas? António Costa travou a nova taxa sobre as renováveis
O Bloco acusou o PS de “deslealdade” e disse que o governo “não honrou a palavra dada”. O debate foi marcado por uma grande crispação entre bloquistas e socialistas no dia da votação final global do Orçamento para 2018 que coincidiu com a última votação em plenário na especialidade.