Vão já ao vosso armário de medicamentos, vasculhem em todo o lado à procura da caixa de Dormidina, Valdispert, de todo o tipo de ansiolíticos, hipnóticos e sedativos, encham-se de benzodiazepinas como quem engole m&m’s. Porque ao longo das 2 horas e 15 minutos de “Diamante Bruno” (“Uncut Gems” no original) o vosso coração irá disparar, terão dificuldade em respirar e o vosso sistema nervoso central vai dar-vos a conhecer (ou a reencontrar, dependendo do caso) todos os sintomas de ansiedade descontrolada e dará por si a pensar: “Por favor, pára”.
Mas “Diamante Bruto” não pára, o seu ritmo frenético nunca abranda, o grau de desespero só aumenta e é-nos impossível não nos compadecermos com o destino de Howard, anti-herói trágico do século XXI, desempenhado por Adam Sandler, o mesmo Adam Sandler das comédias patetas de domingo à tarde.
“Diamante Bruto”, em exibição na Netflix, não é, apesar da descrição acima, um filme de ação, no sentido de não haver tiros em barda (embora armas sejam disparadas), nem planos de roubo (embora o centro do filme seja dinheiro em falta); um filme de ação vive para as cenas em que o herói tem de tomar resoluções, agir, entrar em confronto com os adversários, arriscar o seu físico por uma causa.
Mas “Diamante Bruto” não é um filme de ação, mesmo sendo um filme que não pára, em que há tiros e gente à procura de dinheiro – “Diamante Bruto” é uma tragédia do século XXI, que nunca pára porque segue Howard e o pathos de Howard é a fuga para a frente, é a sua crença de que irá resolver tudo, é a sua desmedida auto-ilusão. “Diamante Bruto” é um filme sobre como cada um transporta a sua própria desgraça.
[o trailer de “Diamante Brunto”:]
Howard Ratner é um joalheiro de Nova Iorque, que vive bem, a avaliar pelo fausto da sua casa (cuja decoração podia ser apelidada de mau gosto), e que tem uma clientela rica mas não propriamente sofisticada – Kevin Garnett, que hoje é um ex-jogador da NBA, mas no filme surge como ainda jogador dos Celtics, já em final de carreira, mostra-se interessado numa opala negra que Howard mandou vir da Etiópia, uma espécie de equivalente a diamante negro com supostas qualidades místicas.
Clientes como Garnett chegam a Howard através do seu “sócio” Demany, que fica com uma parte dos lucros das vendas aos ricos, como comissão por os trazer à joalharia; Demany também lhe fornece Rolexs falsos para Howard vender como verdadeiros, Rolexs que [INÍCIO DE MINI SPOILER] Howard dá como pagamento de dívidas [FIM DE MINI SPOILER]. Mas este tipo de negócios tem os seus perigos.
[INÍCIO DE GRANDE SPOILER] Garnett apaixona-se pela joia e resolve levá-la por uns dias para testar o seu poder, o que é um problema porque Howard tem uma data para entregar a opala para leilão. Demany leva Howard até aos Celtics, Howard não consegue entrar no balneário, Howard vai a um clube ter com Demany (a quem supostamente Garnett teria devolvido a Opala), e no clube há uma imensa confusão e pancadaria. [FIM DE GRANDE SPOILER]
Como se estes negócios não propriamente fidedignos não fossem suficientes, Howard está semi-separado da mulher (com quem ainda vive) e a filha mais velha não o respeita; Howard amantizou-se com a sua empregada de joalharia, que passa cocaína nas horas vagas e pode ou não ser-lhe infiel; e Howard tem um vício, o jogo, que é a força-motriz da narrativa, aquilo que a impele a um ritmo avassalador, porque Howard vai de aposta em aposta, de dívida em dívida, de esquema em esquema, de tareia em tareia, acreditando sempre que a próxima aposta vai resolver tudo.
[Adam Sandler e Kevin Garnett no programa de Jimmy Kimmel:]
Este é um universo não muito distante do de Cassavetes ou do Scorsese inicial, um universo de figuras da noite, negócios não muito legais, gente que tem amigos que resolvem os problemas ao murro e bastonada, gente oblíqua, que promete o que não pode cumprir e se vai safando à conta da sua prodigiosa lábia.
Os americanos têm um nome para isto: hustler – mas o que impressiona em “Diamante Bruto” é que Howard não precisaria de ser hustler para nada: muito provavelmente (a avaliar pela casa, pelo que os clientes pagam) o seu negócio permitir-lhe-ia uma vida bastante abonada. E na realidade talvez Howard não seja bem um hustler, acaba é por se ver envolvido com hustlers à conta do seu vício.
O que é que move Howard? A adrenalina da próxima aposta, de jogar todo o seu dinheiro (que por vezes não é propriamente seu), o tudo ou nada – a adrenalina de estar viciado em adrenalina.
Não é fácil tornar uma personagem destas credível – até porque qualquer pessoa que use dois neurónios resolvia o problema das dívidas de uma penada: vendia o apartamento extra (onde Howard mantém a sua amante), pagava as dívidas e com o que restasse comprava um apartamento extra numa zona mais barata (onde colocaria a sua amante ou, no caso desta ter ido embora, a próxima amante).
Mas os irmãos Benny e Josh Safdie, realizadores e argumentistas do filme, conhecem bem este universo – o pai deles foi vendedor no jewelery district, o bairro de Nova Iorque onde se encontram as lojas de joalharia, e “Diamante Bruto” é uma espécie de mistura de várias histórias que os irmãos cresceram a ouvir.
O filme, aliás, foi escrito ao longo de dez anos – foi há uma década que pela primeira vez os irmãos procuraram financiamento para o filme. Na altura eram pouco conhecidos e não conseguiram uma vedeta como cabeça-de-cartaz, condição sine qua non dos financiadores para investirem. A sorte dos Safdie mudou quando Adam Sandler viu “Good Time” (de 2017) e entrou em contacto com eles: os Safdie mostraram o argumento de “Diamante Bruto”, Sandler gostou e o dinheiro apareceu.
[o trailer de “Good Time”:]
E este é o momento de falarmos de Adam Sandler, este é o momento “agora todos gostam” de Adam Sandler. Em cada uma das suas comédias, fosse a desempenhar o papel de ingénuo, de trapalhão, de obnóxio, Sandler sempre denotou uma imensa capacidade para criar personagens com falhas, que erram, que não conseguem comportar-se de acordo com as normas básicas de civismo.
Mas em “Diamante Bruto” ele atinge outro patamar, um patamar que lhe devia ter valido um Óscar, se a academia ainda se preocupasse com talento (e não é o Óscar para “Parasitas” que altera isso, porque “Parasitas” é um filme bem mais americano e bem mais à maneira de Hollywood do que parece à primeira vista). Talvez a caracterização ajude — Sandler surge com uma dentição diferente, brincos bling bling nas orelhas, pera e uns admiráveis óculos cuja armação, só por si, valia duas horas e quinze minutos de visionamento.
E é – com todo o respeito por cada ator secundário, pela trama mínima que se desenrola em 48 horas – Sandler que carrega o filme; porque Sandler tem, sempre teve, a vertigem que esta personagem precisa. Em cada um dos seus filmes, Sandler vai sempre longe de mais, não consegue exatamente conter-se, é consumido pela sua própria vontade de fazer, pela sua inquietude natural. Aqui simplesmente a canaliza para um homem de meia idade que não consegue parar de arriscar – arrisca a família, a joalharia, a relação com a mulher, a relação com a amante.
“Diamante Bruto” é uma obra-prima, mas não é um filme agradável; a cada momento damos por nós a pensar “Pára, pensa e pára, podes sair disto”. Mas é um admirável filme sobre os homens que não sabem lidar com o aborrecimento de uma vida convencional e comportam em si a semente da sua própria desgraça.