Os olhos estavam semicerrados e escondidos atrás das tranças, a sonolência pedia um café. O dia de Marlene Tavares, que os ouvintes de música atentos ao talento emergente conhecem pelo nome artístico Nenny, tinha começado cedo, com a presença nas manhãs de uma rádio nacional. Depois de uma pequena pausa para a curta sesta possível, os olhos reabriam-se a custo e aquela que é uma das grandes revelações recentes da música portuguesa recebia o Observador para uma conversa.

@ FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Se lá fora 2019 foi o ano em que o mundo — a juventude sobretudo, mas não só — descobriu e se encantou com Billie Eilish, adolescente-prodígio norte-americana, 2019 foi também o ano em que Portugal descobriu e se encantou com Nenny.

Os registos musicais e os argumentos de uma e outra são distintos, até porque Billie Eilish, além de dimensão internacional, tem um álbum completo editado e Nenny somente uma mão cheia de canções, todas reveladas exclusivamente na internet. Há, porém, pontos que as unem: a extrema juventude (Billie tem 18 anos, Marlene 17), a capacidade de conquistar o coração da miudagem num ano, o talento no canto, a postura simultaneamente tímida e cool e a mensagem constantemente proferida que cada um sabe de si e não é a seguir modelos de aparência e estética que se vai a lado algum. Billie Eilish apareceu na capa da revista Rolling Stone com o título “Billie Eilish: o triunfo do estranho”. Nenny diz-nos que a estranheza é nossa e que se está a marimbar para ela: “Fuck a tua bússola”, canta num dos maiores sucessos da música pop portuguesa em 2019.

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FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Nunca me compararam à Billie Eilish. Já me chamaram de Lauryn Hill portuguesa. Ou IAMDDB portuguesa”, responde Marlene ao Observador, sorridente, no estúdio em Lisboa em que grava habitualmente, localizado junto à RTP, em Chelas. Mas Nenny é a Nenny portuguesa, não é sucedâneo. Recentemente anunciada para a próxima edição do festival português Sumol Summer Fest — vai atuar no palco principal, dia 4 de julho —, deixou muito brevemente o Luxemburgo, onde vive com a mãe, para passar por Portugal neste mês de fevereiro, para uma série de entrevistas em que anunciou que vai lançar um EP, ou mini-álbum, já no próximo domingo, 1 de março. Foi durante esse périplo que falou com o Observador.

Os números impressionam, tal a rapidez com que o estatuto de revelação nacional foi alcançado. A primeira canção original, “Sushi”, foi revelada publicamente a 3 de março de 2019 — e em 12 meses soma outros tantos milhões de “cliques” só no Youtube. “Bússola”, o segundo maior êxito, aterrou na internet dois meses e meio depois — e se desde o verão soma mais de 8 milhões e meio de “visualizações” no Youtube, na plataforma de streaming Spotify já superou “Sushi” (tem seis milhões e meio de plays, quase mais um milhão do que o ‘hit’ anterior) e chegou a destronar “Señorita” de Shawn Mendes e Camila Cabello como a canção mais ouvida no Spotify em Portugal.

[“Bússola”:]

O estilo das canções é variado.“Sushi” é trap-rap afirmativo com jogos de palavras permanentes e rimas de ataque:

“Isto não é só hip-hop
aqui é matéria futurista no meu guimbo
o teu nigga aqui só foi turista tipo gringo

que safoda o King, essa jungle é da queen Kong”

“Bússola” mantém os jogos de palavras — “dizem Nenny vai com calma / esse flow é arma” — mas acrescenta balanço dançante, refrão açucarado, emoção e sonhos colocados num caderno. E ainda há “On You”, exploração dengosa das sonoridades R&B e soul com palavras que não denunciam inteiramente os apenas 17 anos no cartão de cidadão, e a emotiva “Dona Maria” dedicada à mãe:

“Já desde uns tempos que ‘tão lá p’a trás
tu sempre ensinaste a olhar p’ra frente
mudámos de país, fomos para França
escravas à mesma mas língua diferente”

Ou as mais recentes “21”, um regresso às rimas alucinantes, às aliterações e ao trap, e “+351 (call me)”, lançada no passado mês de janeiro e a trazer de volta o balanço dançante, uns pós de dancehall e festa afro atirados para esta “drena” musical.

O reconhecimento chega com os números: pelo seu trabalho em 2019, Nenny está nomeada não só para artista revelação da próxima edição dos Play — Prémios da Música Portuguesa, que nasceram com a ambição de se tornarem uma espécie de “Grammys” nacionais, como enquanto autora da Melhor Canção do Ano de 2019. Na primeira categoria, concorre com Tiago Nacarato, Bárbara Tinoco (também ela sem álbum editado, mas com singles de relevo lançados avulso) e Murta. Na segunda, tem “Bússola” a concurso, enfrentando a concorrência de “Amor, a Nossa Vida” da banda Capitão Fausto, “Também Sonhar” de Slow J e “Bairro” do grupo Wet Bed Gang.

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“Há um ano estava a fazer covers no meu quarto”

A música estava presente desde cedo. Os pais, ambos caboverdianos, ouviam em casa “funaná e kizomba, músicas mais da terra, de Cabo Verde”, desde que Marlene se lembra de a sua vida ter banda sonora. Cresceu em Vialonga, mas com 11 anos mudou-se com a mãe para França, para os subúrbios de Paris. “Fomos para casa da minha tia, ficámos lá uns sete meses”, conta a jovem ao Observador.

Depois de sete meses passados em França, Marlene e a mãe mudaram-se: “Ficámos uns dois anos na casa do meu padrasto e depois mudámo-nos para Paris”. Quer a alteração de país quer as mudanças já em França foram feitas “com a expectativa de começamos uma nova vida, um novo trabalho, uma nova escola”. Os primeiros meses, conta Marlene, foram os mais difíceis: “Tinha 11 anos, fui em maio mas a escola começava em setembro e passei as férias de verão todas lá. Saía com a minha prima de vez em quando, mas não correu assim tão bem. Quando fui para a escola em setembro a adaptação foi melhor”.

Em “Dona Maria”, canção que escreveu como agradecimento à mãe, Nenny canta versos como “devo tudo à Dona Maria”, “sempre contigo, tu choras eu choro”, “p’ra renda estar paga / e para haver um prato p’ra cada / tu tens essas costas marcadas, mãe” e “imaginei uma vida em que sorrias sempre”. Mas também alude à estadia das duas em França, cantando “mudámos de país, fomos p’ra França / escravas à mesma mas língua diferente”. Marlene explica a ideia: “Tem a ver com a minha mãe ter de estar sempre a trabalhar. Sempre que encontrava um trabalho ia, às 19h ia, às 22h ia, era aquela coisa de: ‘onde houver trabalho, vou’. Era super cansativo para ela. E aqui era a mesma coisa quando veio de Cabo Verde, quando encontrava algum trabalho tinha de ir”.

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“Dona Maria” foi escrita já depois da mudança de país, mas Nenny lembra-se de ter escrito a sua primeira canção ainda em Portugal: “Foi para aí com 9, 10 anos, escrevi a minha primeira música. Falava sobre racismo e preconceito, ainda me lembro. Ainda estava em Portugal”, conta. A conversa flui mas cautelosamente, Nenny não se alonga muito, sorri aqui e ali, dá sinais de alguma timidez que confirma com um sorriso a finalizar: “Sou uma pessoa bué tranquila. Se fosse uma palavra era essa: tranquila. Acho que fui sempre assim, sou tímida, mas depende, tenho vários moods”.

Numa entrevista anterior, à plataforma Elefante de Papel, a cantora e compositora assumiu que enquanto crescia teve de se debater com estereótipos e com expectativas alheias de que se comportasse de determinada maneira e tivesse determinada aparência, condizente com o facto de ser negra. Contou, também, que sofreu de ansiedade e de ataques de pânico. Ao Observador, Marlene confirma que encontrou na música um espaço de expressão que lhe é confortável: “Quando tinha muita ansiedade foi a música que ajudou a controlar-me. E isso também inspira-me a escrever, a ser melhor”.

A notoriedade que ganhou enquanto artista, contudo, também obriga a alguns cuidados que podem acentuar a introversão: diz, por exemplo, que nas redes sociais, nomeadamente no Twitter, “costumava escrever coisas que pensava e agora já não posso fazer isso, tenho de pensar duas vezes em tudo o que partilho e faço. Mesmo no Instagram tenho de pensar duas vezes e não partilhar certas coisas que gostaria de partilhar, porque tenho pessoas que estão atentas ao que digo. Tenho de ter cuidado com isso. Há sempre inseguranças, mas vou lidando com elas da melhor forma que consigo”.

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A mãe, a quem dedicou uma canção, vai tentando também gerir o impacto de uma carreira de artista iniciada tão nova, antes mesmo da idade adulta. No Luxemburgo, para onde as duas se mudaram entretanto, Nenny vai cumprindo o percurso escolar e não há grandes “abébias”, como percebemos pela conversa paralela de amigos e colaboradores da cantora: até cumprir o 12.º ano, a prioridade é a escola e a música fica para os tempos livres.

Não é no Luxemburgo, mas em Portugal, que Nenny grava as canções que se vão ouvindo já em muitas rádios, playlists e até discotecas nacionais. As gravações acontecem num estúdio em Lisboa e começaram por convite de membros dos Wet Bed Gang, que já conheciam Nenny do bairro em que esta vivia antes de se mudar para França — moravam todos em Vialonga — e que se aperceberam do seu talento quando a cantora fez uma versão sua de “Devia Ir”, um tema do grupo português de rap. A partir daí, surgiu o convite para vir a Portugal gravar e desde aí tem seguido o seu percurso, acompanhada por produtores de batidas instrumentais associados à sua editora, a I’m.

Fã de artistas como “os Wet Bed Gang, Phoenix RDC [também de Vialonga], Richie Campbell, Teyana Taylor…”, tentando escrever fazendo “um bocadinho a fusão” entre as suas referências, Nenny cita ainda a rapper luso-angolana Eva RapDiva como uma inspiração feminina na música nacional: “É uma rapper que já começou há muitos anos e que esteve sempre a comandar o game por cá”.

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Apesar da carreira ter apenas um ano de duração, Nenny já teve alguns momentos que considera pontos altos e que não esperava que acontecessem tão cedo. Um foi no verão passado: apenas três meses depois de lançar a sua primeira canção, “Sushi”, foi apresentá-la ao palco principal do festival Meo Sudoeste, durante o concerto dos Wet Bed Gang. “Foi um bocadinho surreal, pensei: isto está mesmo a acontecer?”, recorda. Outro momento de que não se esquece aconteceu quando conheceu Richie Campbell: “Eu fazia versões dos sons dele e estar ali ao pé, a conversar com ele como uma artista, porque ele agora vê-me como uma artista… ainda não consigo lidar muito bem com isso. Há um ano estava a fazer covers no meu quarto. É um bocadinho surreal, não dá para acreditar”.

Ainda à procura de uma identidade musical que será sempre eclética, dentro do universo da chamada “música urbana” mas tão capaz de pender mais para o rap como para o R&B e a soul, Nenny quer fazer carreira em Portugal, país de que tem saudades: “Tenho saudades de sair de casa, de estar na rua, mais alegre. No Luxemburgo não saio muito, em França também não saía muito. O tempo está sempre nublado, está sempre a chover e não dá para sair de casa. Aqui em Portugal o tempo é diferente. Sinto-me bem aqui, sinto-me em casa aqui”. Voltar a breve trecho, até para se dedicar mais à carreira musical, é uma hipótese? “Todos queremos voltar um dia”, começa ela por dizer, sorridente. “Mas só Deus sabe”.