Chegou ao Campus de Justiça onde dezenas de jornalistas o aguardavam perto das 14h00. Disse duas ou três palavras perante as câmaras enquanto o seu advogado, João Araújo, seguia em frente de bengala indiferente às perguntas. E quando chegou ao balcão do edifício A para se identificar, lembrou-se que não tinha trazido o cartão de cidadão. “Peço desculpa”, disse à segurança. “Ele é arguido”, disse a outra segurança, deixando o ex-primeiro-ministro José Sócrates entrar sem identificação, depois de passar pela revista de segurança.
Na sala de audiências, a mais recente e maior do Campus para acolher grandes processos, o juiz de instrução Ivo Rosa mandou instalar um inibidor de sinal de rede. Queria garantir que não eram usados telemóveis nem a internet, mesmo tendo decidido abrir as portas ao público para ouvir alguns esclarecimentos que necessitava do arguido José Sócrates, acusado de mais de 30 crimes entre corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal. Quando a sessão começou, o juiz Ivo Rosa perguntou-lhe se estaria disponível para esclarecer algumas questões. “Tenho todo o gosto. Ainda por cima perante a comunicação social. Se não o que sairia seria uma edição das minhas respostas”, ironizou.
Ivo Rosa começou por dizer que iria perguntar-lhe sobre as estadias no Algarve e na Argélia. Mas acabou por fazer-lhe perguntas sobre o TGV, sobre a internacionalização do Grupo Lena, sobre a Venezuela e sobre os emails que constam no processo e que trocou com os seus assessores, que faziam a ligação àquele país.
O Ministério Público (MP), na acusação, fala de quatro estadias no Algarve que terão sido pagas por José Pinto de Sousa, primo de Sócrates — cujos pagamentos são justificados em nome de José Sousa ou José Sousa Portugal, com morada em Cascais. O juiz Ivo Rosa insinuou que podia ter-se dado o caso de, como era primeiro-ministro, optar por não ter os seus dados pessoais na fatura. Mas o ex-primeiro ministro disse que apenas esteve no Algarve uma vez, por altura do nascimento da filha do primo, de quem é padrinho. E para prová-lo levou uma série de agendas para o tribunal, que vai entregar ao juiz, e várias notícias que davam conta de visitas oficiais e de inaugurações que fez durante esses períodos.
Não estive no Algarve nesta altura [entre 13 e 17 de abril de 2006]. Recordo-me que passei essa Páscoa com o meu pai em Vilar de Maçada. Conversei com o meu primo sobre isto. Ele esteve no Algarve neste período, passou a Páscoa em férias e recorda-se porque a mulher estava grávida. E estava cá a família dela brasileira”, explicou para justificar um dos períodos referidos na acusação do Ministério Público.
Continuando a recorrer à sua agenda de 2006 e a notícias que foram escritas sobre si nesse mesmo ano, José Sócrates explicou como seria impossível ter estado no Algarve nos restantes períodos: “A 29 de abril e 5 de maio de 2006 também não estive. Tenho aqui uma notícia que diz que o primeiro-ministro está em Bragança. A 28 e 29 de abril estava em Bragança e não estava em Algarve nenhum. No dia 30 de abril, tenho outra notícia em que diz que o primeiro-ministro inaugurou uma universidade na Beira Interior. Não estive no Algarve. Está aqui a minha agenda de 2006 e no dia 29 de abril: governo presente em Bragança a 28 e 29 e na UBI [Universidade da Beira Interior] dia 30″.
— Espere, deixe-me fazer a pergunta…o seu primo justificou aqui porque foi a Suíça e levantou 50 mil euros. Sabia desta viagem?, perguntou Ivo Rosa.
— Não, a única coisa que recordo é que estive no Algarve no dia seguinte, a convite do meu primo, entre o dia 1 e 4… mas na semana a seguir em que o MP disse que eu estive no Algarve e que o meu primo me pagou as férias, eu estive no Brasil. Tenho aqui uma notícia que diz isso, respondeu José Sócrates.
— Sim, o tribunal pediu informação das viagens ao Ministério dos Negócios Estrangeiros.
— Ah, pensei que as notícias fossem suficientes… mas trouxemos as agendas… mas só para dizer que em três dos quatro períodos que o MP fala eu não estive no Algarve. Que credibilidade tem uma acusação destas? Bastaria ir ao Google…
O juiz Ivo Rosa perguntou também a Sócrates se sabia se o primo costumava movimentar grandes quantias em dinheiro e se era comum ele pagar em dinheiro vivo. “Não sei nada, nem antes nem depois, não sei nada da vida financeira do meu primo”, respondeu. “A relação fraternal que tenho com o meu primo não fazia com que falássemos sobre isso”, lembrando que as perguntas que lhe estavam a ser feitas correspondiam a episódios passados há 14 anos.
O TGV e o Grupo Lena
Outro dos esclarecimentos que juiz Ivo Rosa pediu foi relativamente ao TGV. Segundo a acusação, houve uma tentativa de beneficiar o consórcio ELOS (do qual o Grupo Lena fazia parte), introduzindo uma norma que fixava uma indemnização a pagar pelo Estado ao consórcio — norma que foi depois declarada ilegal pelo Tribunal de Contas. Mas Sócrates nega ter tido informação sobre o consórcio, que era, segundo ele, conduzido pelo Ministério das Obras Públicas. “Nós tínhamos uma séria preocupação com o Tribunal de Contas. E foi essa a recomendação que dei ao Ministério das Obras Públicas”, respondeu, reafirmando que tudo o resto foi feito pelos ministérios.
O juiz que vai decidir se o caso segue para julgamento quis também saber se José Sócrates ajudou no processo de internacionalização do Grupo Lena, onde o seu amigo Carlos Santos Silva trabalhava. Começou por perguntar sobre a suas viagens à Argélia, mercado onde este grupo de construção entrou.
E a resposta de Sócrates acabou por arrancar alguns risos da sala.
“Se me permite vou sacar da minha agenda. Quero dizer, tirar”, disse, enquanto se inclinava perante a pasta que trazia e que estava no chão, do seu lado direito. Foi aliás daí que foi retirando agendas dos diferentes anos para responder a Ivo Rosa. “A 4 novembro de 2009 teve algum contacto com Carlos Silva? Acredito que não tenha isso na agenda”, perguntou a certa altura a Sócrates. Ele respondeu que tem quase a certeza que enquanto primeiro-ministro pouco contactou com o amigo e que só o fez depois.
Também foi para depois do seu cargo como chefe de Governo que remeteu o conhecimento que teve sobre o Grupo Lena na Argélia. Ivo Rosa perguntou-lhe se nessas viagens — uma em 2008 e outra em 2010 — teve contactos privilegiados com políticos ou com o governo para facilitar os negócios do Grupo Lena. Ele negou. “Eu soube do interesse do Lena na Argélia muito depois, quando deixei de ser o primeiro-ministro e fui convidado a ser observador nas eleições”, respondeu.
Nas dúvidas de Ivo Rosa, após ouvir dezenas de testemunhas ao longo da instrução do processo, estavam também as viagens de Sócrates a Angola e o consequente benefício para o Grupo Lena, onde a empresa fez alguns negócios que o Ministério Público considera que poderão ter resultado em “luvas” para o ex-governante. “Angola sempre foi uma prioridade na política externa portuguesa”. Sócrates explicou que essa visita foi feita para “criar uma prometida boa impressão”. Isto porque o seu contacto com Angola se resumia, à data, à homóloga angolana, quando ele era ministro do Ambiente.
Angola e Venezuela e uma grande má interpretação do MP, aos olhos de Sócrates
Mas o juiz Ivo Rosa questionou ainda Sócrates sobre uma segunda deslocação a Angola em 2008 e uma terceira em 2010. “Portanto em seis anos fui três vezes”, resume Sócrates, acrescentando:
“O senhor Manuel Vicente trouxe dois ou três recados do presidente de Angola. Era assim que ele funcionava. Se eu precisasse de alguma coisa, ligava para o gabinete”, disse.
Segundo a acusação do Ministério Público, em 2013 Sócrates começou a trabalhar como consultor na Octapharma precisamente pelos conhecimentos que teria conseguido quando era governante e cabia-lhe facilitar negócios precisamente na Argélia, o Brasil e a Venezuela e também ao Grupo Lena. É, neste contexto, acusa o MP, que pede uma reunião com o vice-presidente de Angola, Manuel Vicente, com quem acabaria por se encontrar em Nova Iorque.
Já quanto à Venezuela, os procuradores que o acusam consideram que apoiou negócios naquele país, nomeadamente um projetos de construção de casas pré fabricadas feito pelo Grupo Lena e que terá resultado das visitas oficiais que fez à Venezuela em 2008 e 2010. Sócrates, no entanto, sempre de caneta em riste e a tentar arrasar a acusação, lembrou que esteve na Cimeira de Santiago do Chile em 2007. E que por altura de um encontro entre o líder venezuelano Hugo Chávez e o francês, Sarkozy, falam com ele. “Chávez precisava de alguém da esquerda europeia e é aí que vêm falar comigo. E é aí que ele me convidou para ir à Venezuela”, justificou. “A questão Venezuela surge por causa do petróleo”, acrescentou. “Em nenhuma circunstância falei com o Chávez sobre algum projeto”, garantiu mais à frente.
Seguiu-se então o confronto com vários emails trocados com assessores que faziam a ligação à Venezuela, entre eles Vítor Escária, o economista que foi seu assessor económico entre 2005 e 2011, alguns deles para Temir Porras, assessor no governo venezuelano, a propósito do projeto de habitação e em que diz, em espanhol, que o “primeiro-ministro está a pressionar”.
“Eu falava com Vítor Escária sobre informações genéricas. Ele foi interrogado e disse que eu não lhe dei orientações”, respondeu. “A única explicação que tenho para isso, era a importância do projeto”, disse.
Há ainda outro email de Escária para o embaixador português na Líbia em que lhe dá o número de Carlos Silva, o seu amigo e coarguido no processo. “Não foi por indicação sua?”, perguntou Ivo Rosa. “Não!”, respondeu perentoriamente o arguido.
O interrogatório complementar a José Sócrates — que segundo a informação do tribunal dada esta terça-feira ao Observador, deveria decorrer antes de iniciado o debate instrutório, logo à porta fechada, como tem sido até agora — terminou pelas 17h00, para depois de Ivo Rosa resumir tudo o que foi feito.
José Sócrates pediu para abandonar a sala e o juiz Ivo Rosa disse que o podia fazer, caso prescindisse da sua presença.
— “Não me apetece agora ouvir o Ministério Público. Não direi as razões por respeito”, alegou o ex-governante.
— “Mas não é o Ministério Público que vai falar, sou eu”, respondeu-lhe Ivo Rosa, sempre com ar impenetrável.
José Sócrates levantou-se e soltou um profundo suspiro. Pegou no casaco e na pasta e sentou-se na última fila da sala de audiências. O procurador Rosário Teixeira pediu para que as alegações finais que estavam marcadas para esta quarta-feira avançassem um dia e o juiz concordou. À saída Sócrates revelou-se mais nervoso perante os jornalistas. “O que se passou aqui foi o que se passou sempre. O Ministério Público não apresenta provas”, disse, criticando as últimas perguntas dos procuradores que questionaram se a amiga Sandra Santos — que aparece no processo como tendo recebido dinheiro seu — teria estado nessas estadias no Algarve.
Juiz Ivo Rosa mandou instalar inibidor de sinal e afasta irregularidades no sorteio do processo
As portas da sala de audiências abriram-se pela primeira vez aos jornalistas nesta fase de instrução, mas com uma condição: sem rede móvel e sem internet. O juiz Ivo Rosa mandou colocar um inibidor de sinal para impedir qualquer interferência à audiência.
Logo no arranque da sessão, o juiz Ivo Rosa quis esclarecer uma questão relacionada com a distribuição eletrónica deste processo, que foi contestada tanto pela defesa de José Sócrates como pela de Armando Vara, explicando que a 28 de setembro de 2018 foi-lhe atribuído o processo, após terem havido várias falhas de rede aquando a distribuição, num sorteio que foi público. Ivo Rosa pediu mesmo ao IGFEJ que esclarecesse como se processa a distribuição eletrónica dos processos e juntou essa informação ao processo.
Ao contrário do que foi noticiado não foi à quarta tentativa: o problema deveu-se à capacidade de rede. Assim que se estabeleceu a ligação, foi feita a distribuição. E não à quarta tentativa. É totalmente falsa a informação em relação a essa questão”, assegurou.
Horas antes, à chegada ao Campus de Justiça cerca de 10 minutos antes das 14h00, José Sócrates prestou declarações aos jornalistas e falou exatamente sobre a distribuição de processos. “Só em ditadura se escolhem juízes. Quando se viola a lei, isso significa que alguma coisa não correu bem. O Dr. Juiz Carlos Alexandre foi escolhido, não foi sorteado. Tudo porque era quem mais convinha ao Ministério Público”, disse, acrescentando ainda:
“Há cinco anos que me defendo desta acusação falsa, injusta e absurda. O Ministério Público tem motivações que nada têm a ver com nenhum tipo de Justiça mas sim com motivações políticas”, acrescentou.
Já durante o seu depoimento na fase de instrução, o antigo primeiro-ministro tinha reiterado que a acusação contra si é “monstruosa, injusta e completamente absurda”.
O debate instrutório inicia-se assim esta quinta-feira, pelas 14h00, com as alegações do Ministério Público. Segue-se a defesa, o que se prolongará durante os próximos dias. Só no final o juiz Ivo Rosa decidirá se o caso deve seguir para julgamento e em que termos.