“Como é que se aceita que um ex-primeiro-ministro aceite empréstimos de alguém que é administrador de uma sociedade que trabalha para o Estado?”, foi com esta frase que o procurador do Ministério Público, Rosário Teixeira, terminou esta quinta-feira as alegações finais no debate instrutório da Operação Marquês. Durante mais de quatro horas o Ministério Público (MP) tentou convencer o juiz Ivo Rosa a levar o ex-primeiro-ministro e 27 outros arguidos a julgamento. “Há um conjunto de explicações que merecem cabal esclarecimento”, concluiu o procurador, que considera que há muitas provas que não foram confrontadas na instrução e que têm “potencial” para ir a julgamento.

Rosário Teixeira começou pelo arguido José Sócrates. O requerimento de abertura de instrução feito pela defesa do ex-primeiro-ministro resumiu-se a 12 páginas para contestar a escolha do juiz do caso, tentando anular a distribuição do processo e, com isso, anular todas as decisões tomadas pelo juiz Carlos Alexandre. O procurador explicou que as regras foram estabelecidas pelo próprio Conselho Superior da Magistratura e que foram cumpridas. “Não há qualquer irregularidade no procedimento que foi feito em 2014 quanto à distribuição do processo”, considerou.

José Sócrates prestou esclarecimentos adicionais ao juiz naquele que seria o primeira dia do debate instrutório

O magistrado passou depois a falar no muito mais extenso requerimento de abertura de instrução de Carlos Santos Silva, o empresário amigo de José Sócrates tido como o seu testa de ferro.  A defesa do empresário alega que foram recolhidas provas (nomeadamente extratos e cheques bancários de contas no BES e na CGD) e formuladas suspeitas concretas contra Carlos Santos Silva fora do âmbito de um inquérito criminal e sem o controlo do titular da ação penal (Ministério Público). “Não houve nenhuma investigação”, disse, entre uma longa explicação sobre como o MP trata as comunicações dos bancos que podem vir a tornar-se suspeitas, tal como prevê a lei.

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“As averiguações preventivas foram analisadas em sede não do que é um pré-inquérito policial, mas de um pré-inquérito conduzido pelo MP. Não há ali investigação nenhuma nas costas do MP, há apenas investigação do MP. Tiveram o nome de procedimentos administrativos porque tinham que ter um nome interno, é algo que o MP tinha que fazer para o MP formular a sua convicção”, disse, dizendo que apenas tem a intervenção de alguns polícias que se limitam a mandar uma cartas para os bancos.

Investigação a Carlos Silva foi motivada por comunicação do Banco de Portugal

O procurador explicou, então, como nasceu o processo que viria a ganhar o nome “Operação Marquês”. Foi em 2013 depois de uma comunicação feita pelo próprio Banco de Portugal no âmbito do RERT (Regime Especial de Regularização Tributária) — o nome dado às três amnistias fiscais lançadas pelos governos PS e PSD/CDS em 2005, 2010 e 2012. “Estranho é porque é que o Banco de Portugal não fez isso quando foi a adesão ao RERT II”, considerou.

Rosário Teixeira explicou que estas comunicações são feitas à Unidade de Informação Financeira, que funciona na PJ, que faz um trabalho de intelligence, enquanto o Ministério Público investiga o percurso do dinheiro (follow the money) para perceber se há alguma ilegalidade por detrás do RERT. “Nas próprias análises de risco há especial cuidado por clientes que se encontram expostos … Eu próprio como magistrado estou incluído nessa lista de pessoas”, disse.

“É uma comunicação de uma operação tão só suportada numa análise de risco. O trabalho é fazer dessa análise um objeto de ser passível de ser um objeto processual penal”, explicou.

Acórdão de juiz alvo de processo disciplinar referido em alegações

Numa pausa de Rosário Teixeira, a voz do MP foi a do procurador Vítor Pinto sobre o arguido Hélder Bataglia acusado de um crime de abuso de confiança, cinco crimes de branqueamento e dois crimes de falsificação de documento. E, para derrubar o requerimento de abertura de instrução da defesa, o magistrado acabou mesmo a citar um dos acórdãos “que tem andado aí muito em aí muito em voga por outras razões”, referindo-se ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que absolveu o empresário desportivo José Veiga, num caso de fraude fiscal relacionado com a transferência de João Pinto para o Sporting. Este acórdão é um dos que está na origem da Operação Lex e foi assinado pelo juiz desembargador Rui Gonçalves, um dos três que esta semana foram alvo de um processo disciplinar por parte do Conselho Superior da Magistratura.

Este comentário teve, no entanto, um tom provocador para a defesa do empresário, uma vez que foi a própria que lhe fez referência no seu requerimento de abertura de instrução, quando defendeu que o crime de branqueamento “supõe o desenvolvimento de atividades que, podendo integrar várias fases, visam dar uma aparência de origem legal a bens de origem ilícita, assim encobrindo a sua origem” e que “sem um crime precedente como tal previsto à data da transferência do capital, não há crime de branqueamento”, citando o juiz desembargador que agora está a ser investigado.

Bataglia disse ao MP, em interrogatório judicial, que transferiu 12 milhões de euros para Carlos Santos Silva a pedido de Salgado, mas que desconhecia que os mesmos eram destinados a José Sócrates pelos seus alegados benefícios ao GES. Na perspetiva da defesa, os crimes de branqueamento de capitais, fraude fiscal qualificada e de falsificação documento devem ser arquivados pois tais alegados ilícitos já foram investigados em Angola e devidamente arquivados. Ou seja, não só os alegados ilícitos não foram praticados em Portugal mas também porque o empresário não pode ser investigado duas vezes pela mesma situação. Mas para os procuradores, estes crimes foram investigados em Angola já depois de Bataglia ser acusado em Portugal, até porque há atos suspeitos praticados em Portugal. O procurador disse mesmo que o arguido colaborou com Ricardo Salgado.

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Zeinal Bava “é a única pessoa que nestes tempos todos conseguiu ter rendimentos em períodos de crise na Suíça”

Já quanto a Zeinal Bava, Rosário Teixeira lembrou que, analisadas as suas contas, “é a única pessoa que nestes tempos todos conseguiu ter rendimentos em períodos de crise na Suíça”. “Essa é a área de onde ele veio e onde ele é muito bom. Não acredito que ele se tenha enganado num documento de identificação quando assinou um determinado contrato”, disse. O magistrado referia-se ao contrato assinado entre a sociedade offshore Espírito Santo (ES) Enterprises, o famoso saco azul do Grupo Espírito Santo (GES),  e o antigo gestor da PT, Zeinal Bava, para justificar os 25 milhões de euros que o primeiro transferiu para o segundo. Rosário Teixeira lembrou, também, a “facilidade com que na área do colarinho branco se arranjam documentos justificativos”.

Sobre o vice-presidente do Grupo Lena, Joaquim Barroca, Rosário Teixeira começou por dizer que da parte da defesa só pode ter havido uma “má leitura” da acusação. O MP considera que o Grupo Lena foi usado durante o governo de Sócrates como uma entidade que auxiliou na cooperação entre Portugal e Venezuela. “É o próprio governo português que aparece como tutela do Grupo Lena como salvador do problema da habitação” naquele país, diz o magistrado. A própria intervenção do Grupo Lena no consórcio Elos, para o TGV, mostra, na perspetiva da acusação, que houve “um risco assumido pelo Estado”. Segundo Rosário Teixeira, Sócrates até conseguiu fazer uma coisa “engraçada”, fazendo com que “mesmo perdendo, a Lena tivesse ganhado nesta questão do TGV”. Olhando para estas relações de negócios privados com meios públicos como uma atividade ilegítima.

Para contrariar a defesa de Vara, Rosário Teixeira alegou que as provas do Processo Face Oculta não estão “contaminadas”. A defesa alegou no requerimento de abertura de instrução que estas provas não podiam ser utilizadas na Operação Marquês, nomeadamente escutas telefónicas.

Quanto a arguidos como a filha de Armando Vara e Rui Mão de Ferro, que e tribunal tentaram demonstrar que nada sabiam destas operações ilegais, o Ministério Público considerou que “não é pela ausência de dolo que a sede de instrução fez uma prova que exclua esses arguidos”, ou seja, os procuradores consideraram que durante esta fase de produção de prova não houve nada que justificasse não serem levados a julgamento.

O MP acusou 28 arguidos — 19 pessoas e nove empresas — por 188 crimes. As 19 pessoas estão acusadas de corrupção passiva e ativa, branqueamento de capitais, falsificação de documento e fraude fiscal qualificada, falsificação de documentos, abuso de confiança e peculato e posse de arma proibida. As nove empresas estão acusadas de corrupção ativa, branqueamento de capitais, fraude fiscal qualificada.

O antigo primeiro-ministro José Sócrates é um dos arguidos e está acusado de 31 crimes: três crimes de corrupção passiva de titular de cargo político, 16 de branqueamento de capitais, nove de falsificação de documentos e três de fraude fiscal qualificada.

Marcado inicialmente para quarta-feira, o debate instrutório do processo Operação Marquês só arrancou esta quinta-feira precisamente porque José Sócrates quis prestar novamente declarações, tendo sido interrogado sobre as estadias no Algarve com o primo, o TGV e a internacionalização do Grupo Lena.

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José Sócrates recorreu-se de uma série de agendas e de várias notícias, que levou para o tribunal para provar que seria impossível ter estado no Algarve com o seu primo, nas datas referidas na acusação do MP.