A história é real e aconteceu entre 1970 e 1975 em Hamburgo, Alemanha, cidade onde Fatih Akin nasceu há 46 anos. O realizador quis contar a história de Fritz Honka, um assassino em série que matou quatro mulheres. Não vale a pena entrar em detalhes, isso estraga as rotinas de “O Bar da Luva Dourada”. Fritz Honka é interpretado por Jonas Dassler, mas vê-se pouco do jovem ator no filme. O que se vê é um monstro e as suas frustrações – sexuais e não só – a transformarem-se em violência.
O rigor é essencial em “O Bar da Luva Dourada”. É uma obra meticulosa, onde o espectador é convidado a ser mesmo isso, alguém que vê de um espectáculo sórdido, nojento e atroz. Em outubro passado [daí as referências a 2019] estivemos à conversa com o realizador, por telefone. Um retrato de um assassino, o filme de Fatih Akin é também uma pintura negra sobre a rejeição, desajustamento e a invisibilidade dos bares de prostitutas e alcoólicos de outro tempo. Estreia esta quinta-feira nos cinemas, na próxima semana é lançado em DVD e estará disponível no videoclube dos operadores de televisão.
[o trailer de “O Bar da Luva Dourada”:]
Nunca tinha ouvido falar nos crimes do Fritz Honka. Gostaria de começar por aí. Já sabia o que ele fez ou descobriu a história no livro [Der Goldene Handschuh, de Heinz Strunk]?
Ouvi a história em criança, mas não foi algo proeminente. Quando ouvi falar no livro, na história do assassino em série, então fez-se luz e lembrei-me das histórias da infância. Mas não sabia muitos detalhes sobre o Fritz Honka. Apenas sabia que era uma história sinistra.
O que o levou a adaptá-la?
Gostei do romance e senti que me estava a desafiar. O filme é tão brutal como o romance é e, também, tão perturbador e nojento. Quando li o livro, pensei por diversas vezes se era capaz de o adaptar ou não. Foi muito desafiante. E queria fazer algo diferente do que estava a fazer em “Uma Mulher Não Chora” [o filme anterior de Fatih Akin], obra na qual estava a trabalhar ao mesmo tempo. Quando acontece um sucesso, é quase impossível não ficar a congeminar no que fazer ou não fazer a seguir. E, muitas vezes, na sombra do sucesso, a decisão passa por fazer algo mais certinho. Não gosto disso. Dividi o meu tempo entre este filme e o anterior. Pode-se dizer que foi um desafio. “O Bar da Luva Dourada” é um filme experimental. Estava a tentar trabalhar com o terror, algo que nunca sequer tinha pensado em fazer.
Como foi criar um monstro como Fritz Honka e convencer Jonas Dassler a comportar-se como tal no ecrã?
Não foi muito difícil de convencer o Dassler a fazê-lo. Na Alemanha, sou conhecido como um realizador que trabalha atores. Por isso, não tenho grandes dificuldades em convencê-los do que quero fazer. Contudo, ele é suficientemente novo e doido para aceitar fazer algo assim. Ele foi desafiado ao mesmo nível a que eu fui desafiado. A vida é sobre desafios e o cinema deveria ser sobre isso. Existem vários tipos de realizadores. Os que querem sucesso comercial, os que querem sucesso crítico ou aqueles que fazem sempre o mesmo filme. E depois há aqueles que gostam de experimentar de vez em quando: experimentar no sentido de mudar os seus temas e o modo como se realiza. E depois também há realizadores que são egoístas, que pensam no filme para si mesmo como uma audiência. E eu sou assim. Sou muito egoísta. Não penso muito em quem está à minha esquerda ou direita. Quero fazer um filme que quero ver. Claro que há um lado humano e pessoal nisto tudo. Sempre tive uma relação com o Fritz Honka… Não com ele, obviamente, mas com pessoas que estão fora do sistema, loucos, psicopatas. Não sei porquê mas… atraio essas pessoas. A Sibel Kekilli [atriz de “Head On — A Esposa Turca”] era assim quando eu a conheci: louca, tinha fugido de casa, uma completa forasteira. O Birol Ünel [ator do mesmo filme] era um alcoólico daqueles mesmo à séria. Os meus filhos e a minha mulher sofrem do mesmo, temos este magnetismo. Não sei de onde isto veio. Por isso, quando estas pessoas ou histórias surgem à minha frente, não é uma surpresa para mim.
Em algum momento pensou que o filme poderia ser algo arriscado por causa do movimento #metoo?
Mesmo que o fosse, não teria qualquer dúvida em realizá-lo. Não gosto de ser censurado. Não falo da minha vida privada, ou de como me relaciono sexualmente com outras pessoas. Isso é uma coisa, o filme é outra. Para ser honesto, gosto de fazer coisas arriscadas e nunca penso no que os outros pensam. Sou turco, é uma cultura que se preocupa muito com o que o outro pensa, com o que a sociedade pensa. E eu quero quebrar isso. A censura do #metoo não me iria parar. Aliás, teria o efeito contrário. Sentiria como um desafio maior. Percebe o que estou a dizer? Sempre que algo é proibido, eu vou lá e faço-o.
Perguntei isto apenas porque no filme fiquei admirado com o nível de detalhe que coloca na vida de Fritz Honka, principalmente nos seus comportamentos em casa. Penso que é muito corajoso fazer algo assim em 2019.
Este filme não foi feito para isso. Ou talvez seja. Talvez entre para a discussão. É um filme sobre violência exercida sobre as mulheres. E a violência não deixa de existir só porque não é filmada.
Há pouco referiu-se a “O Bar da Luva Dourada” como um filme de terror. Não o vejo assim, mas como uma representação de uma realidade brutal que aconteceu algures, num tempo qualquer. Não o sinto como parte do género do terror porque é brutal, muito presente, humano.
Quando estou a ver um filme como o “The Conjuring — A Evocação” não me sinto assustado. Sim, tem momentos que assustam, “jump scares”, mas não me causa medo. Quando vejo o “It”, não me causa medo. Mas quando vejo “Brincadeiras Perigosas”, do Michael Haneke, isso causa-me muito medo. A sério. Ou o “Henry: A Sombra De Um Assassino” [de John McNaughton], isso assusta-me. Porque é verdadeiro. Fiz um filme que queria causar medo nas pessoas.
Para mim, um dos momentos mais assustadores da história do cinema acontece quando no “Brincadeiras Perigosas” o Arno Frisch se vira e faz rewind com o controlo remoto. É uma forma terrível de mostrar que se tem o controlo da situação.
É assustador. E tem um elemento de fantasia ao mesmo tempo.