Desde o fim do reinado de Luís XIV e até à Revolução Francesa, em 1789, França viveu a Idade de Ouro do mobiliário com “muitas encomendas de uma elite sofisticada e exigente e um nível de qualidade técnica e artística sem precedentes”, segundo Clara Serra, conservadora do mobiliário e dos têxteis do Museu Calouste Gulbenkian. Surge então uma nova estética, marcada pelo Estilo Regência, em que os móveis de aparato começam a dar lugar a peças menos solenes e mais pequenas com madeiras exóticas, até se chegar ao Estilo Luís XV, com ornamentos vegetalistas e linhas dinâmicas, e ao Estilo Luís XVI, que regressa às formas direitas e à simetria.
Uma nova exposição no museu da Avenida de Berna, em Lisboa, procura explicar a época e o modo de produção deste mobiliário que a aristocracia utilizava para decoração e no dia-a-dia.
Intitulada “A Idade de Ouro do Mobiliário Francês: da Oficina ao Palácio”, com abertura nesta sexta-feira, dia 6, e encerramento a 1 de junho, a exposição resulta de uma parceria com a Fundação Ricardo Espírito Santo Silva (FRESS), dedicada à produção e conservação das artes decorativas, e tem curadoria de Clara Serra. Ocupa a galeria do piso inferior, junto à cafetaria e à Biblioteca de Arte.
“Pretendemos mostrar o que está por detrás destas obras, o que não conseguimos ver quando olhamos para elas: quais os materiais e as técnicas, como eram as oficinas e qual o processo de produção”, explicou a curadora durante uma visita guiada à imprensa, esta semana. “Desde a rudeza da madeira, que chegava às oficinas em estado bruto, até à peça delicada e sofisticada que se destinava aos palácios.”
O espaço expositivo foi pensado pelo designer Mariano Piçarra, da Gulbenkian, e baseia-se em estruturas que imitam o modo de construção destes móveis: painéis e bancadas com encaixes de cunha e cavilha, sem um único prego.
“O mobiliário de elite era assim feito, só se usava pregos para prender os bronzes às peças, mas elas eram todas feitas com encaixes”, disse Clara Serra. Dois vídeos que acompanham a mostra, cedidos pelo museu londrino Wallace Collection, simulam a desconstrução dos móveis, elemento a elemento, e permitem perceber melhor o sistema de encaixes.
A acompanhar a visita esteve a diretora do museu, Penelope Curtis, segundo a qual coleção de mobiliário francês “é muito importante”, porque Gulbenkian, o fundador, “gostava imenso destas peças”, o que se reflete na exposição permanente e é agora aprofundado nesta mostra temporária, com enfoque no processo de fabrico. De resto, acrescentou Clara Soares, o empresário Calouste Gulbenkian (1869-1955) utilizava na sua casa de Paris algumas das peças agora expostas – e todas aparentam um perfeito estado de conservação.
Secretária de Versalhes
Ao todo, o visitante encontra 15 obras, todas únicas, ainda que algumas derivem de modelos várias vezes replicados. A mais antiga é uma cómoda de 1730 que demorou uma década a ser feita. É assinada pelo mestre Antoine Criaerd e os materiais principais são o carvalho, o pau-rosa e o pau-violeta e ainda o mármore “rouge de France”. A cómoda pertence à Casa-Museu Medeiros e Almeida, em Lisboa. Além do acervo do Museu Gulbenkian a exposição recorre a empréstimos de diversas proveniências: Museu de Artes Decorativas de Paris, Museu de Artes e Ofícios de Paris, FRESS e Museu Nacional de Arte Antiga.
No início do percurso, encontram-se quatro volumosos livros de meados do século XVIII, o tratado “L’Art du Menuisier en Meubles”, escrito pelo mestre e teórico das artes decorativas André-Jacob Roubo. Surge também a peça mais emblemática do conjunto: a secretária de cilindro do famoso ebanista Jean-Henri Riesener, terminada em 1773. A estrutura é de carvalho e a marchetaria (técnica de decoração dos móveis com motivos alegóricos ou florais) é em sicómoro ébano e outras madeiras exóticas, com remate de bronze cinzelado e dourado e veludo no interior. Vai ser cedida no próximo ano pela Gulbenkian para uma exposição na Wallace Collection, adiantou Penelope Curtis.
“Esta secretária foi executada para os aposentos, em Versalhes, da condessa de Provença, cunhada de Luís XVI”, diz a legenda. “Trata-se de um móvel mecânico, uma das inovações desta época, em que a sua funcionalidade e versatilidade demonstram a busca de conforto e sofisticação.”
Na França do século XVIII o espetacular desenvolvimento do mobiliário, auge de uma arte que já era afamada, deveu-se fundamentalmente, nas palavras de Clara Serra, à estabilidade política e à prosperidade económica, o que levou à ascensão de uma elite endinheirada e sofisticada que gostava de aliar a estética ao conforto e procurava ansiosamente novidades para renovar os interiores dos palácios.
“Os custos da decoração de uma casa de luxo na cidade chegavam a ser superiores aos da sua construção”, refere a folha de sala. “Penso que as elites investiam mais dinheiro nos móveis do que na reformulação do resto do espaço”, precisou Clara Serra ao Observador. No fundo, a procura correspondeu a um estilo de vida da aristocracia que a Revolução Francesa arredou do poder, resumiu a curadora.
O visitante pode ver e tatear algumas madeiras então utilizadas, desde logo o carvalho, mas também o pinho, o choupo ou a nogueira. Encontra amostras dos encaixes mais comuns (encaixe cauda-de-andorinha ou encaixe furo e respiga), uma mesa de marceneiro e ferramentas manuais (maço, maceta, compasso de ferro, serrotes e serras, raspadores e plainas, entre outros). Cedidas pela FRESS, há várias amostras de marchetado, os desenhos decorativos em madeiras exóticas, com cores variadas e às vezes com acabamentos de pintura à mão.
Os marceneiros e ebanistas, ou decoradores, “viram-se forçados a conseguir corresponder às solicitações e tiveram de encontrar soluções técnicas que respondessem à procura”, referiu a curadora. “O mobiliário francês começou a ter prestígio internacional e muitos artistas de origem alemã e dos Países Baixos são atraídos a Paris e assimilam o gosto, pondo o seu virtuosismo ao serviço desta arte. A intervenção dos marchands-mercier [comerciantes] revelou-se também muito importante. Eles eram os intermediários entre o cliente o artesão e muitas vezes funcionavam como motores de criatividade”, acrescentou.