Joana teve aquilo que habitualmente se designa por infância feliz. Cresceu rodeada de amor numa família tão numerosa como ruidosa. Era a mais nova de cinco irmãos e, talvez por isso, todos os dias lhe pareciam de festa. Mas o momento que mais aguardava em cada dia chegava sempre à noite, depois do jantar, quando os pais perguntavam “Vamos ouvir uma história e dormir?”.
O pai e a mãe dedicavam-se à tarefa em conjunto e todos os irmãos se reuniam no mesmo quarto para a ocasião. Em silêncio, distribuídos pelos beliches disponíveis, como se estivessem no camarote mais confortável do teatro. O pai tinha uma voz radiofónica, grave e expressiva, tão capaz de interpretar os vilões mais malvados como os príncipes mais encantados. A voz da mãe era igualmente bela e versátil, podia ser madrasta ou princesa com igual encanto. Os irmãos mais velhos, por vezes, também se juntavam ao elenco, sobretudo nos contos em que havia crianças ou animais como personagens.
Joana fechava os olhos e imaginava tudo aquilo que ouvia atentamente. Castelos encantados, florestas a perder de vista, histórias de amores e desamores. No final, despedidas feitas e luzes apagadas, continuava a dar largas à imaginação. Será que tinham mesmo vivido felizes para sempre? Porque é que a maioria dos contos acabava assim? Joana imaginava outros finais, outras personagens, outros cenários, outras histórias. Imaginava, adormecia e sonhava com elas.
As leituras que os pais faziam vinham de um velhinho livro de histórias infantis que fora da avó, primeiro, e depois da mãe. E assim que a pequena começou a ler — precocemente, ainda não tinha cinco anos —, decidiu procurar outros livros com outras histórias. Lia-as “de fio a pavio”, mesmo já sabendo de cor cada fala e cada final, feliz ou infeliz. Nunca deixou de se encantar com a esperteza de Polegarzinho e com o cabelo de Rapunzel, de se emocionar com a infância do Patinho Feio ou imaginar, a cada leitura, que a Galinha dos Ovos de Ouro podia estar numa capoeira algures.
Essas personagens e outras que se lhes seguiram deram-lhe vontade e inspiração para começar a escrever as suas. Assim fez: durante o resto da infância e adolescência encheu cadernos e folhas avulsas com enredos mirabolantes. Fábulas dignas de La Fontaine, contos à altura dos Irmãos Grimm. Passou a ter por hábito ler ela as suas criações aos pais, numa curiosa inversão de papéis. Eles gostavam tanto que lhe diziam sonhar com as suas histórias, tal como ela sonhara antes com as que eles lhes contavam. Agora, o sonho de Joana era outro: conseguir um dia publicá-las. Queria ser escritora.
Esse sonho começou a realizar-se num local improvável: uma fila de supermercado. Joana era a única dos irmãos que ainda vivia com os pais. Nessa noite, porém, toda a família se iria reunir à mesa, como nos velhos tempos, para celebrar o aniversário do seu irmão mais velho. Este pedira à mãe que fizesse a sua receita favorita, que também era a de Joana: arroz de pato. A mãe concordou e pediu à filha que fosse comprar os ingredientes necessários. Joana assim fez. De carrinho cheio e “água na boca”, já a imaginar o banquete dessa noite, estava na fila para pagar quando se deparou com um anúncio que lhe aguçou outro tipo de apetite: o Prémio de Literatura Infantil Pingo Doce preparava-se para premiar, com 25.000 euros e consequente publicação da obra, o talento de um autor inédito. Estavam abertas as candidaturas.
“E se concorresse?”, perguntou-se. Histórias de sua autoria não lhe faltavam. Assim que chegou a casa, entregou as compras à matriarca e contou-lhe o que acabara de ver. Esta, conhecedora do talento da filha, incentivou-a como só as mães sabem incentivar. “Concorre, filha. As tuas histórias são únicas e não tens nada a perder. Digo-te mais: se enviares o texto ainda hoje, faço a tua sobremesa favorita para juntar à celebração.”
O argumento era imbatível. Joana pôs-se a revisitar textos antigos e atuais, à procura daquele que mais hipóteses lhe daria de vencer o concurso, que pedia uma obra dirigida a crianças entre os 6 e os 12 anos. Escolheu uma criação antiga, inspirada por memórias de infância: “A menina que escrevia sonhos”. Contava a história de uma menina, Joana como ela, dona de uma imaginação tão fértil e esplendorosa que fora escolhida de entre todas as pessoas do reino para escrever os sonhos do Rei e da Rainha. Não esperou mais: passou o texto a limpo submeteu a candidatura por via eletrónica. Nessa noite, houve arroz de pato para prato principal e farófias para sobremesa.
A celebração repetiu-se passados uns meses, quando saiu o resultado do concurso. O júri, um painel respeitável de jornalistas e autores, fora unânime: não havia outro vencedor possível que não Joana. Nessa noite, a família voltou a reunir-se. Depois do jantar, sentaram-se no chão do velho quarto dos beliches, agora transformado em escritório, e todos juntos leram o conto vencedor. Joana sorriu, fechou os olhos, mas já não precisou de sonhar.
O Prémio de Literatura Infantil Pingo Doce assinala, este ano, a sua 7.ª edição. Trata-se do maior prémio de literatura infantil do país, no valor de 50.000 euros (25.000 euros para texto e 25.000 euros para ilustração) . As candidaturas para textos estão abertas até dia 2 de abril de 2020. O vencedor será revelado a 5 de maio, Dia Mundial da Língua Portuguesa.
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