Num subúrbio sem nome, numa América pós-imperial e decadente, onde os filhos do 11 de setembro de 2001 crescem entre um normalizado acesso a drogas e a armas, o escapismo proporcionado pela realidade virtual, a pornografia, a sexualidade filmada, fotografa e partilhada, a disfuncionalidade familiar, a doença. Nesta cidade, onde é quase sempre noite, onde as sombras persistem em pairar sobre os sonhos americanos, e o ambiente é de total disforia a vida disfarça-se, mascara-se numa alegria falsa, numa “Euphoria”. A série, que se estreou, sem grande alarde, na HBO, no verão de 2019, tem vindo a transformar-se num fenómeno de popularidade não obstante a dureza e realismo na abordagem de temas atuais como a homo e a transsexualidade, a depressão, a violência, mas também na forma criativa como é construida cada personagem, nomeadamente, recorrendo ao uso da maquilhagem como meta-narrativa.
A série dramática, uma criação de Sam Levison, parece não ser o lugar mais provável para acontecer uma explosão de criatividade no domínio da maquilhagem, mas Levinson assume que é viciado em ver tutoriais sobre o tema no You Tube, e quando chamou Donielle Davy e Kristen Sage Coleman para a caracterização pediu-lhes que criassem uma estética para cada personagem, que não fosse meramente decorativa, mas sim uma expressão do mundo interior de cada uma delas. Assim, em Euphoria, a maquilhagem torna-se aquilo que foi a moda para O Sexo e a Cidade, Gossip Girl ou Mad Man: um prolongamento do eu, uma linguagem identitária e epocal.
No centro da narrativa está Jules, uma transgénero interpretada pelo modelo Hunter Schafer, também ele transgénero. Jules é a nova rapariga na cidade e, ao contrário do que se esperaria, é a mais segura, mais confiante e a única que parece ter futuro fora daquele subúrbio. É a personagem mais complexa e mais inesperada, mas Levinson nunca cai na tentação de olhar para ela a partir de uma posição moralista ou paternalista. Por isso, Donielle Davy criou para ela uma linguagem pictórica absolutamente fascinante, qualquer coisa entre a geometria modernista de um Kandinsky e o expressionismo abstrato de Pollock passando pelo surrealismo de Miró. Davy e Coleman usam de uma radicalidade quase infantil desenhando círculos, nuvens, flores em torno dos olhos da personagem ou simplesmente usando manchas informes de muitas cores como se uma criança estivesse a usar uma caixa de lápis de cor ou aguarelas pela primeira vez. O resultado tem uma força expressiva inquestionável tendo criado de imediato um séquito de seguidores: dos Globos d’Ouro aos desfiles de moda em setembro de 2019, e agora em 2020, passado pelo street style, é difícil não encontrar referências aos olhos de Jules em “Euphoria”.
Adeus maquilhagem decorativa. Olá maquilhagem auto-expressiva.
Com um panóplia de referências que vão de Nina Simone, Twiggy, Cher ao filme de culto de Scorsese, Taxi Driver, “Euphoria” tem como protagonista a modelo e atriz Zendaya (Rue) e ao seu lado Barbie Ferreira (Kat), Sydney Sweeneey (Cassie), Maude Apatown (Lexi), Alexa Demie (Maddy), isto só para falar da parte feminina. Todas elas são raparigas em processo de mutação contínua, em busca de um lugar e de um corpo onde possa caber a sua vida. Davy é assertiva e em várias entrevistas explica que a maquilhagem é diferente a cada aparição da personagem, cada mudança de roupa, de cenário; cada acontecimento implica uma revolução cosmética e cromática.
No universo de Euphoria as cores tendem a ser saturadas, hiperpigmentadas e sublinhadas com o uso de pequenos cristais ou pérolas na zona ocular. Se neste momento está a pensar em Coachella, pode esquecer. Aqui não há carnaval ainda que se saiba que cada vida tem as suas máscaras. Por isso, em latim “máscara” e “pessoa” dizem-se “persona”. E, de facto é esse o objetivo de Sam Levinson, criar personas. Pessoas e não meros fantoches que debitam um discurso. Assim temos Rue (Zendaya) aqui despida de todo o glamour, como uma jovem deprimida e viciada em drogas. Se no inicio da história ela não usa maquilhagem, a sua lenta e oscilante alegria manifesta-se nuns olhos por onde o glitter passou mas depois escorreu como lágrimas clownescas. Maddy, na sua hiper-sexualidade e necessidade de afeto, sonha com os pódios e a fama. Os seus olhos estão invariavelmente carregados de azul e ornamentados com cristais, que já se tornaram a imagem de marca da personagem. Davy conta que para a composição algo revivalista de Maddy foi buscar inspiração à estética da cantora Nina Simone. Já Cassie, algo ingénua mas procurando afirmar-se face aos preconceitos é inspirada na jovem prostituta de Taxi Driver (Jodie Foster). No entanto é Kat (Barbie Ferreira) que, ao lado de Hunter Schaffer, mais nos atrai, quer pela sua evolução de garota gorda envergonhada de o ser para bomba sexual que se vende, em segredo, na internet. Pelos seus olhos e lábios passam as mais desejáveis e impensáveis tonalidades de verde e lilás.
Outra das curiosidades da estética de “Euphoria” é o quase desaparecimento do batom, essa ferramenta tão cinematográfica e tão conotada com o feminino. Basicamente, Donielle Davy pinta apenas a região ocular, deixando o resto da face totalmente nua ou com escassos brilhos. Tudo se joga no olhar e esta também é uma afirmação de rebeldia, quer das personagens, quer dos criadores da série: a pintura do rosto deixa de ser decorativa ou corretiva para ser essencialmente auto-expressiva, uma afirmação identitária que é, ao mesmo tempo, uma forma de comunicar com o mundo exterior os estados de alma, as convulsões interiores.
No momento em que a industria da cosmética cresce de uma forma avassaladora, quando se começa a naturalizar a maquilhagem masculina, e quando somos intimados a seguir as regras rígidas e exíguas das influencers que nascem como cogumelos nas plataformas online, não deixa de ser curioso que este “discurso” novo, criativo, apelativo e transgressor, não venha da Internet mas de uma série de televisão, um meio onde a maquilhagem teve e tem uma abordagem absolutamente conservadora.
Como recriar os looks de Euphoria?
Enquanto se aguarda a segunda temporada da série, que deve chegar lá pelo outono deste ano, é quase impossível não querer experimentar os grafismos, os amarelos e os brancos de Jules, os verdes de Kat ou as sobrancelhas adornadas de pérolas de Maddy. Mas se a veterana Pat McGrath já fez a sua própria reinterpretação da estética modernista de Jules, no desfile da Prada para o outono/inverno de 2020, e se Jason Wu, Oscar de la Renta, Anna Sui e Chromat mostraram que estão atentos a “Euphoria”, e se as street stylers e influencers internacionais já ousaram estes caminhos amplos e frescos abertos por Donielle Davy e Kristen Coleman, a verdade é que tudo isto é mais difícil do que parece, e é preciso ter uma mão treinada e segura e algumas ferramentas com muita cor e brilho: lápis para olhos branco, eyeliners brancos, com glitter ou de tons fortes como azuis, verdes, roxo (a marca Urban Decay é uma das que mais tem produtos com glitter mas, há marcas mais baratas, como a Essence da Wells, que têm um conjunto interessante de lápis retráteis em tons rosas, azuis e verdes que são ótimos para iniciantes, tal como a Kiko Milano ou a Sephora Collection).
Já as sombras com tons fortes de amarelo, vermelhos, rosas, azuis encontram-se nas paletas da Fenty Beauty, ou na Norvina Pro Pigments de Anastasia Beverly Hills. A Huda Beauty tem uma paleta só em tons de verde que não é de desprezar se quiser replicar os looks de Kat, e a policrómica NYX, com toda a sua galáxia, é um lugar obrigatório para quem quer encontrar produtos de cores intensas. Outra ferramenta indispensável é a máscara; mas agora esquecendo o preto e optando pelos azuis, verdes, amarelos. Pestanas falsas, cristais, folha d’ouro, purpurinas para recriar os looks de Rue ou Maddy podem encontrar-se em lojas como a Claire’s, mas também na Sephora ou mesmo numa retrosaria de bairro. O truque que Davy partilha com o mundo é apenas este:”colar tudo com cola de pestanas”.