Era o verão de 2011 e quatro rapazes num descapotável perseguiam garotas que seguiam numa 4L; e se isto dito assim em 2020 tem contornos assustadores, na realidade não havia nenhuma mensagem violenta ou abusadora ou anti-feminista nesse vídeo de “Dezassete anos”, o principal single de O Verão Eterno, o disco de estreia dos Capitães de Areia, desse mesmo ano – era nostalgia pura da inocência da adolescência, servida via guitarras à Orange Juice e um refrão de pararas.
“Dezassete anos” era uma grande, grande canção pop, que pareceu chegar um pouco fora do tempo, já no final da cauda da nova música portuguesa: uns anos antes os Pontos Negros haviam explodido no éter digital e músicos até aí underground, como Tiago Guillul, Samuel Úria ou Jorge Cruz, começaram a ter exposição – entre as editoras FlorCaveira e AmorFúria escritores de canções talentosíssimos, como João Coração, B Fachada ou Os Golpes, chegaram às primeiras páginas dos jornais. E depois vieram os Diabo na Cruz – esses sim, capazes de chegar a multidões.
A música portuguesa parecia ter vingado, mas os Capitães da Areia não: após o ambicioso e psicadélico A Viagem dos Capitães da Areia a Bordo do Apolo 70, cada membro do grupo voltou à vida civil e nunca mais se ouviu falar deles até agora, quando, cinco anos depois, Pedro de Tróia, o líder dos extintos Capitães da Areia, se apresta a editar Depois Logo Se Vê, o seu primeiro (e sombrio) disco a solo.
Que momento é este, que resta dessa fornada pioneira, da qual os Capitães foram a cauda? Os Pontos Negros acabaram e já só se juntam para datas comemorativas, Os Golpes nem para comemorar se juntam, os Diabo na Cruz estão enterrados e Jorge Cruz, o seu líder, escreve canções para outros, Tiago Guillul deu o seu lugar ao pastor Tiago Cavaco, João Coração passou como um cometa, um enigma que nunca irá ser compreendido, B Fachada deixou de fazer 3 discos por ano e passou a fazer 3 filhos por década e Samuel Úria tem uma admirável — se bem que pouco comercial — carreira.
O que é o mesmo que dizer que desta feita não há um fenómeno com um nome pomposo (o “fenómeno Flor Caveira”) que Pedro de Tróia possa capitalizar, com a sua pop pós-new wave e etérea. Mas também não há vazio: os Caveiras e os Fúrias inspiraram editoras subsequentes como a Cafetra e a Xita; de repente temos Severo, Coelho Radioactivo (e a banda dos dois, os Flamingos), Os Passos em Volta, as Pega Monstro, Maria Reis, a maravilhosa Salliim, Éme, os Primeira Dama, Benjamim, Filipe Sambado, os Capitão Fausto. A estranha explosão, a estranha excitação com música urbana feita em língua portuguesa, deu lugar a outro fenómeno: a normalidade. E, com ela, a abundância de qualidade. Hoje ninguém se admira de ouvir um bom disco pop contemporâneo em português.
E é neste cenário sem grandes estrelas – com exceção, talvez, aos Capitão Fausto, que hoje são capazes de encher qualquer sala do país em qualquer data, a qualquer hora, e Sambado, que nunca país decente seria o rei desta porra toda – mas repleto de atores talentosíssimos, pese embora desconhecidos do grande público, que Pedro de Tróia sobe a palco pela primeira vez sozinho, munido de uma estranha mas sedutora dream-pop, algures entre os Cocteau Twins e os Radar Kadaffi, entre os Orange Juice e os Heróis do Mar. Depois Logo Se Vê é o improvável cruzamento de Skylarking, dos XTC, com o Best-Of dos Ban (que é um grande disco).
Falo-lhe destas referências e ele ri-se: “Na altura do nosso disco [dos Capitães da Areia] falaste-me dos Orange Juice e eu não conhecia, mas fui ouvir e tinhas toda a razão. Acho que agora vou ouvir os XTC, porque o resto conheço e faz sentido”.
Mas não acreditem em mim ou no Pedro, ouçam Depois Logo Se Vê (no Spotify, por exemplo) e reparem nas guitarras que abrem a ótima “Embaraçado”, espécie de dream-pop, revista para o século XXI; encontro improvável entre entre os Cocteau Twins e os Radar Kadaffi, com refrão lindíssimo cheio de coros.
[“Embaraçado”:]
Os primeiros quatro temas de Depois Logo Se Vê são dos melhores começos de disco de pop tuga em muito tempo: “Salvadora” lembra as bandas de synth-pop do pós-new wave – há um negrume a atravessar a faixa, uma nebulosa que nasce do choque entre as guitarras e os synths – depois o refrão cresce, vindo do nada, cheio de coros, uma linha de baixo gorda sustenta a canção inteira, lindos trinados de guitarra volteiam.
Já quanto a “Óculos de sol”, o melhor elogio que se pode fazer é que podia ser uma canção dos Go-Betweens – I mean, quem, neste ano de 2020, faz uma canção sobre escaldões e por-de-sol em que uma slide-guitar dobra a acústica? E depois vem “Nunca falo demais”, com aquelas guitarras de funk-branco do início dos anos oitenta e um beat e um baixo que lembram Liquid Liquid ou ESG – os coros no sítio certo, o refrão infeccioso, a pausa que dá lugar a baixo e bateria, a ascensão, o refrão com coros outra vez. E vem a segunda parte da canção com uma grande linha de guitarra – que espanto de canção.
[“Nunca Falo Demais”:]
E a pergunta obrigatória é: porquê cinco anos sem um disco, porque raio andou este material guardado numa gaveta, num disco duro? “Em 2016, depois do Apolo, eu queria continuar com os Capitães. Depois percebi que as agendas dos membros do grupo não eram compatíveis e depois de um período de uma certa confusão percebi que não queria fazer mais nada senão música. Em 2018 decidi gravar o disco – e a partir daí foi o tempo de ter alguma coisa para dizer e poupar dinheiro para gravar o disco – isso foi em junho de 2019. Depois era preciso dinheiro para misturar, etc”.
Exatamente a meio do disco surge “Rés do chão”, uma canção diferente do resto do álbum, acústica, de fim de noite, quando já toda a gente foi embora do bar. Ao início ouvimos os músicos a conversar; alguém diz “Imagina que morremos depois disto – isto é o que vamos deixar à humanidade”.
É uma canção bonita, de algum azedume, em que se canta:
“Não é justo
que eu queira tanto
e a vida insista tanto em não me dar”
Pelo seu pendor acústico quase que não encaixa no disco – mas tematicamente é como que o centro:
“Quero viver no topo, no último andar
com um terraço onde me possa agigantar
quero ter tudo o que um bom homem deve ter
menos miséria, que essa tenho para vender”.
E nesse instante percebemos que Depois Logo Se Vê é um disco de balanço, do que foram os 31 anos deste homem na Terra, é um assumir do seu negrume – ausente nos Capitães da Areia – uma espécie de exorcismo dos demónios. “Os Capitães eram mais alegres do que eu sou”, explica Pedro. “E se nos Capitães alguém contribuía com um lado mais nostálgico, mais sombrio, era eu. Eu sou um tipo obcecado com o passado, que constantemente revê o que fez, o que devia ter feito. Hoje é diferente: vejo-me com uma bola de ferro nos tornozelos – mas debaixo dos pés tenho uns patins de fogo”.
Como que a corroborar a declaração, logo de seguida surge a magnífica e dançável “Dente de leão”, com aqueles synths e coros finais. Pedro continua, meio a gaguejar, meio atrapalhado, meio embaraçado: “A solo eu sabia que não queria cantar coisas que não me dissessem respeito só a mim. É preciso que os meus discos me contenham, me façam bem”. É aqui que ele assume que o motivo maior para fazer um disco a solo foi “eu precisar de resolver conflitos interiores, precisar de me sentir livre de mim – e com os Capitães havia canções sérias mas de forma acidental, era mais gozar com os amores”. Faz uma pausa e acrescenta: “O último dos Capitães escrevi-o com 24 anos. Entretanto tenho 31”.
[ouça “Depois Logo de Vê” na íntegra no Spotify:]
Depois Logo Se Vê é um disco criado para “resolver coisas para trás e sonhar com o que vem para a frente”, no qual surgem duas relações turbulentas: uma com Lisboa (que Pedro abandonou) e outra de amor, com “uma pessoa que me reconciliou comigo próprio”. Uma pessoa que o ajudou a aceitar que “eu não conseguia viver sem música. Talvez prefira ter uma vida mais aos ésses mas que se sente completo em vez de um gajo que tem uma vida a direito mas se sente vazio”.
E talvez por isso seja um disco não digo que mais negro (não é um disco à Joy Division) mas melancólico e contemplativo; o melhor exemplo destas características talvez seja “Passo Lento”, que se vai definindo devagarinho, introduzindo a maravilhosa figura de órgão, os batuques – e o oboé, que remete de imediato para os Go-Betweens. Eles e os XTC, no seu lado mais amorrinhado, são as grandes referências do disco.
Daqui para a frente haverá “uma continuidade desse lado mais escuro; sinto-me em casa assim. Gosto que as canções me soem àquilo que eu realmente sinto. E aquilo que me faz escrever uma canção geralmente não é uma coisa muito feliz”.
A infelicidade de Pedro de Tróia é a nossa felicidade – e eu, egoísta, estou mesmo muito bem com isso.