Um vídeo publicado no YouTube em meados de março, a dar conta dos resultados de um ensaio clínico com apenas 24 pacientes e a defender a eficácia da hidroxicloroquina, habitualmente usada no tratamento de malária, lúpus e artrite reumatóide, no combate à covid-19. Foi tudo quanto bastou para o virologista francês Didier Raoult se transformar numa espécie de rock star da pandemia, com direito a memes, entrevistas em revistas do social e grupos de fãs no Facebook. “Didier Raoult é o único investigador no mundo que tem uma pista sobre como nos salvar”, pode ler-se na descrição de um deles. “Didier Raoult Presidente da República em 2022” é o mote de outro.

Para os que o adoram, Raoult é como Panoramix, o druida capaz de preparar a poção mágica que tudo curava e tornava invencível Astérix e os demais gauleses da pequena aldeia da Armórica que sempre resistiu ao invasor. Para os que o odeiam (ou duvidam da ciência por trás da cura que preconiza, vá), é Saruman, o poderoso Mago Branco que se deixou corromper pelo mal em “O Senhor dos Anéis”. Os seus icónicos cabelos, grisalhos e compridos, estão na base de ambas as escolhas.

Em França, como as grandes estrelas do cinema, da música, do futebol ou da monarquia, Didier Raoult, 68 anos, diretor do Instituto Hospitalar Universitário Méditerranée Infection, em Marselha, acaba de ser capa da Paris Match — e isso quer dizer muito, mesmo que tenha sido em tempo de pandemia, com festas e eventos de passadeira vermelha em stand by.

Didier Raoult na capa da última edição da Paris Match

“Surgiu neste novo mundo confinado pelo medo. Um druida, olhos de sioux, longos cabelos cinzentos, transportado pelas redes sociais de Mulhouse a Béziers, de Sydney a Lagos, Manila e Montreal e até à Casa Branca… Desde que declarou, a 16 de Março, que um tratamento simples, baseado numa velha molécula, a hidroxicloroquina, poderia curar os doentes com coronavírus, Didier Raoult é uma encarnação de esperança”, foi como a famosa revista o apresentou.

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A referência à Casa Branca não é inocente: Donald Trump, tal como Elon Musk, que também publicou nas redes sociais as suas investigações relativamente ao uso da hidroxicloroquina para tratar os doentes da covid-19, não fará parte de nenhum dos grupos de Facebook mas é um dos maiores fãs do especialista francês em doenças infecciosas.

Trump elogia, conselheiro da Casa Branca e prémio Nobel contestam

No Twitter, o presidente americano escreveu que o medicamento tinha “uma hipótese real de se transformar num dos maiores trunfos da história da medicina”. Vários cientistas apressaram-se a gritar: “Isto é uma loucura!”. Anthony Fauci, o epidemiologista mais considerado dos Estados Unidos, conselheiro da Casa Branca nos últimos 36 anos, está entre o grupo de cientistas que contesta as conclusões de Raoult. E Françoise Barré-Sinoussi, cientista galardoada com um Nobel e conselheira do governo francês para a atual pandemia, também.

Ao Le Monde, Barré-Sinoussi declarou que dar esperanças às pessoas sem qualquer prova científica é, além de pouco ético, “ridículo”. “Algumas dessas pessoas podem estar infetadas e podem correr o risco de espalhar o vírus”, acrescentou a propósito das filas que se têm vindo a formar à porta do instituto que Raoult fundou há 10 anos em Marselha, com o apoio do então presidente Nicolas Sarkozy, para receber o tratamento à base do medicamento — que já terá aliás provocado a morte a pelo menos uma pessoa nos EUA.

Enquanto isso, indiferente às críticas, Raoult tem aproveitado bem os seus 15 minutos de fama e tem-se desdobrado em entrevistas e artigos de opinião. “Um médico pode e tem de pensar como um médico e não como alguém obcecado com questões de metodologia”, escreveu no Le Monde, num texto em que explicou ainda que esperar durante semanas ou meses por resultados de estudos com grupos de controlo e placebos, quando um medicamento que já existe é eficaz, é como ceder à “ditadura moral” das empresas farmacêuticas que só visam o lucro.

Recentemente, a edição francesa da Vanity Fair reuniu algumas das suas melhores tiradas à imprensa:

  • “Não sou um outsider, estou é mais à frente”;
  • “Os futebolistas não são todos iguais. Os jornalistas sabem disso para os futebolistas, mas não para os cientistas”;
  • “No meu mundo, eu sou uma estrela mundial”.

Renaud Muselier, presidente do conselho regional de Provença-Alpes-Costa Azul, é só mais um dos líderes que concordam com o cientista. Ou então terá sido porque verbalizou esse apoio de forma mais peculiar, no caso em entrevista ao Nouvel Observateur: “O quê é? Só porque tem cabelo comprido, barba e é de Marselha ele não tem direito a ser o número um do mundo neste campo?”.