A socióloga Ana Nunes de Almeida vê com “muita apreensão” a situação provocada pela pandemia de Covid-19, temendo que se agravem as desigualdades em Portugal, onde em 2017 quase um quarto das crianças vivia em pobreza. Para a investigadora, a atual pandemia é a rutura mais extraordinária desde o 25 de Abril de 1974, provocando o sentimento inverso, de privação da liberdade e impedimento de abraçar o próximo.

Estamos a navegar num mar muito revolto, um pouco em navegação à vista, em barcos muito diferentes, desde iates a pequenos botes de salvação. Há já pessoas que estão a afogar-se”, afirmou à Lusa a investigadora coordenadora do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa.

“Acho que vamos sair desta fase numa situação de enorme vulnerabilidade, do ponto de vista económico e do ponto de vista das relações entre as pessoas”, acrescentou.

Para a investigadora, a crise hoje não pode ser pensada sem se perceber o país que existia antes, “um país marcado por fortes desigualdades“.

A pandemia e a crise, considerou, vêm não só por “a nú”, essas desigualdades, muitas vezes “invisíveis, latentes, discretas”, como as trazem agora para “a linha da frente”.

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Ana Nunes de Almeida vê com preocupação o impacto que a pandemia terá na sociedade portuguesa, até pelos resultados de um primeiro inquérito online realizado na primeira semana do estado de emergência pela equipa constituída por investigadores do ICS e do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa.

As pessoas que já estavam numa situação vulnerável economicamente antes da crise, agora a situação agravou-se. Havia já pessoas no desemprego, em layoff, em férias forçadas”, relatou.

Nas respostas abertas, havia pessoas a confessarem que o mundo tinha “desabado” e a manifestarem “enormes preocupações” com a situação económica e financeira, com cuidados de saúde adiados, mesmo em situações de oncologia, e com o futuro dos filhos. “Enfim, um panorama muito sombrio, uma grande ansiedade”, constatou.

A sobrecarga das famílias, em especial das mulheres, é outras das preocupações da investigadora, a par da situação das crianças de meios sociais mais desfavorecidos.

“Antes da crise, um quarto das crianças portuguesas vivia na pobreza. Isto é um dado de 2017. Apesar de já termos saído daquele período negro da troika, ainda tínhamos cerca de um quarto das crianças que viviam em pobreza, com taxa de pobreza infantil”, frisa. “É uma coisa devastadora. Imagine-se o que é agora, com tantos pais e mães que perderam o emprego, que estão com a vida em suspenso”.

A investigadora confessa não saber como a sociedade portuguesa sairá desta crise, mas tem uma certeza: “Não vamos sair iguais. Vamos sair com fragilidades enormes no tecido social. Temo muito que se agravem as desigualdades“, declarou.

“É uma grande apreensão, realmente, e acho que há dramas pessoais que já se estão a viver, em termos de condições materiais de vida, que não se imagina. Não se imagina!”, lamentou.

Para as crianças, considera que é traumático o confinamento ao espaço doméstico, a privação do convívio com os amigos, a falta da vivência da escola, a constante vigilância e controlo pelos pais: “A casa agora é tudo. É a escola, é a cantina, é o local de trabalho, para todos os membros da família, ao mesmo tempo”.

Pandemia é a rutura mais extraordinária desde o 25 de Abril

Ana Nunes de Almeida considera ainda que a atual pandemia é a rutura mais extraordinária que viveu desde o 25 de Abril de 1974, provocando o sentimento inverso, de privação da liberdade e impedimento de abraçar o próximo.

“É um sentimento de prisão, de clausura, de claustrofobia, de isolamento. Não há como sentir na pele que as sociedades se organizam com base nas relações pessoais, emocionais, e não através das narrativas ou das imagens. Falta-nos o som, o olfato, os ambientes das pessoas juntas”, afirmou.

Tal como outros países, Portugal está agora a funcionar à distância, organizando-se em teletrabalho, o que a investigadora vê como uma “sociedade aos quadradinhos”.

“A sensação que tenho é que quando estamos em frente do ecrã, está ali um somatório de pessoas (…) todos ao lado uns dos outros”, sustentou Ana Nunes de Almeida, defendendo que em contacto direto o todo “vale mais do que a soma das partes”.

A mudança resultante da pandemia de Covid-19 “tem características e uma natureza completamente diferentes, mas foi também assim a sensação [em 1974] de um dia acordarmos e de ser tudo diferente”, disse.

Como cidadã, a socióloga não tem dúvidas de que a atual situação, provocada pela pandemia de Covid-19, é dos acontecimentos de rutura mais extraordinários que viveu: “Outra rutura mais extraordinária na minha vida acho que só o 25 de abril, com um sentido completamente diferente”, recordou.

Enquanto o 25 de abril foi sobretudo “o sair para a rua”, a rutura imposta pelas medidas destinadas a controlar o contágio pelo novo coronavírus resultaram num estado de emergência que mudou radicalmente a vida em sociedade, pelo confinamento social e pela paragem de muitas atividades.

Tal como no passado, vivem-se momentos de incerteza, de consequências ainda imprevisíveis, mas sem motivos para festejar. “É uma grande incerteza e viver com incerteza é muito difícil para todos”, sublinhou.

A rutura [com o regime] em 1974 foi “uma festa de alegria, de liberdade” na rua, com as ruas cheias, as pessoas a abraçarem-se, a sentirem-se próximas fisicamente umas das outras, lembrou Ana Nunes de Almeida. “Era uma coisa absolutamente extraordinária, era um sentimento de libertação, enquanto este é um sentimento de prisão”, observou a investigadora que integra a equipa ICS-ISCTE que está a estudar o impacto da pandemia.

A nível global a pandemia de Covid-19 já provocou mais de 217 mil mortos e infetou mais de 3,1 milhões de pessoas em 193 países e territórios.

Em Portugal, morreram 973 pessoas das 24.505 confirmadas como infetadas, e há 1.470 casos recuperados, de acordo com a Direção-Geral da Saúde.

A doença é transmitida por um novo coronavírus detetado no final de dezembro, em Wuhan, uma cidade do centro da China.

Para combater a pandemia, os governos mandaram para casa 4,5 mil milhões de pessoas (mais de metade da população do planeta), encerraram o comércio não essencial e reduziram drasticamente o tráfego aéreo, paralisando setores inteiros da economia mundial.

Face a uma diminuição de novos doentes em cuidados intensivos e de contágios, alguns países começaram a desenvolver planos de redução do confinamento e em alguns casos a aliviar diversas medidas.