Jeff Berlin, um dos quatro filhos de Lucia Berlin, foi o responsável pela recuperação da obra quase esquecida da contista norte-americana. Foi graças a ele que, em 2015, foi publicado Manual para mulheres de limpeza, uma coletânea que tirou o nome de Lucia Berlin da obscuridade a que parecia condenada. A esse primeiro sucesso, seguiu-se um segundo, o conjunto de contos Anoitecer no paraíso, e mais recentemente um livro de textos autobiográficos, Bem-Vinda a Casa.

O conhecimento que Jeff tem da obra da mãe, que morreu em 2004 no dia do seu aniversário, 12 de novembro, não se deve apenas ao facto de ser um dos filhos da escritora. Jeff Berlin descobriu que a mãe escrevia “histórias” quando tinha cerca de seis anos e, na adolescência, tornou-se a primeira pessoa a ler os seus textos, um trabalho de editora que continua ainda hoje. 

Neste texto que aqui reproduzimos, Jeff recorda dez factos pouco conhecidos sobre a sua mãe, uma “péssima” atriz e a melhor professora que teve na vida.

Bem-Vinda a Casa foi o último livro de Lucia Berlin a ser publicado pelo filho. A edição portuguesa é da Alfaguara, responsável por publicar a obra da escritora norte-americana em Portugal

1. Lucia era incapaz de guardar um segredo. Muitas das suas conversas começavam com «Não digas a ninguém que te contei isto…». Quanto aos seus próprios segredos, ela integrava a maior parte deles nas histórias que escrevia.

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2. Adorava policiais. Um dos seus prazeres secretos eram os romances de detetives. Tinha as prateleiras cheias de autores como Anthony Trollope e Tchékhov, mas debaixo da cama escondia uma pilha de policiais em segunda mão. Leu a obra completa de Agatha Christie, Dorothy L. Sayers, John D. MacDonald, Dick Francis e, claro, Elmore Leonard, Jim Thompson, Raymond Chandler e James M. Cain.

3. Era uma grande cartomante. Um dia, inspirada por uns ciganos que conheceu no hospital onde trabalhava, comprou um baralho de cartas de Tarot e aprendeu sozinha a ler a sina às pessoas. Vinte anos depois, ainda fazia leituras aos seus alunos de pós-graduação na Universidade do Colorado.

4. Lucia gostava de malandros. Nos filmes, geralmente gostava dos vilões, preferindo de longe tipos sombrios e taciturnos, como Warren Oates, Neville Brand ou Charles Bronson, ao Gary Cooper ou ao Joel McCrea. Não desgostava do Gregory Peck, mas recusava-se a ver fosse o que fosse com a figura do tipo bonzinho, como o Jimmy Stewart ou, mais tarde, o Tom Hanks. No campo da música, gostava dos Rolling Stones e não dos Beatles. Durante a maior parte da minha infância, onde quer que vivêssemos, havia uma fotografia do Keith Richards colada algures no espaço onde ela trabalhava.

5. Só escreveu uma história verdadeiramente má. Inspirada pelo sucesso de Medo de Voar, de Erica Jong, escreveu uma história muito porca (absolutamente nojenta) sobre uma mulher que tem relações sexuais com o homem do lixo do seu bairro. Na altura, fiquei morto de vergonha e supliquei-lhe que a queimasse imediatamente, mas não sei muito bem que fim levou a história.

6. Foi a primeira mulher que conheci (e sem ser uma delinquente) a fazer uma tatuagem. No início dos anos 1970, o lendário tatuador Lyle Tuttle fez-lhe uma pequena tatuagem na mão. Na época, isso não era normal e muito menos bem visto, pelo que, nos quinze anos que se seguiram, ela teve de a tapar todos os dias com maquilhagem ou com um penso rápido, até finalmente a eliminar cirurgicamente. Foram muitos pensos rápidos. Como a tatuagem estava quase sempre tapada, os meus irmãos e eu não nos conseguimos lembrar ao certo do que era e as nossas versões diferem. Aparentemente, ou era uma rosa, ou o símbolo astrológico de Escorpião.

7. Era uma tradutora exímia. Aprendeu espanhol na escola, no Chile, e estudou Literatura Espanhola na Universidade do Novo México, onde escreveu a dissertação sobre Cervantes. Quando vivia em Nova Iorque, fez traduções de poemas medievais espanhóis e, mais tarde, em Albuquerque, leu poemas de Pablo Neruda e textos de uma produção de A Sapateira Prodigiosa, de Federico García Lorca, na qual também participou como atriz.

8. Era uma péssima atriz.

9. Quando o primeiro marido descobriu que ela estava grávida pela segunda vez, insistiu para que fizesse um aborto. Como ela se recusou, ele abandonou-a. Provavelmente já tencionava deixá-la, mas, antes de se ir embora, ele contou a todos os amigos comuns que ela engravidara de um antigo namorado… «um mexicano». Ela disse-lhe que, para bem dele, esperava que o bebé fosse menina e nascesse com uma rosa nos dentes e que ela lhe daria o nome Carmen. Em vez de uma menina, nasci eu.

10. Era uma professora excecional, divertida e verdadeiramente inspiradora. No início dos anos 1970, tive a sorte de frequentar durante um breve período a escola secundária de Oakland onde ela dava Literatura Inglesa, Escrita Criativa, Teatro e Espanhol. Como o liceu era pequeno, fui aluno dela a quase todas as disciplinas. Ela obrigava-nos a ler muito. Lembro-me de ler A Viagem do Beagle, de Charles Darwin, a autobiografia de Malcolm X, Tarântula, de Bob Dylan, e o Don Quixote (em espanhol) ao mesmo tempo para várias aulas. Fizemos excursões ao aquário de São Francisco e fomos ao cinema e ao teatro (Voando Sobre um Ninho de Cucos). Nas aulas de Teatro, lemos O Rinoceronte, de Eugène Ionesco, À Espera de Godot, de Samuel Beckett, Quem Tem Medo de Virginia Woolf, de Edward Albee. Encenámos a peça de George S. Kaufman e Moss Hart, You Can’t Take It with You, e uma versão da própria Lucia de Conto de Natal, de Charles Dickens. Ela era uma professora excelente e divertida e todos os alunos a adoravam, a maioria deles considerava-a uma amiga e aliada. Os miúdos «fixe» gostavam especialmente dela, porque os deixava fumar nas aulas e defendia que as vírgulas e os apóstrofes eram desnecessários. Foi deveras a melhor professora que tive na vida.

— Jeff (Carmen) Berlin