E. M. Forster tinha 91 anos quando morreu. Na altura, vivia a maior parte do tempo em Cambridge, onde tinha sido eleito membro honorário do King’s College em 1946, mas foi na casa de Bob Buckingham, um polícia com quem tinha uma relação de longa data, que morreu  de ataque cardíaco a 7 de junho de 1970, há 50 anos. As suas cinzas foram depois misturadas com as de Buckingham e espalhadas pelo jardim de rosas do crematório de Coventry, onde o polícia vivia.

Com cinco romances de grande sucesso, três livros de contos, vários ensaios e muitas outras obras publicadas, Forster deixou, em 1970, uma extensa e consagrada bibliografia (prova disso são as 20 nomeações quase consecutivas para o Prémio Nobel da Literatura, entre 1945 e 1966), à qual associou uma vida pública em defesa das liberdades individuais. A fama de que gozou em vida foi perturbada pela publicação, já depois da sua morte, de Maurice. A história de amor entre dois homens apanhou os críticos desprevenidos. Muitos tentaram descartá-lo, classificando-o como a pior obra do escritor, enquanto outros preferiram ignorá-lo.

Homossexual assumido entre aqueles que lhe eram mais próximos, Forster nunca admitiu publicamente ser gay. Embora a homossexualidade tenha sido descriminalizada no Reino Unido ainda durante a sua vida, o escritor acreditava que pouco tinha mudado na sociedade britânica e que a atitude relativamente a gays e lésbicas tinha apenas mudado de “ignorância e terror para familiaridade e desprezo”. Terá sido essa a principal razão que o levou a não publicar Maurice apesar do apelo de vários amigos que tiveram acesso ao manuscrito.

Vogue 1965

(Cecil Beaton/Condé Nast via Getty Images)

Passados 49 anos do lançamento do romance póstumo de E. M. Forster, a crítica ainda tenta recuperar do abanão que foi Maurice. O que está em causa hoje já não é tanto o relacionamento homossexual retratado na obra, mas o papel que esta ocupa dentro da bibliografia de Forster, onde é possível encontrar, independentemente do livro, uma arguta crítica social e a defesa de valores que este conhecido defensor das liberdades individuais (foi, por exemplo, presidente dos Humanistas de Cambridge desde 1959 até à sua morte) considerava fundamentais, como a verdade, a bondade e o respeito pelo ser humano.

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Uma vida dedicada à escrita

Edward Morgan Forster nasceu a 1 de janeiro de 1879, em Londres, num mundo muito diferente daquele em que passaria os seus últimos dias de vida. A sua longa vida permitiu-lhe assistir a alguns dos momentos mais marcantes do final do século XIX e do século XX, em Inglaterra (a época vitoriana, a revolução industrial) e no mundo (as duas guerras mundiais). As complexidades da vida moderna e o conservadorismo da sociedade inglesa da viragem do século surgem captados em muitos dos seus romances, onde se destaca um respeito pelo indivíduo e, nos seus trabalhos finais, defesa de valores como a bondade e a verdade.

E. M. Forster decidiu que queria ser escritor após deixar King’s College, que frequentou entre 1897 e 1901. O seu primeiro romance, Where Angels Fear to Tread, surgiu quatro anos depois, e o seguinte, The Longest Journey, passados outros dois. Apesar do estilo ainda preso à estética vitoriana, estes primeiros trabalhos apresentam traços que marcariam toda a obra do escritor, nomeadamente a vertente de comentário social. Estes dois livros, apesar de hoje pouco conhecidos no contexto da obra de Forster, foram bem recebidos pela crítica, com o primeiro a ser classificado como “surpreendente” e “brilhantemente original”.

Em 1908, Forster publicou um dos romances pelos quais é melhor lembrado, A Room with a View, a história de de Lucy Honeychurch, uma jovem inglesa que se apercebe das restrições da sua vida quando visita Florença e descobre um mundo que escapa às rígidas convenções da sociedade eduardiana. No romance seguinte, Howards End, considerados por muitos a sua obra de ficção mais significativa, Forster voltar a abordar a questão das convenções sociais, dos códigos de conduta e das relações humanas. O cenário é mais uma vez a viragem do século em Inglaterra e o enredo gira em torno de três famílias — os gentis e idealistas Schlegel, os ricos e aparentemente frios e pragmáticos Wilcoxes e os Basts, de um estrato social mais baixo. Carregado de símbolos, o romance, publicado em 1910, aborda também a importância da ligação à terra, simbolizada pela propriedade dos Wilcoxes, Howards End.

Depois de quatro romances e algum sucesso, Forster viu a sua carreira ser interrompida pelo início da Primeira Guerra Mundial, em 1914. Apesar de se afirmar contra o conflito, o escritor passou três anos na cidade de Alexandria, no Egito, onde trabalhou na Cruz Vermelha Britânica na identificação de soldados desaparecidos. Após o fim da guerra, viajou até à Índia (que já tinha visitado no início da década de 1910), onde trabalhou como secretário do marajá de Dewas, Tukojirao III. As experiências desse período foram registadas no trabalho de não ficção The Hill of Devi, publicado muitos anos depois, no início dos anos 50.

Words For Billy Budd

(Kurt Hutton/Picture Post/Hulton Archive/Getty Images)

De regresso a Inglaterra, Forster dedicou-se a terminar aquele que seria o seu derradeiro romance, A Passage to India. A obra é um retrato das problemáticas que marcam as relações humanas, em especial entre indianos e ingleses, que mantêm uma imagem preconceituosa e desfasada da realidade em relação a estes últimos (no romance, os ingleses procuram manter sempre uma certa distância dos indianos, julgando conhecer a sua verdadeira natureza e esperando sempre o pior deles). O meio natural ocupa um lugar central em A Passage to India, onde é sugerido que a vida humana é efémera e insignificante quando comparada com a grandeza e imortalidade da natureza.

O coming out que abalou interpretações e colocou Forster entre os pioneiros da literatura gay

A Passage to India marcou o fim da ficção longa na carreira literária de E. M. Forster, mas o escritor continuou a produziu material literário até ao final da sua vida, abrangendo vários géneros e envolvendo-se em vários projectos — contos, relatos de viagens, peças de teatro, ensaios, obras biográficas, um guião para um filme (“A Diary for Timothy”, realizado por Humphrey Jennings) e um libreto para uma ópera, Billy Budd (em colaboração com o libretista Eric Crozier), inspirada na obra homónima de Herman Melville. Apesar desta produção intensa, o afastamento de Forster da ficção longa depois da publicação de obras bem sucedidas foi recebido com incompreensão e uma boa dose de desilusão pelos leitores, que nunca chegaram a compreender o que é que tinha acontecido.

As razões eram profundas, e só se tornaram evidentes depois da morte do escritor e da publicação de Maurice um ano depois. A ideia para aquele que viria a ser o último romance de Forster nasceu durante uma viagem do escritor com o poeta e amigo Edward Carpenter a Derbyshire, em 1913. O momento de inspiração terá surgido quando, durante a visita, George Merill, companheiro de Carpenter, lhe tocou levemente nas costas. “Pareceu atravessar diretamente as minhas costas e entrar nas minhas ideias, sem ter de pensar muito”, registou o escritor.

Foi nesse momento que Forster teve a ideia de escrever uma história de amor entre dois homens, Maurice Hall e Alec Scudder, personagens inspiradas em Carpenter e Merrill. O escritor concluiu um primeiro rascunho em 1914, mas deixou a história na gaveta por acreditar a sociedade inglesa pouco tinha mudado desde o tempo de Oscar Wilde, condenado a dois anos de trabalhos forçados por sodomia em 1895, quando Forster tinha 16 anos. Talvez estivesse certo — a publicação da história de Maurice Hall, um estudante de Cambdrige que atinge a maturidade e a autoconsciência quando aceita a sua homossexualidade e renuncia aos valores burgueses em que sempre acreditou envolvendo-se com um jovem de uma classe social inferior à sua, foi uma surpresa (para não dizer um choque) para os leitores do autor de A Passage to India.

O tema era uma novidade na obra de Forster, e o romance póstumo foi mal recebido pela maioria dos leitores e críticos — Francis King, que tinha sido amigo do escritor, descreveu-o como o seu trabalho “menos satisfatório”, uma opinião partilhada por outro crítico, John Sayre Martin. Esta visão de Maurice permaneceu durante muito tempo — em 1983, o académico Christopher Gillie afirmou que o romance nem valia a pena ser publicado.

E.M. Forster

(Hulton-Deutsch Collection/CORBIS/Corbis via Getty Images)

Para muitos, Maurice era uma mancha no currículo até então imaculado de Forster e merecia ser apagado ou, pelo menos, ignorado. O próprio autor tinha consciência que isto poderia acontecer — escrevendo numa altura em que a homossexualidade era ainda considerada um crime no Reino Unido (foi-o até 1967), o autor tomou a decisão de não o publicar, apesar de os apelos constantes de amigos como Christopher Isherwood, um escritor mais novo que, ao contrário dele, tinha assumido publicamente a sua homossexualidade e que acabou por ser responsável pela publicação póstuma de Maurice.

Por altura da composição de A Passage to India, Forster já tinha metido na cabeça que nunca mais regressaria ao romance, considerando que lhe era impossível continuar a escrever sobre “pessoas normais” quando o que deseja era explorar outros temas, que lhe eram mais próximos. “Nunca mais escreverei outro romance depois deste — a minha paciência para pessoas normais esgotou-se. Mas vou continuar a escrever. Não sinto um declínio nos meus poderes”, confessou ao poeta Siegfried Sasson. Assim foi.

Na opinião de Kate Symondson, autora de um artigo sobre a ficção gay de Forster, o coming out do autor perturbou a compreensão que leitores e crítica tinham dos seus primeiros trabalhos. E a verdade é que, como apontou a especialista, o conhecimento da sua homossexualidade fez com que os críticos literários revissem as suas interpretações iniciais dos romances que E. M. Forster tinha publicado em vida e ficassem atentos para eventuais referências nesse sentido. Com o passar dos anos e com o surgimento de uma atitude menos preconceituosa e mais positiva relativamente à homossexualidade e ao seu tratamento na literatura e com o desenvolvimento dos Estudos Queer, Forster começou a ser celebrado como um aquilo que foi — um pioneiro dentro do espectro da literatura gay, um humanista e um defensor das liberdades fundamentais.