Na biblioteca Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, existem cerca de 30 exemplares da Mensagem, em diferentes línguas e formatos. A estes, juntam-se uns 20 estudos que lhe são dedicados, e a bibliografia compilada por José Blanco em 2008 indica mais de 400 entradas sobre a obra, incluindo edições, traduções, artigos e críticas. Estes números chegam para mostrar que Mensagem é uma das obras de Fernando Pessoa que mais edições tem.

Esta grande popularidade deve-se ao facto de ser o único livro em português que o poeta editou em vida. Publicado em 1934 pela editora lisboeta Parceria António Maria Pereira, depois de Pessoa ter vencido nesse mesmo ano o Prémio Antero de Quental, segunda categoria, atribuído pelo Secretariado de Propaganda Nacional, Mensagem teve as suas provas revistas pelo próprio autor, que lhe continuou a fazer alterações mesmo após o livro ter sido posto à venda. As edições modernas têm geralmente em conta as notas deixadas por Pessoa, reproduzindo o que fixou depois da publicação, mas nunca houve nenhuma que olhasse mais para trás no tempo, para quando a Mensagem ainda não era Mensagem e tinha outro nome, Portugal. Até mesmo as duas edições críticas, de 1993 e 2019, se ficaram pelo material final de Mensagem, ignorando as ideias iniciais de Pessoa e a maior parte dos poemas ou rascunhos que lhe deram origem.

Contrariando esta tendência, um artigo publicado no mais recente número da Pessoa Plural — A Journal of Fernando Pessoa Studies, colocado online no final da semana passada, pretende dar um primeiro e importante contributo para o início da discussão em torno da génese da Mensagem, sobre a qual pouco se sabe. Como refere o texto introdutório, assinado pelos investigadores Nicolás Barbosa, Jerónimo Pizarro, Carlos Pittella e Rui Sousa, “pode parecer surpreendente, mas, nos seus alvores, a génese de Mensagem ainda é desconhecida, apesar da existência de uma bibliografia já esmagadora e de duas edições críticas”.

E é sobretudo surpreendente pela quantidade de material disponível — o artigo da Plural, “Portugal, o primeiro aviso da Mensagem”, reproduz 106 documentos inéditos, guardados no envelope 11 EN do Espólio 3, o espólio de Pessoa, da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP). Nestes manuscritos, é possível encontrar a génese de alguns dos poemas da Mensagem, como “D. Tareja” ou “D. Filipa de Lencastre”, momentos de grande beleza lírica e outros que nem tanto — passagens de duro escárnio e maledicência que fazem lembrar o polémico soneto “Alma de Côrno” (inédito até 2013), que tanto deu que falar por altura da sua publicação no primeiro número da Granta portuguesa.

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Primeira versão dactilografada de Portugal, onde Fernando Pessoa riscou o título e acrescentou a lápis “Mensagem” (BNP/Espólio 3)

Estes documentos são a prova viva de que há muito mais para descobrir sobre a Mensagem do que as alterações feitas por Pessoa nas margens do exemplar que tinha em sua casa, e é esse o convite que Barbosa, Pizarro, Pittella e Sousa querem deixar aos leitores da revista de Estudos Pessoanos: “Contribuindo para este work in progress coletivo e como um convite a revisitar a Mensagem, livro que não merece ser transformado em pedra pelo olhar da canonização, nas páginas seguintes poderá o leitor de Pessoa Plural ler os cantos de Portugal e descobrir um projeto inédito que está na génese desta obra que fez e faz com que Pessoa seja referido, por antonomásia, como ‘o autor da Mensagem’ ou ‘da Mensagem’”.

Imitar Camões para criar um anti-Lusíadas

É famosa a história de como Portugal ganhou outro nome — já o livro estava a ser impresso quando Fernando Pessoa decidiu optar por Mensagem, um título que estava “mais certo do que o título primitivo”. A culpa terá sido de um amigo, Alberto da Cunha Dias, que lhe terá feito notar que “o nome da nossa Pátria estava hoje prostituído por sapatos, como por hotéis, a sua maior dinastia”. “‘Quer V. pôr o título do seu livro em analogia com portugalize os seus pés?’”, disse Cunha Dias, referindo-se à Portugal, a mais antiga fábrica de calçado do país. ”Concordei e cedi, como concordo e cedo sempre que me falam com argumentos”, relatou Pessoa.

O título pode ter mudado, mas os primeiros rascunhos Portugal ficaram guardados na “arca”, juntamente com os milhares de papéis que Pessoa acumulou ao longo da vida e que depois da sua morte passaram para a posse da irmã. Os documentos, datados do final do verão de 1910 e hoje reunidos no 11 EN, nunca tinham sido apresentados antes, o que o investigador Carlos Pittella considera absolutamente “inacreditável”. “Como é que nunca ninguém leu isto?”, interrogou durante durante uma conversa telefónica com o Observador. “Há várias dezenas de edições só na Casa Fernando Pessoa e duas edições críticas, uma [coordenada por José Augusto Seabra e] apoiada pela UNESCO, Mensagem: poemas esotéricos, e uma [mais recente] da Imprensa Nacional — Casa da Moeda, Mensagem e Poemas Publicados em Vida [com edição de Luiz Fagundes Duarte]”.

Na opinião de Pittella, “não faz muito sentido” misturar a Mensagem com poemas esotéricos, uma abordagem que começa a cair em desuso, ou com poemas publicados em vida. Mas o que é surpreendente “é como é que os dois editores destas duas edições críticas, que são muito boas, não percorreram [os papéis relacionados com Portugal] e, se percorreram, como é que não viram os 106 documentos que estão no envelope 11 EN, que está dentro das coisas do drama? Acho que é uma coisa incrível que nunca ninguém tenha percorrido [esses papéis]”, afirmou o editor de Fausto.

Início do Canto I de Portugal, que começa com “Cessara a comoção e a dor que o dia” (BNP/Espólio 3)

Essa exclusão dos textos anteriores à versão cristalizada da Mensagem fez com que só agora se descobrisse uma ligação mais profunda com Os Lusíadas. “Sempre suspeitámos que Pessoa estivesse a competir com Camões na Mensagem. O que nunca conseguimos provar é que tivesse imitado Camões”, disse Pittella. As dúvidas foram totalmente dissipadas quando o grupo de investigadores descobriu uma anotação feita pelo próprio poeta junto a um dos fragmentos de Portugal, que diz “Imit. Lus.”, isto é, “Imitação Lusíadas”. Antecedendo outras estrofes, aparece a abreviatura “Cont. Lus.”, ou seja, “Continuação Lusíadas”. Tudo isto leva a crer que o que Pessoa tinha originalmente em mente era seguir o épico camoniano, explorando não só o tema da história de Portugal, mas imitando também a métrica, rima e estrutura estrófica usadas por Camões.

“A abertura [de Portugal], aquilo que Pessoa indicou como sendo o Canto I, já indica um diálogo com Camões”, mais especificamente com a terceira estrofe do Canto I de Os Lusíadas, em que poeta pede que “Cesse tudo o que a Musa antiga canta,/ Que outro valor mais alto se alevanta”. A versão de Pessoa diz:

“Cessara a comoção e a dor que o dia
Abafara em seu voo sem repouso
Sobre a cidade lenta enlanguescia
Um crepúsculo suave e luminoso
Nos telhados onde dormia
Uma luz meio luz, como que em gozo
Demorando-se, ténue e fugitiva
Na sua morte e [   ]* viva”.

Mas “o que é interessante é que Pessoa não estava apenas a imitar Camões, mas a criticar Portugal”, explicou Pittella. “[Portugal] é um anti-Lusíadas”, muito influenciado pelo Pátria, obra de Guerra Junqueiro em que este procurou gerar junto dos seus leitores um sentimento de descrédito em relação à monarquia, de que era forte crítico, sobretudo depois da cedência de D. Carlos relativamente ao Ultimato inglês. “Junqueiro influenciou imenso Pessoa em mais do que um modo, nomeadamente nessa questão satírica. Pessoa amava Guerra Junqueiro naquela altura. Dizia que o Pátria era a melhor coisa escrita desde os Lusíadas”, disse ainda o investigador, editor da primeira biografia de Fernando Pessoa em inglês, da autoria de Hubert D. Jennings.

Tal como Guerra Junqueiro, Pessoa acreditava que a monarquia anterior à Primeira República era uma “quase uma ausência de pátria, e as figuras dessa forma de governo — tais como depois as do republicano, que também, e muito depressa, o desiludiram — anti-heróis de um país que ainda não se cumpria enquanto tal”, referiram Barbosa, Pizarro, Pittella e Sousa no seu artigo. É por isso significativo que, ao contrário de Junqueiro, cuja obra inclui monólogos dramáticos em que a dinastia de Bragança fala, “na Mensagem, todas as dinastias falem menos os Bragança”.

Esta vertente de crítica é evidente na intenção de Pessoa de abandonar o projeto de Portugal após 5 de outubro de 1910. “Recentes e gloriosos dias tornaram, felizmente, irrisória esta poesia prefacial”, escreveu o poeta num dos papéis do envelope 11 EN, referindo-se à queda da monarquia e à proclamação da república. “Desejoso de anunciar o fim da monarquia portuguesa, o seu anti-cantor” viu-se assim obrigado a por Portugal de lado. Mas a obra nunca seria esquecida — ao longo de mais de 20 anos, Pessoa continuaria a dar forma ao conjunto de poemas que viriam a compor Mensagem, o que faz da obra uma das que mais tempo lhe ocupou, juntamente com o poema dramático Fausto (1907-1933) e o Livro do Desassossego (1913-1934). Isso mostra a importância que o projeto tinha para ele.

Um dos manuscritos de Portugal, com a data “agosto-setembro de 1910″ e a indicação de que Pessoa teria abandonado o projeto devido a “recentes e gloriosos dias” que tornaram “irrisória esta poesia prefacial” (BNP/Espólio 3)

A sífilis, o bacio e a diarreia: os versos malditos de Portugal

Enquanto génese da Mensagem, Portugal inclui versos muito próximos daqueles que viriam a compor a obra de 1934, embora numa “métrica diferente”. “Só isso já justificaria que as edições críticas tivessem mexido nesses papéis”, frisou Carlos Pittella, acrescentando “que não é pela beleza, mas pela importância para a Mensagem que isto espanta”. É este o caso da estrofe “Deus fez de mim seu gládio e a sua lira”, que se pode considerar um dos primeiros rascunhos de “D. Fernando, Infante de Portugal”, que começou por se chamar “Gládio”. Outras são muito próximas dos poemas “D. Tareja” ou “D. Filipa de Lencastre”.

São vários os momentos de grande beleza lírica em Portugal. Um exemplo é a estrofe que começa “Assim talvez desaparecerá”, que Pittella considera estar muito próxima da filosofia de Alberto Caeiro, ou “Este canto é de mim, de quem eu sou”, um dos conjuntos de versos mais antigos, a que Pessoa não atribuiu canto:

“Este canto é de mim, de quem eu sou
E d’esta pátria humana d’onde venho,
E d’esta terra-mãe em que, alma, estou,
E onde o olhar ébrio como um corpo banho
Carnalmente; e a noite por onde vou
Para o Mistério e em que sinto estranho
Meu próprio ser, e alheio a mim me perco
Do sentido de mim com que me cerco.”

Passagens como esta convivem com outras de tom diametralmente oposto, onde a crítica subjacente a Portugal se torna mais evidente e aguçada. Os versos mais duros e chocantes, de escárnio e pura maledicência, são aqueles que o poeta atribuiu ao Canto III, o “canto maldito” de Portugal. Estes são antecedidos por um aviso, anotado pela mão do próprio Pessoa, “Portugal loquitur: invecta a immoralidade”. “O termo latino loquitur sugere o começo de uma nova fala, consistindo numa série de estrofes (…) com abundantes insultos, tal como anuncia o latinismo invecta (ofensivo, ultrajante)”, explicaram os autores do artigo “Portugal, o primeiro aviso da Mensagem”.

De facto, os termos escolhidos por Fernando Pessoa podem ser considerados ofensivos por alguns, sobretudo os das estrofes seguintes:

“Este é o lugar moral em que viveis
Ó lusitanos: isto é em vosso lar:
O esposo corpo rebulhado
De sífilis é um eco de bordeis

A esposa, puta de trazer pra casa,
É o lugar d’uma cópula, o bacio
Onde a diarreia do instinto vaza

Higienicamente e sem fastio
O excreto seminal; vulva que abrasa
Insaciado desvario
E que passa em revista corneante
Amante, amante, amante, amante e amante.

Sujas e o vosso casamento
É um adultério d’alma, anda de rojo
O que ainda chamais um sentimento –
O ex-amor, essa cousa que faz nojo”.

O tipo de linguagem desta composição é muito semelhante ao utilizado num soneto não menos escabroso, o “Alma de Côrno”. Publicado pela primeira vez em maio de 2013, no número de estreia da Granta portuguesa, “Alma de Côrno” gerou polémica por mostrar uma faceta do poeta que nunca ninguém tinha visto. Como referiu Pittella, responsável pela divulgação dos versos juntamente com Pizarro, num estudo posterior sobre este e outros “fragmentos malditos” do escritor, “embora já conhecêssemos violentos xingamentos dispersos pela obra do heterónimo Álvaro de Campos, desconhecíamos casos de severo escárnio e maldizer atribuíveis ao ortónimo”. Isto levou a que atribuição do poema a Pessoa fosse posto em causa por vários especialistas, como Teresa Rita Lopes, que declarou na altura que “tudo o que há de poemas do Pessoa já foi editado”.

Os versos malditos do maldito Canto III de Portugal, antecedidos pelo aviso ““Portugal loquitur: invecta a immoralidade” (BNP/Espólio 3)

O problema da atribuição de “Alma de Côrno” a Fernando Pessoa e o motivo de tanta discussão está na “adequação de um soneto chulo na obra pessoana” e no que parece ser a “nossa própria interpretação do que seria apropriado (simplesmente ‘in the eye of the beholder’, para usar a expressão inglesa). Ao consagrar o grande poeta português, teríamos promovido uma imagem certamente incompleta de uma obra incompletamente publicada. Nossa ignorância diante do todo da obra gerara, assim, a incompatibilidade de uma parte mais profana até então desconhecida”, mas real.

“Alma de Côrno” veio revelar mais um lado do poeta das mil faces que, passados 132 anos do seu nascimento (celebrados no passado dia 13 de junho), continua a surpreender. Da mesma forma, Portugal aponta para a importância de não dar nada como adquirido e de questionar sempre, até aquilo que parece certo. Em relação à génese da Mensagem, Carlos Pittella acredita que ainda há “muita coisa a explorar, muitos artigos para escrever”. O artigo da Pessoa Plural é apenas um primeiro contributo para uma discussão que se espera ser produtiva e que leve a novos e diferentes olhares acerca desta obra e da sua produção. E talvez a uma pitada de polémica.

* Espaço em branco deixado pelo autor

Nota: a grafia utilizada por Fernando Pessoa, reproduzida na Pessoa Plural, foi modernizada neste artigo para facilitar a leitura