Poucas lendas ganharam um lugar tão importante na história da literatura como a de Johann Georg Faust. “Ser humano lendário”, alquimista, astrólogo e feiticeiro, Faust — ou simplesmente Fausto — simboliza a busca de um conhecimento “impossível”, inacessível aos simples mortais como ele. A sua história, de imprecisas origens germânicas, foi explorada por alguns dos maiores nomes da literatura universal, como o dramaturgo inglês Christopher Marlowe, o poeta francês Paul Valéry e o alemão Johann Wolfgang Goethe. Fernando Pessoa, que lia e conhecia todos estes autores, não ficou indiferente à história do alquimista que “sabe que não sabe o suficiente, mas que acredita poder saber” — nas palavras de Carlos Pittella. Entre 1908 e 1933, o poeta português trabalhou na sua própria versão da lenda alemã, escrevendo cerca de 300 documentos hoje guardados na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), em Lisboa, onde está o seu espólio.

Trinta anos depois da última edição do Fausto pessoano, a Tinta-da-China prepara-se para lançar uma nova versão. Esta é a primeira edição crítica, com abundantes fac-similies, e a apresentar os diferentes textos cronologicamente, permitindo, pela primeira vez, ler a peça exatamente como Pessoa a deixou: fragmentada. Carlos Pittella, responsável pela edição (que teve a colaboração de Filipa de Freitas, investigadora no Centro de Estudos de Teatro da Universidade de Lisboa), espera que este Fausto abra portas a novas interpretações e que crie um maior interesse numa parte da obra de Pessoa ainda pouco conhecida: o teatro. Porque, como ele próprio admitiu ao Observador, a dramaturgia de Fernando Pessoa permanece em grade medida inédita. Fausto é apenas uma pequena parte daquilo que o poeta produziu em vida.

A nova edição do Fausto, de Fernando Pessoa, tem chancela da Tinta-da-China. Chega às livrarias no próximo dia 20 de abril

Ao contrário da produção heteronímica, o drama de Fernando Pessoa nunca recebeu muita atenção. É por essa razão que as peças do poeta são pouco conhecidas. Uma realidade que, a pouco e pouco, parece estar a mudar. Em agosto do ano passado, foi dado um primeiro passo com a publicação de todo o teatro estático (com edição de Filipa Freitas e Patrício Ferrari), onde se inclui a peça O Marinheiro, a mais conhecida e a única que Pessoa concluiu e publicou em vida. Mas faltam ainda editar os autos, “completamente inéditos”, e o teatro inglês, do qual foi apenas dado a conhecer “algumas coisas” do heterónimo Alexander Search, como explicou Carlos Pittella. “Do teatro de Pessoa, só conhecemos metade. O que é incrível! Não é exagero dizer que Pessoa, como autor teatral, é muito desconhecido”, afirmou o investigador, que lançou, em 2017, juntamente com Jerónimo Pizarro, o livro Como Fernando Pessoa pode mudar a sua vida.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O que é curioso é que Pessoa “se reconhecia como poeta dramático, mas de uma forma muito peculiar: ele é um poeta que deu vida às personagens, que saíram da peça”. Há até quem acredite que a sua incursão pelo teatro teve influência na criação dos heterónimos. Esta posição foi defendida por Teresa Rita Lopes, responsável por dar a conhecer algumas das peças estáticas de Fernando Pessoa, como Sakyamuni e Salomé. A verdade é que o teatro estático — aquele “cujo enredo não constitui ação”, nas palavras de escritor — é anterior ao “mestre” Alberto Caeiro que, segundo Pessoa, surgiu na “noite triunfal” de 8 de março de 1914. Como salientaram Filipa Freitas e Patricio Ferrari em Teatro Estático, as primeiras peças datam de cerca de 1913. Fausto é bem anterior — as primeiras linhas remontam provavelmente a 1908, mas Pittella não põe de lado a hipótese de serem até anteriores, talvez de 1907. Esta é uma das razões pelas quais esta peça “ocupa um lugar interessante” no teatro pessoano.

Para Carlos Pittella, Fausto é uma “peça única”. Um dos motivos é a sua extensão. “São cerca de 300 documentos. É muito maior do que o Duke of Parma, [outra peça de Pessoa,] que tem cerca de 200.” Além disso, a história de Johann Georg Faust acompanhou Fernando Pessoa durante quase toda a vida, entre 1907 ou 1908 e 1933. Em termos de trabalho, isto coloca o Fausto lado a lado com o Livro do Desassossego (escrito entre 1913 e 1934), superando até um dos heterónimos mais produtivos, Álvaro de Campos. O que coloca uma hipótese: “Será que Pessoa continuou a levar o Fausto a sério depois dos heterónimos?”. Carlos Pittella acredita que sim, e isso “é incrível”: “Fausto não é só um rascunho, é um ensaio que precedeu os heterónimos. Fausto continuou depois dos heterónimos”.

Esta teoria já tinha sido avançada por Eduardo Lourenço, que defendeu que Fausto era um “rascunho de outras partes da obra pessoana”. “Pessoa experimentava várias coisas no Fausto, que depois usava nos heterónimos”, explicou Pittella. A peça tem “rascunhos” de Campos, Reis e até de Caeiro. Um poema, escrito em 1909 ou 1910, fazia parte do projeto Nostradamus e é possível encontrar uma canção que esteve para integrar Portugal, que se viria a transformar-se em Mensagem. Um outro conjunto de versos, “Lúcifer”, que Pittella colocou na secção de anexos, faz lembrar alguns poemas ortónimos, como “O Último Sortilégio” ou Além-Deus, uma comparação feita pelo próprio Pessoa numa carta enviada a João Gaspar Simões em outubro de 1930. Contudo, Fausto é também “uma obra independente, com uma grande complexidade”.

A primeira edição em 30 anos

Apesar de a edição mais conhecida do Fausto de Fernando Pessoa ser a de Teresa Sobral Cunha (publicada pela primeira vez em 1988 pela Editorial Presença e reeditada anos depois pela Relógio d’Água), a peça teve outras duas edições anteriores, todas diferentes. A primeira foi organizada por Eduardo Freitas da Costa, primo do poeta, em 1952. O livro — intitulado Poemas Dramáticos — fazia parte da coleção pessoana da editora Ática e incluía o drama estático O Marinheiro. Para Carlos Pittella, tratava-se mais de “uma antologia”, uma vez que reunia cerca de 100 textos selecionados por Freitas da Costa e organizados segundo quatro temas principais escolhidos por ele. “Ser o primeiro a ler [um texto de Pessoa] é uma benção, mas também é um pesadelo. Não há nada para apoiar a leitura e às vezes é muito complicado”, afirmou o investigador, admitindo que, por vezes, leva uma semana a ler um só documento.

A segunda edição, chamada Primeiro Fausto, data de 1986 e teve organização do brasileiro Duílio Colombini. Com mais do dobro das páginas da do primo de Fernando Pessoa, esta edição, hoje extremamente difícil de encontrar, até no Brasil, continha textos inéditos e “transcrições completas de poemas que tinham aparecido truncados em 1952”, como explicou Carlos Pittella na introdução do seu livro. Em termos de tentativa de organização, era muito parecida com a de Teresa Sobral Cunha — publicada dois anos depois –, com a diferença de que a da investigadora portuguesa indicava as cotas do espólio da BNP. “Foram propostas de peças teatrais e transcrições muito próximas, embora Teresa Sobral Cunha tenha aproveitado e melhorado a de Colombini”, afirmou Pittella. “Cada edição usou a edição anterior, como eu usei a da Teresa Sobral Cunha. As edições apoiaram-se mutuamente.”

Carlos Pittella acredita que o primeiro poema que Fernando Pessoa escreveu para o Fausto foi o “Monólogo da Treva”, datável de 1908 (Biblioteca Nacional de Portugal, Espólio n.º 3)

Para organizarem os seus livros, Colombini e Sobral Cunha, que provavelmente trabalharam durante o mesmo período (as suas edições saíram apenas com dois anos de diferença), apoiaram-se no mesmo documento — uma descrição geral da peça, datável provavelmente de novembro de 1918, com o título “Primeiro Fausto”, que Pittella reproduziu nos anexos da edição da Tinta-da-China. Nesta, Pessoa fala em cinco atos, nos quais pretendia explorar o “conflito da inteligência” consigo própria, com outras inteligências, com a emoção e com a ação até à sua derrota, no final da peça. Assim, ao tentarem reconstruir o Fausto pessoano, os dois investigadores dividiram-no em cinco partes, uma organização que Carlos Pittella não chegou sequer a ponderar. Ao contrário de Teresa Sobral Cunha, que considerou que esse modelo “não era o ideal”, e Duílio Colombini, que chegou à conclusão de que era “inviável”, Pittella decidiu insistir e fazer uma edição diferente. “Podia dizer que o papel deles se aproximou mais do de co-autores. Não é uma crítica, é simplesmente algo que não faria hoje. A minha edição não seria possível sem a edição deles”, afirmou.

A verdade é que, para Carlos Pittella, seria “impossível” publicar o Fausto como uma peça coesa e estruturada. Não é que o investigador considere que é “problemático” propor “uma arrumação”, mas essa decisão tem determinadas consequências, que preferiu evitar. “Uma é dizer que este papel [o plano que Pessoa deixou] é mais importante do que todos os outros”, exemplificou. “Quem sou eu para dizer isso? Se o fizesse, então o Fausto tornava-se num fracasso porque é óbvio que Pessoa não completou esse plano. E isso não tem o menor interesse. Quero muito mais libertar o Fausto desta unidade pretendida e propor uma edição cronológica, que tem vantagens e desvantagens” Ao contrário dos outros editores, Pittella prefere olhar para Fausto como “uma coleção de 300 documentos”, mesmo que isso torne tudo muito mais complicado. “Não é que não pudesse ser uma peça em cinco atos, se se acreditar nas instruções de Pessoa. Mas estas não estão completas e foram escritas depois de 80% dos papéis.” Além disso, são tão vagas que podem dar origem a edições completamente diferentes, como aconteceu com Colombini e Sobral Cunha. O Fausto “pode ser muitas coisas, dependendo do critério que é adotado”. O Fausto pode ser o que cada um quiser.

Fausto não é “um poema inacabado”, é “inacabável”

Isto significa que, em termos de estrutura, a nova edição de Fausto aproxima-se muito mais do Livro do Desassossego do que de outras peças do espólio pessoano, uma vez que é composta por centenas de fragmentos dispersos. Até porque, se Fernando Pessoa “pretendeu uma linearidade, desistiu dela”. “Há evidência de planos, mas o problema é que não temos como saber a que é que se referem esses planos”, explicou Carlos Pittella. Esta ideia de uma peça não linear não é novidade — já tinha sido avançada por Manuel Gusmão, que sugeriu que Fausto não é “um poema inacabado”, “é inacabável”, é “teatro em ruínas”, e que Pessoa “sabia disso”. “Quando consideramos o Fausto como um poema inacabável, deixa de ser um fracasso”, afirmou Pittella, que, na sua edição, tentou propor “um caminho ainda não percorrido”, como escreveu na introdução. “Uma edição cronológica”, que “pergunte aos papéis no arquivo do poeta o que é que são, em vez de julgar o que queriam ou não conseguiram ser. Perante essa pergunta, os papéis contam uma história de génese literária muito diferente da do plano pessoano”. E que história é essa?

O último papel de Fausto, datado de 20 de outubro de 1933, tem o poema “O segredo da Busca é que não se acha” (Biblioteca Nacional de Portugal, Espólio n.º 3)

Uma das novidades da edição da Tinta-da-China de Carlos Pittella é a datação provável dos cerca de 300 documentos do Fausto (apenas cinco têm data). De acordo com a investigação feita pelo pessoano, os primeiros poemas terão sido escritos em 1907 ou 1908, nos papéis dos relatórios de minas de ferro e manganês da empresa de Mário Nogueira de Freitas, primo de Pessoa. Claro que existe a possibilidade de estas folhas terem sido reaproveitadas numa outra data mas, como explicou Pittella, Fernando Pessoa geralmente escrevia nos papéis que tinha à mão. O mais natural é que tivesse usado as folhas em que tinha estado a trabalhar. Apesar de “o primeiro papel do Fausto” ser “um mito” e de ser “impossível datar tudo”, o investigador conseguiu descobrir o pedaço de papel mais antigo o que tem o “Monólogo na Treva”, que surge em primeiro lugar nesta edição. “O Fausto de Goethe começa com o ‘Monólogo da Noite’. É perfeitamente possível imaginar Pessoa a ler o monólogo e a pensar em escrever a sua própria versão”, sugeriu o investigador. É, aliás, de 1907 que data uma das edições do Fausto de Goethe que Pessoa tinha na sua biblioteca, hoje guardada na Casa Fernando Pessoa, em Campo de Ourique.

Foi entre 1908 e 1909 que Pessoa escreveu a maioria dos “textos fáusticos”. Foram tantos que, para facilitar, muitas vezes deixava apenas a letra “F” a identificá-los. Os últimos poemas datam de 1932 ou 1933. O último que Fernando Pessoa terá escrito terá sido “O segredo da Busca é que não se acha”, um dos poucos que se encontra datado (20 de outubro de 1933). Curiosamente, o ante-penúltimo poema da edição da Tinta-da-China, “Ah, tudo é símbolo e analogia!”, era o primeiro da edição de Teresa Sobral Cunha, o que dá novamente força à frase do editor: o Fausto de Fernando Pessoa “é várias coisas, é o que você quiser”. “Se acharmos que o Fausto é uma coisa inacabada, então é um fracasso. Se o considerarmos uma peça inacabável, é um labirinto, uma espiral, um diário de busca — da busca do conhecimento, da verdade.” É assim que Pittella prefere encarar a peça — como “um diário poético, com tema e forma específicos — a “busca do conhecimento e os seus abismos”.

“O segredo da Busca é que não se acha.
Eternos mundos infinitamente,
Uns dentro de outros, sem cessar decorrem
Inúteis. Nós, Deuses, Deuses de Deuses,
Neles intercalados e perdidos
Nem a nós encontramos no infinito.
Tudo é sempre diverso, e sempre adiante,
De homens e deuses vai a luz incerta
Da suprema verdade.”