O casamento infantil e a mutilação genital feminina podem ser eliminados dentro de dez anos, defende a ONU, estimando que um investimento de três mil milhões de euros até 2030 salvaria destas práticas 84 milhões de raparigas. Segundo o relatório do Fundo das Nações Unidas para a População (FNUAP), a pandemia de Covid-19 está a atrasar a luta contra o casamento infantil e a mutilação genital feminina.

As estimativas são do relatório sobre a situação da população mundial em 2020, lançado esta terça-feira com o título “Against my will: defying the practices that harm women and girls and undermine equality (Contra a minha vontade: desafiar práticas que magoam as mulheres e meninas e prejudicam a igualdade).

No documento, a agência das Nações Unidas (ONU) responsável pela saúde sexual e reprodutiva, argumenta que é tempo de tomar “medidas urgentes” para acabar com estas práticas que causam danos físicos e emocionais e que são geralmente levadas a cabo com a aprovação das famílias e comunidades.

A organização identifica 19 costumes prejudiciais que violam os direitos das raparigas, mas concentra-se nos três mais comuns: mutilação genital feminina (MGF), casamento infantil e seleção sexual (preferência pelos filhos em relação às filhas).

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O relatório argumenta que 3,4 mil milhões de dólares (3,024 mil milhões de euros) por ano até 2030 poderiam pôr fim ao casamento infantil e à mutilação genital feminina, salvando 84 milhões de raparigas destas práticas.

Embora a MGF esteja a diminuir na maioria dos países onde é praticada, trata-se de países que estão a registar elevadas taxas de crescimento populacional, o que significa que o número potencial de raparigas alvo desta prática continuará a aumentar, aponta o relatório.

A nível mundial, estima-se que cerca de 200 milhões de raparigas e mulheres sofreram alguma forma de MGF e que 68 milhões de raparigas estejam em risco de serem mutiladas até 2030.

De acordo com o FNUAP, mais de quatro milhões de raparigas serão mutiladas a nível mundial este ano e, apesar dos progressos registados nos últimos anos, regista-se um ressurgimento durante a pandemia.

De acordo com a agência das Nações Unidas, apesar de existirem poucos dados sobre o impacto da pandemia de Covid-19 nas práticas nocivas contra as raparigas é já certo que os programas concebidos para acabar com o casamento infantil e a mutilação genital feminina “estão a enfrentar sérios atrasos na implementação”.

Por outro lado, aponta o FNUAP, as perturbações económicas relacionadas com a pandemia “estão a aumentar a vulnerabilidade das raparigas” aquelas práticas nocivas de sobrevivência.

De acordo com uma análise do FNUAP, Avenir Health, Johns Hopkins University (EUA) e Victoria University (Austrália), se a pandemia causar um atraso de dois anos nos programas de prevenção da mutilação genital feminina, os investigadores projetam para a próxima década a existência de dois milhões de casos de mutilação genital feminina que teriam sido evitados.

Concentrada no continente africano, a MGF é também comum em países como o Iraque e o Iémen, e em alguns países asiáticos como a Indonésia, onde se estima que 49 por cento das raparigas com menos de 11 anos de idade tenham sofrido esta prática.

Os últimos dados disponíveis, citados no relatório, mostram que a percentagem de mulheres com idades compreendidas entre os 15-49 anos que sofreram MGF varia entre os cerca de 1% nos Camarões (em 2004) e no Uganda (em 2011) e pelo menos 90% no Djibuti (em 2006), Egito (em 2015), Guiné-Conacri (em 2018) e Mali (em 2018).

Entre os países africanos lusófonos, a Guiné-Bissau é o único que surge assinalado no relatório do FNUAP, registando a prevalência desta prática em 45% das mulheres e raparigas, dados que têm 2014 como ano de referência.

O fundo adianta também que o casamento infantil continua uma prática generalizada, com uma em cada cinco raparigas a casar ou a manter uma união de facto antes de atingir os 18 anos de idade.

Nos países em desenvolvimento, esse número duplica – 40% das raparigas são casadas antes dos 18 anos de idade, e 12% antes dos 15 anos de idade.

As raparigas pressionadas para o casamento infantil engravidam frequentemente enquanto ainda adolescentes, aumentando o risco de complicações na gravidez ou no parto. Estas complicações são a principal causa de morte entre as raparigas adolescentes mais velhas”, aponta a ONU.

De acordo com a agência da ONU, cerca de 650 milhões de mulheres em todo o mundo casaram quando eram crianças.

Se a pandemia causar um atraso médio de um ano nas intervenções para pôr fim ao casamento infantil, prevê-se que na próxima década ocorram mais 7,4 milhões de casamentos de crianças que poderiam ter sido evitados, uma estimativa considerada conservadora.

Por outro lado, prevê-se que a recessão económica causada pela pandemia resulte numa estimativa de 5,6 milhões de casamentos infantis adicionais a ocorrer entre 2020 e 2030. O efeito total da pandemia de Covid-19 está projectado para resultar em 13 milhões de casamentos adicionais de crianças.

O terceiro pilar do relatório é a preferência por crianças do sexo masculino, uma situação que em alguns países tem promovido a seleção sexual ou casos de abandono que resultaram na morte de raparigas.

Segundo o FNUAP, o resultado deste problema são cerca de 126 milhões de mulheres “desaparecidas” em todo o mundo.

O fundo defende, por isso, a necessidade de mudanças nas economias e nos sistemas jurídicos que apoiam estas violações de direitos humanos, e aponta como exemplo a alteração das regras sucessórias em muitos locais para eliminar os incentivos à preferência masculina e ao casamento infantil.

Segundo o FNUAP, tanto o casamento infantil como a mutilação genital feminina podem ser eliminados em todo o mundo dentro de dez anos se forem alargados os esforços para manter as raparigas na escola durante mais tempo, for promovida a sua capacitação para a vida e se se envolveram os homens e rapazes numa transformação social.

Em Portugal, o relatório será apresentado ao início da tarde de hoje pela embaixadora de Boa Vontade do UNFPA, Catarina Furtado, e pela diretora do escritório UNFPA em Genebra, Mónica Ferro.