As notícias de um caso suspeito de peste bubónica detetado na China, na remota cidade de Bayannur, na região autónoma da Mongólia Interior, estão a fazer soar os alarmes mundiais em tempo de pandemia. E se, a juntar ao novo coronavírus, a humanidade tiver agora de se ver a braços com outra doença, desta feita provocada pela mais temível bactéria de que há memória — exatamente aquela que, em plena Idade Média, entre 1347 e 1350, dizimou entre um terço e metade de toda a população do continente europeu e do Médio Oriente e reduziu a população mundial de 450 para 350 milhões? Que é como quem diz, e se a peste bubónica (ou negra, como se convencionou chamar-lhe na época) estiver de volta?

Primeiro a má notícia: a peste não está de regresso porque, na verdade, nunca desapareceu. Provocada por uma bactéria e transmitida pelas picadas de pulgas, geralmente transportadas por ratos e outros roedores, a doença, documentada pela primeira vez no tempo do imperador romano Justiniano, com uma pandemia que se estendeu de 541 a 544, contextualiza ao Observador Jaime Nina, infecciologista do Hospital Egas Moniz e professor do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, da Universidade Nova de Lisboa, é “inerradicável”.

“É uma zoonose, uma infeção dos animais que, de vez em quando, passa para os seres humanos. E precisamente por ser uma zoonose é inerradicável, nunca deixou de existir e existe há muito tempo. Foi responsável por grandes pandemias”, explica o especialista, que tem na doença um dos seus temas favoritos.

“Consta de todos os programas de pós-graduação de que sou responsável. Acho que é uma doença fascinante. É muito rápida e, para uma população que não sabe como ela se transmite, tem um potencial de expansão perfeitamente explosivo e uma mortalidade muito, muito alta. A par da da tuberculose multirresistente é a única bactéria que, para ser trabalhada viva, exige um P4, um laboratório de pressão negativa e alta segurança — para a Covid, por exemplo, basta um P3″, compara o cientista.

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O que nos leva à boa notícia: em 1894, muito depois de  ter espalhado o caos na Europa e entrado para a História como a maior pandemia da humanidade, Portugal incluído — “Há registos de se abrirem valas comuns para os mortos, porque não havia tempo de se fazerem enterros tradicionais, em praticamente todas as localidades do país”, conta Jaime Nina —, a bactéria responsável pela peste bubónica foi identificada, por Alex Yersin, um cientista russo do Instituto Pasteur que lhe deu o seu próprio nome: Yersinia pestis.

A partir do momento em que, em 1928, se descobriram os antibióticos e se percebeu que a bactéria era particularmente vulnerável a um conjunto deles, a peste bubónica não deixou de ser uma doença grave. Mas entrou para o rol das patologias facilmente curáveis.

“A peste é sempre grave, na ausência de tratamento um terço das pessoas morrem, os outros dois sobrevivem. Se a pessoa sobreviver é porque o sistema imunitário ganhou a guerra e conseguiu eliminar a bactéria”, explica Jaime Nina.

“É uma bactéria suscetível a antibióticos (não a todos, mas a muitos). No surto de peste em Angola, em 1971/1972, o governo central nomeou uma comissão para o controlo da peste, liderada pelo Dr. José Luís Champalimaud, que contava que iam de aldeia em aldeia e davam uma injeção única de 1 grama de estreptomicina a cada adulto e que doentes que estavam quase a morrer ficavam curados.”

O que significa que, seja em Bayannur, na China, ou em Madagáscar, na República Democrática do Congo ou no Peru, os três países do mundo mais afetados pela doença, segundo a Organização Mundial de Saúde, se for tratada atempadamente (e aqui a rapidez é uma questão muito importante, já que há relatos de mortes causadas em apenas 24 horas), a peste bubónica não tem de ser fatal. Para além de nestes quatro países, a doença existe também em países como os Estados Unidos e a Rússia — que entretanto desenvolveram cada um a sua vacina.

E não só, garante Jaime Nina: “A peste continua a existir. Todos os anos há casos de peste. Todos os anos há surtos de peste. Existe na zona da Ásia central, incluindo na parte ocidental da China, onde o reservatório permanente é um ratinho selvagem. Existe também no sudeste dos Estados Unidos e no nordeste do México, mas com outro rato diferente. E existe em várias zonas de África, sendo que a mais importante é mesmo Madagáscar; nos últimos anos Madagáscar tem tido entre dois terços e três quartos do total de casos notificados no mundo”.

As vacinas, que existem pelo menos desde os anos 50 do século passado, serão usadas fundamentalmente por militares em missão. “No caso dos americanos são ainda usadas por forças militarizadas e pelos guardas florestais, portanto por pessoas que penetram em zonas onde há esses tais roedores, que são o vetor da doença. E também têm sido usadas na população geral, não só na Rússia como também em zonas dos Estados Unidos, nomeadamente em reservas de índios que estão nas zonas de transmissão”, acrescenta o especialista.

Apesar de as pulgas serem maioritariamente encontradas em ratos selvagens, podem transmitir-se aos ratos domésticos — e é geralmente aí que os humanos entram na cadeia de transmissão da doença. Para além disso, diz também Jaime Nina, este inseto tem também “uma adaptabilidade grande a outros roedores”, o que explica que o caso agora detetado na China tenha sido, ao que parece, espoletado por uma marmota.

Europa está livre da peste desde o início do século XX

O último surto de peste bubónica registado no continente europeu data de 1902 e, conta o infecciologista, Portugal, mais concretamente o Porto, não ficou imune: um barco vindo de Macau aportou na cidade e com os tripulantes desembarcaram também uma série de ratos portadores da pulga que transmite a doença.

“Quem fez o diagnóstico foi um bacteriologista português, chamado Câmara Pestana, que se infetou e morreu de peste. E quem tomou as medidas de saúde pública, que consistiram em quarentena e isolamento, que mais de um ano depois fizeram parar o surto, foi um senhor de que toda a gente já ouviu falar chamado Ricardo Jorge. Foi uma das coisas que contribuiu para a reputação dele.”

Pecados e castigos divinos. Em 1569, a Peste Negra esvaziou as ruas de Lisboa

Como na altura, os sintomas da peste bubónica continuam a ser os mesmos: febre alta, calafrios, dores no corpo e de cabeça, vómitos, confusão  mental, pressão arterial baixa e o bubão que lhe dá nome. “Trata-se de um inchaço na região inguinal, que é a zona onde está o quartel das defesas, os gânglios linfáticos que drenam as pernas”, explica Jaime Nina.

As consequências, em caso de ausência de tratamento adequado, continuam a ser igualmente preocupantes e podem dar origem a manifestações ainda mais graves da doença. “Se o gânglio linfático rebentar, não conseguir suster a infeção e ela entrar no sangue, temos uma septicemia péstica e aí a mortalidade sem antibióticos sobe para os 90%. Se a bactéria, por outro lado, for parar ao pulmão, pode fazer uma pneumonia. A pneumonia péstica, ou peste pneumónica, tem uma mortalidade de quase 100%. E, pior, pode transmitir-se por via aérea, aí já sem pulgas: a pessoa tosse para cima do vizinho e ele apanha”, descreve.

Apesar de a doença continuar a existir, diz o infecciologista, é “bastante improvável” que volte a dar origem a uma pandemia. Para além de vacinas e de antibióticos, existe ainda uma outra arma que, garante, se tem mostrado muito eficaz na luta contra a pulga responsável pela peste bubónica: inseticidas.

“Na primeira década do século XXI houve um surto de peste numa cidade da Índia. O governo mandou o exército pulverizar a cidade, era tanta a quantidade de inseticida para matar as pulgas dos ratos que parecia que tinha caído neve nas ruas. Só houve casos humanos nos que foram apanhados inicialmente, depois de terem sido tomadas medidas de saúde pública o surto foi contido. Morreram relativamente poucas pessoas, alguns milhares. Era uma cidade de um milhão de pessoas, é preciso por isso em perspetiva.”

Erradicada a doença do continente europeu, conclui Jaime Nina, para que a peste bubónica voltasse a assolar Portugal ou qualquer outro país, seria necessário que os ratos portadores das pulgas conseguissem fazer o seu caminho, novamente por mar, nos porões de navios provenientes de outras partes do mundo. E isso já não será tarefa tão fácil como em 1337 ou 1569, ano em que começou o último grande surto em Lisboa, que terá custado a vida a cerca de 50 mil pessoas.

“Hoje em dia há proteção contra os ratos nos barcos, todos têm cabos com uma espécie de um anel de lata a meio, para que se um rato for a subir ou descer o cabo chegue ali e não consiga passar”, explica o infecciologista, “É também por isso que nas escadas dos passageiros costuma haver cães. As pessoas pensam que o cão está lá para impedir passageiros clandestinos, mas não, está para impedir ratos clandestinos.”