O Governo anunciou a Estratégia Nacional para o Hidrogénio (EN-H2), que prevê 7000 milhões de euros de investimento divididos por uma mega central a instalar em Sines e diversos postos mais pequenos de produção localizada e de abastecimento, para o transporte rodoviário eléctrico, de veículos alimentados por células de combustível a hidrogénio (fuel cell), que produzem electricidade a bordo. Não vamos debruçar-nos sobre se o projecto é oportuno ou megalómano, ou se Sines é ou não o local ideal para montar a mega central. Vamos, sim, chamar a atenção para uma curiosidade: apesar do destaque dado a gigantes como a Galp ou a EDP, nenhuma destas empresas tem experiência na produção de hidrogénio verde, isto é, gerado de forma não poluente. Mas há uma pequena empresa, a Ultimate Power, formada por engenheiros portugueses e com tecnologia nacional, que é especializada na produção de equipamentos que geram hidrogénio verde, exportando-os para todo o mundo.
A produção de hidrogénio não é propriamente uma novidade em Portugal. A Galp fá-lo em quantidade, sobretudo para utilizar no processo de refinação de petróleo, no que chama oil cracking, em que se usa o hidrogénio para quebrar as ligações entre as moléculas do crude, agilizando o processo. Porém, não só este hidrogénio apresenta um grau de pureza demasiado baixo para ser utilizado nas fuel cells, que necessitam de 99,999%, como é gerado a partir de gás natural, composto por entre 70% e 80% de metano, logo com grandes emissões de carbono. Ou seja, uma má ideia quando se persegue a descarbonização. Daí que o ideal seja fabricar hidrogénio a partir da electrólise da água, fornecendo energia oriunda de fontes renováveis.
Eléctricos a bateria ou a hidrogénio?
A indústria automóvel e a União Europeia acreditam que o futuro passa por veículos eléctricos, mas não necessariamente (ou apenas) alimentados com a energia armazenada na bateria, abastecida a partir da rede eléctrica. Se esta solução parece, de momento, ser a melhor para automóveis convencionais, a realidade é que não será fácil mover veículos pesados com a necessária autonomia, sejam eles para o transporte de passageiros ou de mercadorias, apenas com as baterias que carregam. Sobretudo sem que estas se revelem demasiado caras e pesadas. A Tesla considera que as baterias são a solução, mesmo para autocarros e camiões, mas terá de conceber acumuladores melhores para convencer o mercado.
A alternativa à bateria é alimentar os modelos eléctricos com energia produzida a bordo, através de fuel cells a hidrogénio. Desta forma conseguem-se autonomias mais generosas e, principalmente, tempos de reabastecimento muito mais curtos, com um Toyota como o Mirai a necessitar apenas de 3 a 5 minutos para reabastecer os seus tanques de hidrogénio.
Para que os veículos a fuel cell passem da teoria à prática, são necessários postos de reabastecimento, vulgares na Alemanha, França e Reino Unido, mas inexistentes em Portugal. A ponto de a Caetano Bus, que fabrica autocarros eléctricos alimentados a fuel cell em Ovar, em parceria com a Toyota, ser obrigada a ter de ir a Espanha reabastecer para poder testar os veículos, que assim ficam condenados exclusivamente à exportação.
Sabe-se hoje que a melhor solução para os postos de abastecimento de hidrogénio é a produção a partir de energias renováveis junto ao posto, onde o gás é fornecido a 350 bar para camiões e a 700 bar para automóveis. Caso Portugal adoptasse a solução já testada por outros países, que passa pela montagem de postos de produção e abastecimento próximos de polos onde existam frotas de camiões a hidrogénio, como centros de distribuição logística, por exemplo, seria possível medir o pulso à solução sem custos desmesurados e, simultaneamente, começar a descarbonizar os veículos pesados.
Engenheiros portugueses e tecnologia nacional
A Ultimate Power começou por fabricar as Ultimate Cell que, através de um esquema muito simples de electrólise alcalina, produzia 1 litro de hidrogénio por hora, o necessário para melhorar a combustão em motores térmicos de veículos, reduzindo o consumo em 5% e as emissões em 80%.
Mas rapidamente os técnicos portugueses foram desafiados a criar equipamentos maiores e mais eficientes, com maiores débitos de hidrogénio. Em vez da electrólise alcalina simples, passaram a utilizar um electrolisador por Proton Exchange Membrane (PEM), essencialmente uma fuel cell mas a funcionar ao contrário, recebendo energia para gerar hidrogénio (separando-o do oxigénio), em vez de libertar energia ao juntar hidrogénio e oxigénio para formar água (H2O). Este equipamento, já com um débito de 100 litros/hora, destina-se aos grandes motores a combustão.
Daqui evoluíram para equipamentos de 10.000 litros/hora e 60.000 l/h, sendo este o mais recente projecto, encomendado por uma empresa norte-americana que opera uma frota de empilhadores a fuel cell em Puerto Rico e que exige hidrogénio verde com 99,999% de pureza. Para mais, num contentor de 10 metros, capaz de enfrentar furacões de categoria 3, cujos ventos podem atingir 208 km/h.
Entretanto, a Ultimate Power já recebeu de outro cliente americano uma encomenda para um gerador de hidrogénio com a capacidade de 200 m3, ou seja, 200.000 litros/hora, equivalente a um megawatt. Ora, não deixa de ser curioso o facto de companhias internacionais terem confiado numa empresa portuguesa, pequena mas a crescer a bom ritmo, para resolver os seus problemas de energia.
Para as cimenteiras em parceria com a Secil
Um dos maiores mercados da Ultimate Power é a indústria cimenteira, cujos queimadores em contínuo consomem facilmente 13 toneladas de combustível por hora, especificamente petcoke, um produto que não anda longe do carvão. A cimenteira portuguesa Secil interessou-se pela tecnologia do hidrogénio como elemento para optimizar a combustão, reduzindo consumos e emissões poluentes, pelo que fez uma parceria com a Ultimate Power. As duas empresas criaram a Utis e cada uma contribui com a respectiva especialidade.
Os equipamentos para o cimento são os electrolisadores com um débito de 10.000 l/h, encerrados num contentor com seis metros de comprimento e cada unidade pode ascender a 900.000€, mas o break-even é atingido ao fim de 8 a 12 meses. Neste momento, já há máquinas destas espalhadas um pouco por todo o lado, da Alemanha ao Egipto, passando pela Noruega, Brasil, Polónia e Espanha, onde há 8, apenas uma a menos do que em Portugal.
A popularidade do sistema é tal que está em construção uma nova fábrica em Trajouce, concelho de Cascais, de onde deverão sair, em média, cerca de 54 equipamentos por mês. Além do cimento, os equipamentos com este débito são igualmente utilizados nas centrais a biomassa.