Vários deputados socialistas vão contestar esta quinta-feira a alteração ao regimento da Assembleia da República que põe fim aos debates quinzenais com o primeiro-ministro e que torna a sua presença obrigatória apenas de dois em dois meses.
Este assunto vai ser tema de debate na reunião do Grupo Parlamentar do PS, a primeira em que todos os deputados socialistas vão discutir o assunto — isto apesar de esta alteração ao Regimento da Assembleia da República já ter sido aprovada por PS e PSD num grupo de trabalho no âmbito da Comissão de Assuntos Constitucionais e de a votação final global em plenário estar prevista para a tarde desta quinta-feira.
Um dos mais destacados deputados do PS manifestou à Agência Lusa a convicção de que “mais de metade da bancada socialista está contra esta mudança e defende que, no limite, os debates com o primeiro-ministro voltem a ter uma periodicidade mensal, tal como aconteceu entre 1996 e 2007”.
Em declarações à Lusa, o antigo ministro Jorge Lacão, que propôs e depois concretizou em 1996 a aprovação da figura regimental do debate mensal com o primeiro-ministro, manifestou “preocupação” face ao posicionamento da direção do Grupo Parlamentar em relação a esta matéria.
“O PS tem nesta matéria um legado histórico no qual se reconhece e do qual se orgulha — e esse legado histórico passa nomeadamente pela centralidade do parlamento na nossa democracia. Somos um sistema de Governo semipresidencial, mas onde o parlamento tem um papel fulcral, porque é o órgão de fiscalização da atividade governativa”, frisou o deputado socialista.
Jorge Lacão referiu depois a este propósito que “a geração mais antiga” dentro da bancada do PS “lembra-se do período difícil que a democracia portuguesa atravessou — normalmente designado como o período do cavaquismo — em que a presença do primeiro-ministro na Assembleia da República era uma espécie de aparição rara”.
“Com a apresentação da candidatura política liderada à época por António Guterres, o PS assumiu desde então um compromisso político no sentido de garantir uma presença efetiva do primeiro-ministro no diálogo com a Assembleia da República — e isso concretizou-se primeiro num debate mensal com o primeiro-ministro, depois, mais tarde, com um debate quinzenal. Compreendo que se deva avaliar as nossas próprias experiências e compreendo as críticas formuladas a um excesso da função tribunícia do nosso parlamento, mas é preciso encontrar um ponto de equilíbrio”, sustentou o deputado socialista.
O antigo ministro dos Assuntos Parlamentares defendeu que esse ponto de equilíbrio pode passar “por um debate mensal com o primeiro-ministro”. “Esta é a tradição do PS e creio que o PS não andaria bem se viesse a concretizar a alteração agora em cima da mesa”, advertiu. Interrogado sobre o facto de o PS se preparar para debater este tema escassas horas antes de ser sujeito a votação final global em plenário, Jorge Lacão admitiu “circunstâncias singulares” na vida do parlamento, “com um acréscimo dos trabalhos ditado pelas dificuldades provocadas pela pandemia” da Covid-19.
“Às vezes não chega a haver um tempo suficiente para a ponderação de algumas opções feitas, mas creio que nesta matéria [da periodicidade dos debates com o primeiro-ministro] estamos em cima de uma linha limite em relação à qual se corre o risco de se tomar uma má decisão. Pela minha parte, tudo farei para que esta opção possa ainda ser refletida e invertida”, disse.
Em relação à reunião da bancada socialista desta manhã, Jorge Lacão afirmou esperar poder colocar o seu apelo “para que haja uma reflexão no interior do Grupo Parlamentar do PS e uma tomada de posição sobre a solução final a tomar”. “Vejo com muita apreensão que os debates regulares com o primeiro-ministro não tenham para futuro a cadência indispensável à valorização do papel do parlamento e do controlo do parlamento da ação governativa”, reforçou.
Confrontado com a tese de alguns socialistas de que os debates com o primeiro-ministro são encarados como uma espécie de guerra entre chefes partidários, Jorge Lacão contrapôs que o parlamento “é por natureza o lugar do confronto democrático”. “Se o confronto democrático não se desenvolvesse institucionalmente, onde é que se deveria desenvolver com relevância para as instituições e para a normalidade de vida dos cidadãos? Assumir que há uma circunstância confrontacional é assumir que esse também é um papel incontornável do parlamento”, acrescentou.
Lacão considera que fim de debates quinzenais com primeiro-ministro colide com história do PS. E diz que vai votar contra
Para Jorge Lacão, a intenção de tornar obrigatória a presença do primeiro-ministro no Parlamento apenas de dois em dois meses colide com a história do seu partido. Por essa razão, o ex-ministro votará contra essa mudança. Em declarações à Lusa, Lacão considerou que a iniciativa coloca ainda em causa a perceção dos cidadãos no que respeita à normal relação entre os órgãos de soberania.
“Se a questão vier a ficar nos atuais termos, naturalmente não poderei ter outra atitude se não votar contra, porque contamina muito a perceção que os cidadãos têm daquilo que deve ser a normal relação entre os vários órgãos de soberania na sua independência e, igualmente, na sua interdependência. Tenho ainda esperança de que a questão possa ser revista”, declara o deputado socialista.
No que respeita à questão da liberdade ou da disciplina de voto da bancada socialista perante a matéria relativa à revisão do Regimento da Assembleia da República, Jorge Lacão sustenta que o PS se “orgulha da liberdade de voto dentro do Grupo Parlamentar”. “Há matérias que exigem disciplina, mas que têm temas bem identificados – temas esses que se relacionam com o Orçamento do Estado e outros de idêntica relevância. Aqui, estamos a falar de uma matéria própria da competência dos deputados, da competência própria da Assembleia da República e que diz respeito ao funcionamento do parlamento. Por isso, os deputados devem assumir plenamente o entendimento que tiverem sobre o assunto”, advoga.
Neste contexto, Jorge Lacão deixa depois um aviso: “Desejo concorrer – e fá-lo-ei com um espírito inteiramente construtivo – para a coesão do Grupo Parlamentar do PS nesta questão, mas também no sentido de que essa decisão possa ser correta e não uma decisão que inverta a própria história do PS na defesa da instituição parlamentar”.
Interrogado se sabe que o primeiro-ministro e secretário-geral do PS apoia esta mudança para aumentar a periodicidade dos debates com a sua presença, Jorge Lacão argumenta que só quer conhecer as coisas “pelo seu valor facial”. “Pelo que conheço, através de membros da direção do Grupo Parlamentar do PS, a proposta foi apresentada. Portanto, foi apresentada pelo PS. Não tenho de conhecer quaisquer posições que eventualmente possam ter sido tomadas por parte do primeiro-ministro. Circunscrevo a minha atuação no quadro parlamentar”, responde.
De acordo com o antigo ministro socialista, “há sinais de natureza geral de algumas tendências da vida política que devem merecer alguma preocupação, porque princípios são princípios – e a concretização desses princípios não deve ser menosprezada em função de outras ponderações circunstanciais”. “Não direi que a democracia está hoje cercada, mas tem pela frente muitos problemas e até muitos adversários. Só se responderá aos desafios se o regime democrático se fortalecer e, não pelo contrário, se tender para enfraquecer. É essa a minha questão principal, é por ela que me tenho batido ao longo de muitos anos e é por ela que continuo a guiar a minha posição própria”, afirma.
Questionado sobre o projeto de reforma global do parlamento, o deputado socialista identifica “muitas matérias com contribuições de significativo aperfeiçoamento dos trabalhos parlamentares”. “Será uma pena se a solução final de revisão do Regimento da Assembleia da República ficar contaminada por esta questão [dos debates com o primeiro-ministro] – uma questão que, no entanto, é bastante relevante”, acrescentou.