O bailarino e programador cultural Jorge Salavisa, nome destacado da dança em Portugal e antigo diretor de algumas das mais influentes instituições culturais do país, morreu na sua casa, em Lisboa, na madrugada desta segunda-feira. Tinha 80 anos e foi vítima de doença prolongada, confirmou o Observador junto do Teatro Municipal São Luiz, sala que Salavisa dirigiu entre 2002 e 2010.
O estado de saúde de Jorge Salavisa era muito precário nas últimas semanas. A amiga Aida Tavares, atual diretora artística do São Luiz, disse que o visitava quase todos os dias e tinha estado com ele no último sábado. “É um dia muito triste”, referiu Aida Tavares, para quem Jorge Salavisa foi uma pessoa “de enorme generosidade para com aqueles que amava: os amigos, a família, os colegas”.
“É uma referência enorme. Tive oportunidade de trabalhar como ele desde 2002 em várias funções. Devo-lhe tudo o que aprendi, devo-lhe sobretudo um enorme amor pela arte, um enorme sentido de justiça e a sabedoria que vem das pessoas com a dimensão dele, com o seu percurso de vida tão completo”, acrescentou Aida Tavares.
Jorge Salavisa destacou-se como intérprete de dança clássica e moderna, mas nunca foi coreógrafo. Assumiu a direção artística do Ballet Gulbenkian, entre 1977 e 1996, e da Companhia Nacional de Bailado, entre 1998 e 2001. Foi ainda comissário para a dança no âmbito da iniciativa Lisboa Capital Europeia da Cultura 1994.
Já retirado, publicou em 2012 Dançar a Vida: Memórias, pela editora Dom Quixote, um inesperado registo autobiográfico onde se assumiu como homossexual e partilhou pormenores sobre tentativas de suicídio e um carcinoma que detetou em 2004. O livro incluía opiniões contundentes sobre bailarinos e figuras públicas com quem o autor se cruzara ao longo da vida.
O “português de Londres” que “quis oferecer aos portugueses possibilidades que não tinha tido”
Nascido na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, a 13 de novembro de 1939, foi o segundo de três filhos de um casal da classe média. Passou parte da juventude nas Caldas da Rainha, onde o pai, engenheiro agrónomo, tinha encontrado trabalho. Em 1945, a família mudou-se para Angola: Nova Lisboa (atual Huambo), Sá da Bandeira (atual Lubango), Benguela e Luanda. O despertar para artes pode ter-se devido a um tio, Abílio Mattos e Silva, que trabalhava no Teatro de São Carlos como cenógrafo e figurinista de produções de ópera e assinava trabalhos para o Grupo de Iniciação Coreográfica de Margarida de Abreu.
De volta a Lisboa, em 1955, estudou no Liceu Infante de Sagres e no Liceu Fancês, onde foi colega de Iva Delgado (filha do general Humberto Delgado). Aos poucos, aproximou-se da criação artística enquanto espectador e assistiu a espetáculos e exposições em São Carlos e na Sociedade Nacional de Belas-Artes. “Anos frenéticos, repletos de surpresas e descobertas”, escreveu na autobiografia.
Iniciou-se na dança clássica em 1958 pela mão de Anna Mascolo (1910-2010), bailarina e mestre de dança italiana que se exilou em Lisboa no contexto da II Guerra Mundial e que naquele ano abriu um estúdio-escola na Avenida Infante Santo. O anúncio, perante a família de que tinha iniciado aulas de dança provocou “um choro inconsolável” nas irmãs. Já os pais, “haviam decidido não interferir” na escolha”, contou em Dançar a Vida. “Pagariam a minha estadia em Paris e em Londres para que eu pudesse conhecer melhor o mundo do bailado e fazer depois a minha avaliação e escolha definitiva.”
Por alguns meses, ao lado de Anna Mascolo, teve aulas em Paris, incluindo no estúdio da lendária bailarina russa Olga Preobrajenska, e também em Londres. Em 1960 começou a dançar no Grand Ballet do Marquês de Cuevas, de Paris, uma das principais companhias europeias dos anos 1940 e 50, onde em 1961 o mítico Rudolf Nureyev fez a primeira aparição depois de ter fugido da União Soviética.
Passou pela companhia de Rolan Petit, pelo Ballet National Populaire e manteve-se no London Festival Ballet entre 1963 e 1972, tendo aí trabalhado com Leonide Massine, Serge Lifar ou John Taras. O “português vindo de Londres”, como o descreveu José Sasportes no livro Trajetória da Dança Teatral em Portugal (1979), “teve uma carreira regular em companhias internacionais de tipo comercial”.
No regresso a Lisboa, passou a diretor artístico do Grupo Experimental de Bailado (futuro Ballet Gulbenkian, extinto em 2005). Entre 1976 e 1996, abriu a instituição a estilos diversos e encorajou a revelação e desenvolvimento da carreira de coreógrafos nacionais, fomentando, ainda, a formação de bailarinos portugueses através de cursos especiais.
A bailarina e coreógrafa Olga Roriz, que integrou o Ballet Gulbenkian entre 1976 e 1992, onde foi primeira bailarina e coreógrafa principal sob a direção de Salavisa, disse ao Observador que ele “deixa um legado enorme e eterno à dança em Portugal”, porque “influenciou muitos intérpretes e criadores, que por sua vez continuam a influenciar outros”. Destacou as digressões internacionais do Ballet Gulbenkian, para as quais Salavisa escolhia reportório dela e de Vasco Wellenkamp. “A internacionalização da minha carreira deve-se completamente ao Jorge”, classificou.
“Nunca conseguiremos saber qual a extensão dos ensinamentos, da mestria e da maneira de estar do Jorge. Sendo um bailarino que teve de procurar o seu lugar fora do país, nomeadamente em Londres, penso que no regresso quis oferecer aos portugueses possibilidades que não tinha tido. Quis encontrar novos talentos e encontrou variadíssimos. Os ateliers coreográficos do Ballet Gulbenkian já existiam antes de ele ser diretor artístico, mas ganharam uma outra linha estética mais avançada. O Jorge queria coisas novas, incentivava-nos a pensar de outra forma. Não foi fácil a nossa relação nos tempos da Gulbenkian. Eu queria fazer umas coisas e ele queria que eu fosse por outros caminhos. Só mais tarde percebi que o Jorge me queria levar por um caminho profissional que considerava certo, o que hoje só posso agradecer”, relatou Olga Roriz.
A estreia do documentário Autópsia — Percurso de uma Criação, agendada para esta segunda-feira a partir das 19h00 no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa, constituirá necessariamente um momento de homenagem a Jorge Salavisa, segundo a coreógrafa. O documentário assinala os 25 anos da companhia de dança de Olga Roriz e é realizado por Henrique Pina.
“Vai ser um momento de celebração e de homenagem, sem dúvida. Aliás, sinto que o Jorge, nos últimos tempos, já pressentia o fim e tentou despedir-se de quase toda a gente. Conseguiu ir ao lançamento do meu livro [sobre os 25 anos da companhia, a 19 de setembro no Teatro Nacional D. Maria II] e sinto agora que o fez para se despedir de mim. Havia ali uma ternura muito grande.”
João Fiadeiro, Clara Andermatt, Paulo Ribeiro, Benvindo Fonseca e Vera Mantero foram alguns dos artistas que tiveram Jorge Salavisa como mestre. O bailarino e coreógrafo Rui Horta também, nos cursos profissionais do Ballet Gubenkian, no fim da década de 1970. “Um belíssimo professor. A nossa relação foi ambivalente, mas sempre muito bonita”, disse Rui Horta ao Observador.
“Foi particularmente importante no meu percurso, porque não me deixou entrar para o Ballet Gulbenkian. Eu era um atleta, tinha uma fisicalidade muito grande, mas o meu corpo era antidança clássica. Aprendi que uma rejeição, no momento certo, pode ser muito boa. Sempre brincámos os dois com isso. Foi assim que acabei por ir para Nova Ioque e depois para a Alemanha. Passei quase 20 anos fora de Portugal, fiz um percurso de criador independente, seguramente muito mais rebelde e cosmopolita do que se tivesse sido aceite pelo Jorge”, lembrou Rui Horta.
“Embora sempre me tenha dito o contrário, acho que o Jorge nunca achou que eu fosse um grande artista, nunca lhe enchi as medidas, mas via-me como programador e pensou em mim para diretor do Ballet Gulbenkian. Chegámos a ter conversas, mas eu estava a fazer um percurso muito bom na Alemanha e as coisas não se concretizaram”, detalhou o criador de As Lágrimas de Saladino.
Rui Horta revelou que nos últimos cinco anos esteve a trabalhar com Jorge Salavisa e com vários artistas num projeto coordenado por Patrícia Vasconcelos chamado A Mansarda, que poderá ver a luz do dia nos próximos anos. “Vai ser uma espécie de Casa do Artista, com uma visão diferente, a pensar nos artistas que chegam à velhice desprotegidos”, informou.
Ministra da Cultura: “Ajudou a escrever a história da dança em Portugal”
Numa nota de pesar enviada à redações ao início da tarde de segunda-feira, a ministra da Cultura referiu-se a Jorge Salavisa como “nome maior da dança contemporânea, tanto nacional como internacionalmente” e “um homem que ajudou a definir a cultura em Portugal”.
“Ao longo das décadas, ajudou a escrever a história da dança em Portugal, seja como bailarino, seja como professor de gerações de bailarinos ou diretor artístico. O que a dança contemporânea é, hoje, em Portugal, tem o cunho muito particular deste artista e pedagogo exemplar”, acrescentou Graça Fonseca. “O seu papel à frente do Ballet Gulbenkian e da Companhia Nacional de Bailado fizeram de Portugal um país pioneiro na relação entre coreógrafos, bailarinos e público. Devemos-lhe uma história muito completa da diversidade e, a partir daí, a atividade dos artistas portugueses que, pela sua mão, encontraram sempre as condições para se poderem afirmar.”
A Fundação Calouste Gulbenkian lamentou o desaparecimento de Jorge Salavisa, “das mais destacadas figuras da vida cultural e artística portuguesa”. Uma mensagem à imprensa da presidente da fundação, Isabel Mota, realçou a “brilhante carreira internacional como bailarino” e o “papel decisivo na vinda a Portugal de alguns dos maiores coreógrafos mundiais da dança contemporânea e na formação de gerações sucessivas de bailarinos e coreógrafos portugueses”, enquanto diretor do Ballet Gulbenkian.
“Fez a quadratura do círculo” no São Luiz
Conhecido por ser muito curioso e aberto às novidades, assistia quase compulsivamente a espetáculos de diferentes autores e linguagens. Era reservado ou tímido, mas com um grande sentido de humor.
“Às vezes podia ser corrosivo nos seus comentários e na sua ironia e quando não queria continuar uma conversa era mestre em mudar de assunto”, recordou Olga Roriz. “Sempre o senti como uma pessoa de enorme ternura, talvez com um lado muito paternal, o que não é de espantar, porque foi meu mentor e padrinho na vida profissional.”
De entre os muitos cargos que desempenhou, destaca-se também o de coordenador da Oficina Coreográfica da Escola de Dança do Conservatório Nacional. Entre 2010 e 2011 presidiu ao conselho de administração do Opart – Organismo de Produção Artística, entidade pública sob alçada do Ministério das Finanças e do Ministério da Cultura que tutela o Teatro Nacional de São Carlos e a Companhia Nacional de Bailado.
“Houve duas coisas que o Jorge fez muito bem na vida: dirigir ao Ballet Gulbenkian e o São Luiz”, analisou Rui Horta. “Sobretudo na década de 80, imprimiu modernidade ao Ballet Gulbenkian e fez daquela companhia uma das mais importantes e prestigiadas do mundo. No São Luiz, fez um trabalho extraordinário de programação. O Jorge adorava programar, não o escondia, e no São Luiz encontrou a fórmula certo para aquilo a que podemos chamar o verdadeiro teatro da cidade, o teatro dos cidadãos. Durante aqueles anos, ele fez a quadratura do círculo: conseguiu misturar de maneira muito inventiva a experimentação e a programação acessível à maior parte das pessoas. Gostava muito da transdisciplinaridade e, como conhecia muito bem o meio, convidada pessoas muito diferentes para trabalharem juntas. Ele fez renascer o São Luiz, entendeu que aquela sala estava, e está, no coração dos lisboetas.”
Já a presidente do OPART lembrou uma “personalidade que marcou a história da Cultura Portuguesa das últimas décadas”. Em comunicado, Conceição Amaral recordou “os anos da sua vida dedicados ao OPART e, em especial, à Companhia Nacional de Bailado, períodos que muito marcaram ambas as instituições e que contribuíram para a memória coletiva”. “Em nome de todos os funcionários do OPART e do Conselho de Administração, um grande obrigada e até sempre!”, escreveu a presidente do organismo.
A Companhia Nacional de Bailado também prestou homenagem e deixou um “profundo agradecimento” ao “professor, mentor, colega, impulsionador e cúmplice de gerações de bailarinos e gerações de coreógrafos”.
“Hoje estamos de luto porque perdemos alguém a quem tivemos a sorte de poder chamar um de nós. Ao professor Jorge Salavisa prestamos homenagem e um profundo agradecimento”, lê-se numa mensagem, assinada pela diretora artística da CNB, Sofia Campos, partilhada na página oficial daquela companhia na rede social Facebook.
A CNB recorda que Jorge Salavisa “foi professor, mentor, colega, impulsionador e cúmplice de gerações de bailarinos e gerações de coreógrafos que com ele aprenderam que dançar não é só uma profissão, é uma forma de vida e uma forma de estar no mundo”.
“Sonhou fazer da dança uma arte maior e que a Companhia Nacional de Bailado, que tanto transformou, pudesse ombrear com as melhores companhias de repertório mundiais. Com ele aprendemos a alargar horizontes, aprendemos a falar várias línguas, aprendemos que em cada palco representávamos o melhor de nós. Soubemos sempre que a sua opinião, o seu olhar, a sua palavra amiga, era um incentivo para nos transformarmos, para crescermos”, lê-se na mensagem.
As homenagens de Marcelo e de António Costa
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, enalteceu a memória do bailarino e coreógrafo, recordando-o como um “professor tão exigente quanto generoso” cuja missão de formação nunca seria terminada.
“Despedimo-nos hoje, já com saudade, de um homem invulgar, um bailarino virtuoso, um professor tão exigente quanto generoso, que ajudou a formar e deu palco aos mais talentosos bailarinos portugueses. Elevar o ballet nacional a um nível superior, aberto, tangível, ao alcance de todos: foi este o seu maior propósito — ‘um sonho’, assim definia Jorge Salavisa a sua missão, nunca impossível, nunca terminada”, pode ler-se na mensagem publicada na página da Presidência da República.
O chefe de Estado salienta que recebeu a notícia da morte de Salavisa, esta segunda-feira, aos 81 anos, com “profunda tristeza” e envia condolências a família e amigos. Também o presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, afirmou hoje ter recebido “com muita tristeza” a notícia da morte do bailarino e coreógrafo, considerando que é “consensualmente o nome mais importante da dança em Portugal”.
O primeiro-ministro destacou que o bailarino e coreógrafo, “figura de referência da dança em Portugal”, teve “um papel renovador no Ballet Gulbenkian, abrindo caminho a muitos talentos”. Numa mensagem publicada no Twitter, António Costa falou numa “figura de referência da dança em Portugal. Bailarino”, que “teve um papel renovador no Ballet Gulbenkian, abrindo caminho a muitos talentos”.
“A nossa gratidão por uma vida inteira dedicada à cultura”, lê-se na mensagem.